01/03/2010 - 0:00
Vista da montanha Chacaltaya, perto de La Paz: a geleira que a cobria derreteu até se extinguir, em 2009.
Glaciologista famoso, o boliviano Edson Ramirez dirige uma equipe de cientistas que monitorou várias geleiras nos Andes desde 1990-91, entre eles o famoso Chacaltaya, perto da capital da Bolívia, La Paz. Pelo menos este último não precisa mais ser acompanhado. O glaciar de 18 mil anos, cuja vista encantou milhares de visitantes, se foi, deixando a cabana de esqui e outros resquícios do que foi uma vez “o resort de esqui mais alto do mundo” totalmente deslocados sobre pedras áridas.
O derretimento das geleiras andinas já dura muitas décadas, mas a recente aceleração do processo pegou os cientistas de surpresa. Onze anos atrás, Ramirez e seus colegas concluíram que a geleira sobreviveria até 2015. Mas em março de 2009, ele teve de encarar os fatos: “Chacaltaya desapareceu. Ele não existe mais.”
“A vulnerabilidade é muito maior do que esperávamos”, diz ele. “O recuo das geleiras nos Andes se tem acelerado nos últimos anos. É agora três vezes mais rápido do que era antes. Esperamos que muitos outros glaciares relativamente pequenos desapareçam na próxima década.”
Na região de Ramirez, as geleiras são, talvez, os melhores indicadores de alterações climáticas. “No entanto, os impactos das mudanças de precipitação e as mudanças profundas de muitos outros ecossistemas, como pântanos, podem ser ainda mais graves”, ressalta ele.
Noventa e nove por cento dos glaciares tropicais do mundo estão localizados nos Andes: Peru (71%), Bolívia (22%), Equador (4%) e Colômbia (3%). Uma vez que muitos rios originam essas geleiras, seu derretimento contribui para o abastecimento de água das capitais La Paz, Quito e Lima e de outras grandes cidades andinas.
As geleiras e suas bacias hidrográficas fornecem grande parte da energia utilizada na região, já que 70% da geração de energia local é hidrelétrica. A irrigação de água, essencial para a especialmente árida bacia do Pacífico, tem origem predominantemente glacial.
As geleiras funcionam como reguladores do sistema hidrológico em quase todas as áreas andinas. Elas desempenham o papel de reservatórios gigantes, capturando a precipitação na estação das chuvas e liberando água durante a estação seca.
Desde meados da década de 1970, as temperaturas da superfície na região aumentaram em 0,32ºC-0,34ºC por década. No mesmo período, o encolhimento das geleiras se acelerou. Muitas delas perderam mais de metade da sua superfície e do volume anteriores.
No início, o derretimento de geleiras significa mais água correndo nos rios. Na ausência de reservatórios adequados para o armazenamento, a água excedente é desperdiçada – e pode até provocar inundações. No longo prazo, porém, como as geleiras derretem e diminuem, o volume de recursos hídricos é reduzido drasticamente. De acordo com um relatório do Banco Mundial divulgado no início de 2009, as geleiras peruanas perderam mais de um quinto da sua massa nos últimos 35 anos, reduzindo em 12% o fluxo de água para a região costeira do país, onde vive mais da metade da população.
A desestabilização e a eventual interrupção do abastecimento de água agravam os conflitos já existentes sobre recursos hídricos escassos, como ilustra claramente o caso da capital da Bolívia, La Paz, e da vizinha cidade de El Alto. A água para abastecê-las vem principalmente de um reservatório na base dos glaciares vizinhos Tuni e Condoriri. Desde meados da década de 1950 as geleiras encolheram lá entre 40% e 50%. Ramirez e sua equipe calcularam que os glaciares Tuni e Condoriri estariam extintos em 2025 e 2045, respectivamente.
As fotos mostram dois momentos do Chacaltaya: em 1º de outubro de 1973 (acima) e em 9 de novembro de 2009 (abaixo). A conhecida pista de esqui da montanha, a mais de 5 mil metros acima do nível do mar, morreu com o fim do gelo, reflexo do aquecimento global. Sua área total de 1,6 quilômetro quadrado nos áureos tempos, nos anos 1960, caiu para 10 metros quadrados.
Pessoas de toda a Bolívia estão migrando para a capital na esperança de uma vida melhor. Como resultado, a população de El Alto cresceu de 200 mil para cerca de 900 mil habitantes em menos de 20 anos – sem qualquer planejamento urbano.
Vários anos atrás, Ramirez publicou um estudo alertando que a escassez de água começaria logo em El Alto e nos arredores de La Paz. Hoje, diz ele, a oferta em alguns períodos é de apenas 40% a 50% da demanda. “
A mudança climática restringe os recursos hídricos”, ressalta Ramirez. “Na minha opinião, no entanto, a escassez de água em El Alto e La Paz não é apenas um problema das alterações climáticas. É também um problema de gestão da água. No médio prazo, precisamos resolver os problemas da rede de distribuição de água, e talvez precisemos controlar a densidade populacional da cidade. Também é possível que precisemos construir outros tipos de infraestrutura, tais como barragens e reservatórios.”
Incerteza é a palavra-chave dos impactos das alterações climáticas nos Andes, assim como em outras partes do mundo. “Um dos fatores mais importantes é a chuva”, diz Ramirez. “Grandes problemas podem ser esperados se o volume de precipitações diminuir no futuro. Afinal, a quantidade de água proveniente das geleiras é relativamente pequena, comparada com os 80% oriundos de chuvas. No entanto, enquanto modelos de clima podem reproduzir os aumentos de temperatura com alguma precisão, é muito difícil dizer se a precipitação vai aumentar ou diminuir. Essa é a grande questão.”
Outras imagens comparativas que dão uma ideia clara da situação melancólica que se abateu sobre o Chacaltaya – as duas acima tiradas em 1º de junho de 2007, durante a primavera, e as duas abaixo, em 9 de novembro de 2009, no outono. A perda de gelo nessa montanha e em outras elevações situadas nessa área está por trás dos problemas de abastecimento de água que muitos moradores da região já enfrentam.
Ramirez conta que ele e sua equipe têm observado mudanças nos padrões de precipitação. “A distribuição no tempo se alterou desde a década de 1980”, diz.
A redução do período chuvoso e chuvas mais concentradas e pesadas têm impactos importantes sobre a agricultura e a gestão de barragens, aumentando a necessidade de armazenamento e economia de água.
Os efeitos da mudança climática na região andina estão intimamente relacionados com o fenômeno El Niño – um aumento periódico de temperatura no Pacífico Ocidental que ocorre em intervalos de alguns poucos anos. “Os eventos El Niño são mais frequentes e intensos agora do que eram no passado. Sabemos, a partir de análises de amostras de gelo, que a frequência do El Niño no passado foi de até 12 anos. Em seguida, ela caiu para 7 anos, 4 anos e agora parece estar em menos de 2 anos. Se isso é uma variabilidade natural ou uma consequência do aquecimento global, é difícil dizer. É uma das grandes questões na comunidade científica”, diz Ramirez.
Imagens da Nasa mostram o cume do Monte Kilimanjaro, na África, em 17 de fevereiro de 1993 (acima) e em 21 de fevereiro de 2000 (abaixo). O que resta de gelo deve desaparecer entre 20 e 50 anos, afirmam os cientistas. Na página ao lado, glaciar patagônico, que também vive processo de degelo.
De qualquer forma, em anos de El Niño o derretimento de geleiras na Bolívia e no sul do Peru é intensificado, não só pelas temperaturas mais elevadas, mas também pela menor precipitação. Grandes investimentos são necessários para a Bolívia se adaptar à escassez de água presente e futura: reservatórios de água e reservatórios, represas, canais eficientes de irrigação por gotejamento, renovação dos sistemas municipais de abastecimento de água para evitar vazamentos, etc.
Uma sangria sem fim
A recente polêmica sobre as geleiras do Himalaia não desmente o consenso científico de que os glaciares do mundo estão derretendo de forma acelerada
A imprensa internacional deu destaque, em janeiro, a uma retratação do Painel Internacional sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) sobre a informação equivocada, inserida no relatório de 2007 da entidade, de que as geleiras do Himalaia desapareceriam até 2035. Apesar do mal-estar causado pelo episódio, não há dúvida de que as geleiras de todo o mundo estão retrocedendo, e num ritmo acelerado. A confirmação veio de dois eminentes cientistas norte-americanos – o climatologista Ben Santer, do Lawrence Livermore National Laboratory, e o glaciologista Lonnie Thompson, da Ohio State University – numa teleconferência para a mídia poucos dias após a divulgação do imbróglio a respeito das geleiras himalaianas.
“O sistema climático nos está contando uma história consistente da influência humana”, afirmou Santer. “Podemos ler essa história em muitos aspectos diferentes da mudança do clima – em registros de temperatura, precipitações pluviométricas, gelo, neve, nível do mar e até no comportamento de eventos extremos. A mensagem nessa história é que as causas naturais, sozinhas, simplesmente não podem explicar tais mudanças.”
Segundo Thompson, há fortes evidências, oriundas de diversas fontes, de que o aquecimento global está por trás de um “significativo” derretimento de geleiras nas mais variadas latitudes – desde os campos de gelo da Antártica até o Monte Kilimanjaro, na África, passando pelos Andes e pelos Alpes. Ele afirmou também que o gelo está sumindo num ritmo mais veloz nas últimas décadas. “É muito claro que essas geleiras estão se comportando de forma semelhante”, comentou. “(Elas) são dinâmicas e estão respondendo rapidamente.”
A conclusão advém de inúmeros indícios colhidos por um longo período, desde testemunhos de gelo (amostras cilíndricas extraídas das geleiras, que contêm pistas das variações climáticas em diversas épocas) até coleções de plantas de montanhas que ficaram sem sua cobertura de gelo pela primeira vez em mais de 5 mil anos. Entre essas evidências estão, por exemplo, os dados de um exame feito em 2005 pelo World Glacier Monitoring Service em 442 glaciares. Desse total, 398 (90%) estavam recuando, 18 encontravam-se estacionárias e 26 avançavam.
Estudioso das geleiras andinas há mais de 30 anos, Thompson é testemunha pessoal desse fenômeno. Nos anos 1970, quando ele ainda buscava seu bacharelado, a Venezuela possuía seis geleiras; agora, tem apenas duas pequenas massas de gelo, que, em sua opinião, devem durar mais uns 10 anos.
Na teleconferência, Thompson evitou fazer previsões sobre o fim dos glaciares do Himalaia. Segundo ele, apenas cerca de 800 das 46 mil geleiras da região (menos de 2% do total) estão sendo monitoradas pelos cientistas. Os dados da amostra indicam que 95% dessas geleiras estão recuando, mas o glaciologista observou que é difícil saber quanta massa de gelo está sendo perdida sem conhecer a profundidade dessa camada. Assim, é impossível dizer se os glaciares do Himalaia estão derretendo mais rapidamente do que em outras partes do mundo.
De qualquer forma, um efeito negativo desse degelo – as limitações ao abastecimento de água – foi flagrado num estudo de 2008, avaliado pela Union of Concerned Scientists (União dos Cientistas Preocupados, ou UCS, na sigla em inglês). Pelos dados coletados, o fluxo hídrico das geleiras para os grandes rios que banham o subcontinente indiano, como o Ganges, o Indo e o Bramaputra, estava menor.
Outro tópico abordado pelos cientistas foi a influência do degelo sobre o nível dos oceanos. O relatório de 2007 do IPCC não abordou o assunto, mas recentes estudos avaliados pela UCS concluem que esse derretimento poderia fazer os mares subirem entre 0,8 metro e 2 metros até o fim do século 21.
“A responsabilidade pela mudança climática é desigualmente distribuída”, observa Ramirez. “Obviamente, muitas regiões emitem mais gases do efeito estufa do que a América do Sul. No caso da Bolívia, as emissões de CO2 são muito baixas, mas os impactos da mudança climática são maiores do que em outras regiões. Países como a Bolívia e a Colômbia não têm as ferramentas necessárias para os programas de adaptação. Precisamos de orçamentos financeiros para acessar as tecnologias necessárias. Por isso, o resultado das conferências do clima é muito, muito importante. Temos de considerar a Terra como um sistema – e a cooperação dos países desenvolvidos com os países em desenvolvimento é muito importante”, conclui Ramirez.
Países como a bolívia fazem emissões baixas de gases-estufa, mas sofrem impactos maiores das mudanças climáticas