01/03/2010 - 0:00
Ela se baseia em evidências e seleciona e cria fontes confiáveis para serem consultadas por qualquer profissional da saúde. Em entrevista a PLANETA, o médico paulista Álvaro Atallah a apresenta como um novo paradigma da medicina
Por ano, publicam-se no mundo cerca de 2 milhões de artigos sobre medicina. A estimativa é do Centro Cochrane, organização internacional que figura entre as principais fontes de consulta para aqueles que recorrem a um sistema conhecido como Medicina Baseada em Evidências para tomar decisões na área médica. O método empreende com regularidade revisões sérias do conhecimento produzido por centros médicos, universidades e indústria farmacêutica para apontar o que há de mais eficaz na atualidade. É, portanto, uma forma de separar o joio do trigo num setor que movimenta uma enormidade de dinheiro e no qual os especialistas são bombardeados constantemente com novos medicamentos, técnicas e equipamentos. Outras fontes existentes com a mesma finalidade são os sites PubliMed, Medscape e DoctorsGuide.
É exatamente por isso que a medicina baseada em evidências vem sendo um suporte essencial para a definição de tratamentos desde o tête-à-tête do consultório até a formatação de políticas públicas globais. “Como escolher o que é melhor para o paciente? A medicina baseada em evidências tira a ênfase da prática guiada pela intuição para se concentrar na pesquisa e na sua análise estatística, com extremo rigor científico”, explica o clínico-geral e epidemiologista Álvaro Nagib Atallah, que desde 1982 dirige o Centro Cochrane do Brasil, um dos 15 que a entidade mantém espalhados pelo mundo. Nesta entrevista a PLANETA, Atallah, criador do primeiro curso de pós-graduação da área, na Universidade Federal de São Paulo, garante que as recomendações da medicina baseada em evidências são a única luz no final do túnel para guiar os médicos diante do assédio da indústria e da profusão de estudos.
O que é a medicina baseada em evidências?
Trata-se de um novo paradigma da medicina. Consiste em decidir o tratamento segundo as melhores e mais consistentes evidências científicas. Não é o que o médico acredita, mas o que está demonstrado. Nós queremos saber o que é mais seguro, eficiente, efetivo e que pode trazer mais benefício para o tomador de decisão – o médico, o sistema de saúde, o paciente, o hospital. Num congresso recente, mudamos o nome da especialidade para saúde baseada em evidências. O objetivo é mostrar que o recurso pode dar suporte não só a médicos, mas a enfermeiros, psicólogos e demais profissionais ligados à área da saúde. E claro aos pacientes, que passam a ter acesso às evidências que obtemos.
Como ela surgiu?
Surgiu a partir da percepção do epidemiologista inglês Archibald Cochrane, por volta de 1940, de que era importante fazer estudos comparativos para conhecer os resultados de diferentes tratamentos e o que eles poderiam fazer pelo doente além do que se esperava que a natureza fizesse sozinha. Ele chegou a essa conclusão observando os pacientes do campo de prisioneiros onde foi confinado, depois de ser preso lutando como voluntário na Guerra Civil Espanhola. Convivendo com o sofrimento, viu que várias pessoas com problemas graves sobreviviam mesmo sem tratamento. Isso significava que muitas vezes o tratamento não era necessariamente a melhor coisa a ser feita, pois ele não fazia nenhuma diferença.
Cochrane realizou o primeiro ensaio clínico sobre o tratamento da tuberculose, por exemplo. Em 1972, ele escreveu um livro afirmando que muitas das cirurgias executadas na Inglaterra contra a úlcera eram inúteis. Sua afirmação foi feita com base em um estudo comparativo entre pessoas operadas de úlcera e pacientes não operados. Isso mudou o tratamento padrão recomendado.
Por que só agora esse sistema começa a ter mais projeção?
Porque a área médica está sendo atropelada em seus custos por um acréscimo de mais de 20% ao ano, devido a lançamentos de remédios, equipamentos e novas técnicas. Já os países crescem 3% a 5%. Percebeu-se que haverá uma hecatombe financeira em pouco tempo se não houver capacidade de discriminar o que funciona do que não funciona.
Quais são as razões desse acréscimo?
Quando me formei, há 23 anos, a cada dez anos aparecia uma novidade no tratamento. Hoje, surgem dez por semana. E cada uma delas pode colocar em risco milhões de pacientes em qualquer sistema de saúde. Portanto, é uma questão de salve-se quem souber. Só quem tiver informação científica e souber fazer a avaliação tecnológica com competência vai ter sobrevida mais longa no sistema de economia da saúde.
Como os médicos devem se comportar diante de tantas novidades?
A indústria farmacêutica faz o seu papel. Desenvolve um produto, quer recuperar o investimento e ter lucro. É lícito. De outro lado, o limite está na capacidade de avaliação crítica de cada profissional da saúde. É aí que ele se defende de interesses que não são os do paciente. Se colocar um profissional despreparado para clinicar, ele pode cair em arapucas e levar o paciente junto. Um dos caminhos para enfrentar essa situação é formar novos profissionais com capacidade crítica suficiente para poder avaliar a informação na busca de evidências para a tomada de decisão. São profissionais conscientes de que um médico precisa estudar pelo resto da vida. É aí que nós entramos: um dos papéis da medicina baseada em evidências é selecionar e criar fontes confiáveis para serem consultadas por qualquer profissional da saúde.
Como são feitas as revisões do Centro Cochrane?
Por ano, são publicados cerca de 2 milhões de artigos científicos. A princípio, nós selecionamos cerca de mil artigos mais adequados à pergunta que dá ensejo à pesquisa. Por exemplo, dar injeções de cortisol antes do parto prematuro reduz a mortalidade dos bebês? Os estudos serão avaliados para ver se preenchem os critérios científicos exigidos. A maioria é descartada por falta de metodologia adequada. As pessoas não foram treinadas para fazer estudos comparativos ou elas têm intenção de provar algo, o que também não serve, porque é imprescindível ter isenção. No final, publicamos as revisões com base em cinco ou seis estudos bem estruturados que permitem dar sólida base científica.
Nossos estudos visam reduzir incertezas. O que funciona para a mulher branca nem sempre vale para a mulher negra e vice-versa, assim como o que faz bem para os doentes de um país em desenvolvimento é diferente do que faz bem para um país desenvolvido, tendo em vista aspectos religiosos, culturais, econômicos e genéticos, entre outros. Depois de tudo isso, os estudos ainda são mapeados e sintetizados de modo reprodutivo. Se um produto deu certo com 10 mil pessoas, dará o mesmo resultado num universo de 10 milhões de casos? Eles são avaliados pelo viés da aplicabilidade para homens e mulheres e reproduzidos para o total da população que costuma ter a doença em foco. Enfim, quanto mais rigor em relação aos aspectos e fatores de confusão, melhor é a evidência e menor o grau de incerteza.
Vocês utilizam os estudos feitos pela indústria farmacêutica?
Sim, se tiverem o padrão metodológico requerido. Porém, se existirem só estudos da indústria sobre o tema, o texto da revisão informará que o dado pode ter conflito de interesses, já que todos os dados foram gerados pelo fabricante.
Pode dar exemplos de mitos que foram esclarecidos pelas revisões?
Podemos citar a albumina humana, usada no tratamento de queimaduras ou de doenças críticas com manifestação de pressão baixa. O Ministério da Saúde constatou, após alerta feito pelo Centro Cochrane do Brasil, que, dos 59 mil casos pesquisados, o grupo que foi tratado com albumina humana registrou 7 vezes mais óbitos do que os que fizeram uso apenas de soro fisiológico. Ela custa 200 vezes mais e não é melhor do que o soro fisiológico. As revisões mostraram também que os populares “balões de oxigênio”, onde eram colocados os bebês prematuros, mais cegavam do que tratavam eficazmente esses bebês e que a vitamina C não previne a gripe.
O sr. já detectou manipulação de dados em estudos sobre medicamentos?
Existe, e é difícil de pegar. Por isso, usamos uma metodologia estatística para identificar o que chamamos de viés de publicação. Algumas vezes, a análise detalhada da distribuição dos resultados permite enxergar a falta de alguns dados. Conseguimos detectar que não foram publicados. Em geral, isso acontece porque não eram interessantes ou positivos.
Como o Cochrane age nesses casos?
Nós temos o dever de solicitar essas informações à indústria. E elas, até para mostrarem seriedade e comprometimento com a população, as têm dado. E, se há riscos para os pacientes, as indústrias deveriam divulgar e tirar os produtos do mercado.
Como os pacientes podem ser beneficiados pelas descobertas da medicina baseada em evidências?
As populações de diferentes países se beneficiam na medida em que os órgãos públicos adotem procedimentos eficazes. Isso reduz mortalidade e danos. Sem contar a economia de milhões de reais.
Há exemplos concretos disso?
Vários. Um exemplo de economia para o Brasil é o caso dos stents revestidos com as drogas paclitaxel e rapamicina, que custam cerca de R$ 15 mil cada uma, e que não são melhores do que os stents sem revestimento de drogas. Estes são igualmente indicados para reduzir as taxas de mortalidade, infarto do miocárdio e revascularização cirúrgica. Os fabricantes do produto não gostaram nem um pouco da nossa constatação.
Pode citar mudanças mundiais?
Um caso ilustrativo é o sulfato de magnésio. Era usado desde 1904 em vários países nos casos de convulsão em mulheres grávidas com pressão alta. Noventa anos depois de ser substituído por outras drogas, nossas revisões mostraram que ele nunca deveria ter deixado de ser usado, pois era o melhor e o que tinha menos efeitos indesejáveis. Até agora ainda é o remédio mais eficaz nesses casos.
O sr. já indicou um medicamento ou procedimento e teve de suspendê-lo diante de novas evidências de que causa dano à saúde?
Já. E é preciso explicar tudo ao paciente, até ele compreender. O paciente deve tomar as decisões do tratamento com o médico. Essa é mais uma mudança de paradigma da medicina baseada em evidências. Também acho que a agência norte-americana que regulamenta remédios, o FDA, deveria ser mais rigorosa. Ele permite que o medicamento seja lançado para só depois ver a sua funcionalidade na prática. Na Europa, as coisas caminham de modo mais rigoroso.
A aprovação se baseia em estudos com milhares de pessoas em diferentes países do mundo, de diferentes etnias, com realidades distintas dos pontos de vista cultural e econômico, etc. Eles devem responder ao seguinte: essa droga funciona ou não, é segura? Lida-se aqui com o mundo real, o da efetividade. E, nesse sentido, os fundamentos dos Centros Cochrane para a realização e conclusão desses estudos são mais rigorosos do que as práticas adotadas pelo FDA.
Em que medida evidências como essas são colocadas em prática?
O grande desafio da medicina baseada em evidências é levar aquilo para a prática. É um problema no mundo todo. Uma informação obtida no centro de Boston leva seis a sete anos para chegar e ser implantada na periferia. O estudo do cálcio foi publicado pela primeira vez na África do Sul, em 1998. Em 2006, uma aluna de iniciação científica verificou a proporção de mulheres em pré-natal de hospital-escola que estavam recebendo cálcio. Ela levantou um índice de 11%. Então, coisas que funcionam, são baratas e sabidas demoram muito. E coisas que as vezes não funcionam, são caras e têm muito lobby por trás chegam rápido.
Por que o sr. entrou nessa cruzada?
Porque é bom para mim, para o meu filho, para os meus amigos e para o meu planeta.
Para saber mais
Centro Cochrane: www.centrocochrane.org