01/04/2010 - 0:00
Bailarinos do Bolshoi, o renomado balé russo, chegaram em 1996 para participar do Festival de Dança de Joinville, um evento que se repete desde o início da década de 1980 e reúne artistas nacionais e internacionais em apresentações em palcos, praças e até mesmo em fábricas e em hospitais dessa charmosa cidade catarinense. Ali, a paixão pela dança – herdada dos imigrantes alemães – atrai um público de 4.500 pessoas por dia.
No espetáculo de 1996, porém, algo de novo aconteceu. Aleksander Bogatiriev, diretor artístico do Bolshoi, comentou com o então prefeito Luiz Henrique da Silveira que nutria um velho sonho: propagar os ensinamentos do balé fora da Rússia. Luiz Henrique pegou a ideia no ar e começou a dar corpo à Escola do Teatro Bolshoi, em Joinville. A instituição catarinense, por sinal, é a única no mundo. Com a morte de Bogatiriev em 1998, a bailarina Gália Kravchenko deu continuidade ao sonho do marido. Em 15 de março de 2000, a escola finalmente foi inaugurada. Desde que foi fundada até hoje, Gália leciona dança clássica feminina na instituição.
Além do aprendizado do balé clássico, requisito obrigatório da escola, as crianças obedecem a uma rígida disciplina e têm de mostrar muita garra.
O atual diretor, o pianista Pavel Kazarian, 30 anos, chegou ao Brasil para ficar apenas três meses e já está aqui há sete anos. “Queria conhecer esse país do futuro, exótico e quente, onde a maioria das pessoas leva tudo na brincadeira. Cheguei em Joinville e observei o oposto: o Brasil é o país do presente e uma referência na América Latina. O brasileiro tem muita criatividade e é comunicativo. Não bastasse, tem ainda os ritmos do candomblé, do Carnaval e da capoeira. Esta última dá flexibilidade, ginga e tem um impulso que permite saltar mais alto”, diz o pianista.
Na sua opinião, o ideal seria ter dez escolas de capoeira para cada uma de balé. “Se o Brasil comporta uma escola da magnitude do Bolshoi é porque é um país que deseja crescer. Acho bonito fazermos parte desse desenvolvimento, contribuindo para a formação da dança no Brasil”, entusiasma-se Kazarian.
A disciplina é o diferencial da escola. É muito rígida. Todos sabem disso, mas não é que a moçada gosta? Os professores, quase todos russos, já na primeira aula trabalham com as crianças de 9 anos como se fossem profissionais. Elas inspiram admiração até mesmo na coordenadora artística da escola, Maria Spadari: “Apesar de tão novos, os meninos são decididos e sabem o que querem. Têm maturidade.”
São oito anos de estudo e quase cinco horas de aulas diárias. As turmas têm no máximo 15 alunos. Na base está a dança clássica: o bailarino precisa ser um artista completo e ela facilita sua colocação no mercado de trabalho. Também fazem parte do currículo a dança contemporânea, a dança popular brasileira, a dança histórica, a prática musical com aula de piano, a teoria musical e a história da cultura e da arte dos balés. Os jovens estudam ainda o trabalho de coreógrafos e de figurinistas. Mas ali o corpo é moldado em todos os sentidos: afinal, é o instrumento do artista e quanto mais bem preparado, melhor.
SÃO OITO ANOS DE ESTUDO E QUASE CINCO HORAS DE AULAS DIÁRIAS
No curso, tudo tem a mesma importância: adquirir consciência corporal, conhecer a estrutura óssea e muscular – o que ajuda a entender e sentir o próprio corpo – e contrair a musculatura de forma correta. Comunicar com precisão e leveza, desafiando a gravidade. O medo também deve ser trabalhado, porque os riscos existem. Ninguém ali está livre de ter uma entorse ou de romper um ligamento, fatalidades que, por vezes, encerram uma carreira prematuramente. Para encarar tais desafios, é preciso muito alongamento, tomar banhos de água morna, comer muita fruta e tomar de três a quatro litros de água por dia.
Quanto aos alunos, o diferencial é ser “raçudo”, desenvolver a força de vontade. Mais do que ter o biotipo adequado, o que vale é querer ser bailarino, entregar-se com paixão nessa trajetória tão intensa quanto curta. Talvez se possa dizer da dança o que Maquiavel disse sobre política: “O sucesso não depende apenas da virtù, depende também da fortuna.” Virtù é o preparo físico, técnico e também uma qualidade elevada da alma. A fortuna, a sorte, o acaso, o imprevisível. No entanto, sem virtù, mesmo com toda sorte do mundo, não se chega a lugar algum.
Outra característica da escola brasileira é que ela reúne meninos e meninas selecionados em todas as partes do País. Em geral, os alunos ganham bolsa de estudo e moradia, onde é obrigatória a presença de uma “mãe social”, normalmente a mãe de um deles, que tem o mesmo sotaque e prepara as refeições que estão acostumados a comer: aquele tempero do feijão, a macaxeira e a tapioca. Há casos de pais que deixam tudo para viver em função do sonho do filho e se transferem para Joinville.
Todos os profissionais da escola, desde o ortopedista e o fisioterapeuta, passando pelo dentista e nutricionista, até a merendeira, trabalham em conjunto. A nutricionista orienta uma alimentação com mais mamão e banana – e sempre muita água –, o que melhora a oxigenação dos músculos, ajuda na coordenação motora, aumenta a força da contração muscular, a flexibilidade e a velocidade, resultando em movimentos mais soltos, mesmo os mais difíceis.
As turmas do têm no máximo 15 alunos. Na base do aprendizado está a dança clássica, pois o bailarino precisa ser um artista completo e ela facilita a colocação dos alunos no mercado.
A Bolshoi brasileira é uma entidade sem fins lucrativos. Dos 227 alunos do curso, apenas oito pagam a mensalidade de R$ 555; 10% pagam de R$ 50 a R$ 100 e a enorme maioria tem os estudos totalmente pagos por empresas ou pessoas físicas. Como se pode notar, é falsa a ideia de que a escola é destinada à elite.
No Brasil, o talento para a dança está no sangue. Os dirigentes e professores da escola catarinense sabem disso: uma vez por ano, Sylvana de Albuquerque, ex-bailarina formada pelo , “vai às fontes”, viajando por vários Estados e cidades, como Camaçari, na Bahia, onde acontece o Festival de Dança da Cidade do Saber. Procura novos talentos também em escolas públicas e orfanatos, onde aplica alguns testes e seleciona crianças para as provas seletivas em Joinville.
Ninguém precisa estar familiarizado com o balé. O que Sylvana leva em conta são alguns quesitos físicos: o pé no formato certo (nas meninas, o arco do pé bem pronunciado), a dobradura dos joelhos, a abertura do quadril, a flexibilidade e a coordenação motora. Ela tem na bagagem histórias tocantes. “Uma vez escolhi Geovan, um dos meninos que mais se destacaram em uma apresentação. Com ar triste, me chamou de lado para dizer que tinha um problema que talvez o cortasse da escola: ‘Tenho seis dedos em cada pé’, ele me confessou.” A despeito de sua experiência, Sylvana precisou se esforçar para não denunciar a emoção quando lhe assegurou que os dedos a mais lhe dariam a maior sorte do mundo.
É FALSA A IDEIA DE QUE A ESCOLA É DESTINADA À ELITE
Ex-bailarina e caçadora de talentos, Sylvana de Albuquerque orienta as meninas no alongamento, mas sua tarefa principal é ensiná-las a adquirir consciência corporal.
Em outra ocasião, oito crianças tinham boas chances, mas ela só deveria escolher quatro de cada vez. “Não podia deixar quatro para trás. Quem tem talento merece investimento, não é? Telefonei explicando a situação para a diretora e ela permitiu que eu levasse todas. Em outra apresentação, vi que uma das meninas tinha excelente potencial além dos requisitos físicos necessários, mas no dia da escolha final ela não apareceu. Aflita, perguntei por ela e me disseram que a mãe lhe pedira algumas tarefas domésticas. Fui buscá-la. E a encontrei em uma casa de taipa, lavando louça em um pneu de carro cortado ao meio. Hoje, ela brilha nos palcos e sempre que me vê repete: ‘Ah, se você não tivesse ido me buscar!’”
Sylvana já acompanhou a formação de duas turmas, e muitos desses jovens hoje se apresentam em balés no Exterior. Dois foram contratados pelo grupo folclórico Mazowsze, da Polônia, outros encontraram colocação nas companhias de dança de São Paulo, três no balé austríaco e um na ópera de Viena, na Áustria.
ex-aluna Mariana Gomes é a única sul-americana que trabalha no Bolshoi russo.
Há alunos que chegam por outros meios. João Vitor, 12 anos, é de Joinville: “Minha vizinha já fazia o curso e sempre me ensinava alguns passos. Quando ocorreu o processo de seleção, ela foi minha grande incentivadora. Fiz o teste e passei,” recorda ele. Por sua vez, o catarinense Rafael Lemes dos Santos, 16 anos, tentou cinco vezes antes de passar e hoje agarra com força suas oportunidades.
Mariana Drummond nasceu em Belo Horizonte (MG). Filha única, seus pais se transferiram para a cidade catarinense quando ela passou no teste. Para Mariana, o Bolshoi é a única escola que vê o balé como profissão. Também mineira, Mariana Gomes se criou na Bahia, onde aos 7 anos começou a estudar balé. Ganhou uma bolsa na Escola de Joinville aos 14 anos e hoje é a única sul-americana que dança no Bolshoi russo.
o sorriso estampa o rosto da menina, que sonha um dia ser bailarina.
Durante suas férias no Brasil, apresentou-se no Teatro Carlos Gomes, de Salvador. Mariana tem certeza de que mais do que todo o sucesso que alcançou na dança está o fato de que se tornou uma pessoa forte. “Enfrentei sozinha um país estranho, frio e com um idioma tão difícil. Em Joinville, vivi um ensaio do que estou vivendo na Rússia como profissional da dança clássica.”
Há um mundo de histórias para contar e de emoções para viver e reviver entre as paredes e nos palcos da Escola Bolshoi, cujo trabalho tem aberto o mundo para talentos e vidas que, talvez, de outro modo, nunca chegassem a desabrochar.