01/06/2010 - 0:00
Você já viu ou ouviu falar de um engarrafamento de formigas? Ou de um acidente sério envolvendo uma “batida” na trilha do formigueiro? Pois é, a entomologista Audrey Dussutour, da Universidade de Sydney (Austrália), bem que tentou por oito anos e não conseguiu. Aparentemente, acidentes de trânsito não ocorrem no mundo desses pequenos seres, apesar de fluxos de dezenas de milhares de formigas de correição carregando seus pedacinhos de folhas cortadas serem bastante comuns. Isso porque há um padrão nos fluxos de “ida e volta” do formigueiro que faz com que as operárias não colidam umas com as outras. Em vez de obter um engarrafamento, a cientista descobriu uma perfeita sequência algorítmica do tráfego desses insetos.
A descoberta é sensacional e pode servir de base para facilitar o nosso trânsito. Melhor ainda, pode ajudar na invenção de um sistema de condução de veículos sem motoristas, operados apenas por computador. “Essencialmente, a proposta é entregarmos a direção dos nossos veículos a um sistema de inteligência coletiva que os conduziria do ponto de partida ao destino final”, conta Marcus Randall, matemático e criador de softwares da Universidade de Bond (Austrália).
Na última pesquisa, publicada em fevereiro deste ano na revista Journal of Experimental Biology, a equipe de Audrey observou que as formigas que saem da colônia dão, automaticamente, passagem àquelas que voltam carregadas. Na fila das que retornam à colônia existem aquelas que não trazem carga. Em vez de ultrapassarem as que estão transportando alimento – e que por isso ficam mais lentas –, essas operárias caminham pacientemente atrás delas. Essa estratégia pouco convencional para os humanos (afinal, quem fica feliz em reduzir a velocidade quando está preso atrás de um caminhão lento?) diminui o tempo de percurso. Imagine uma formiga com uma folha pesadíssima nas costas baixando ainda mais a velocidade para outra passar, correndo o risco de derrubar as demais do caminho estreito; isso seria muito mais catastrófico do que aguardar a passagem do fluxo.
Os insetos sociais podem ser mais organizados que nós. no caso das formigas (fotos acima), as que estão de saída abrem passagem para as que retornam ao formigueiro, e as que voltam sem nada não tentam ultrapassar as outras, o que evita acidentes.
Cheirinho de formiga
As formigas surgiram há 80 milhões de anos e são parentes das abelhas europeias. Não por acaso, há semelhanças entre as colmeias e os formigueiros. a diferença é que, em vez de dançar, a formiga exala substâncias químicas chamadas feromônios para se comunicar com as demais. Quando uma formiga encontra comida, deixa uma trilha “perfumada” no caminho de volta ao formigueiro para que, posteriormente, suas colegas possam ir atrás do alimento. À medida que as demais formigas seguem pela trilha, também deixam o rastro de feromônio, até que a fonte de alimento esteja esgotada. Se elas pararem de exalar feromônios, o odor desaparecerá com certa rapidez e a trilha se perderá para sempre.
O cheiro das formigas também “diz” outras coisas. Por exemplo, se uma delas é esmagada, solta um odor que serve de alarme para que as outras entrem em pânico e se afastem do local do incidente a fim de não ter o mesmo destino. outro fato curioso é que as formigas, pelo que sabemos, foram as primeiras criaturas capazes de ensinar às mais jovens aquilo que aprenderam durante suas vidas. Quando uma formiga jovem sai pela primeira vez do ninho, uma formiga mais velha a ensina a encontrar e a agarrar o alimento. Com o tempo, a tutora diminui o ritmo para que a jovem possa realizar sua tarefa sozinha e com mais rapidez (esse comportamento foi claramente observado na espécie Temnothorax albipennis).
Esse tipo de comportamento é muito diferente daquele que os humanos costumam exibir no trânsito. As formigas instintivamente investem no bem da colônia, enquanto o homem prioriza o indivíduo. “O principal fator do congestionamento no mundo humano é o egoísmo”, diz Andreas Schadchneider, teórico de fluxo de trânsito da Universidade de Colônia (Alemanha). “Os motoristas visam à otimização do seu próprio tempo de viagem, não se importando com as outras pessoas.”
Tanto as formigas quanto as abelhas, as vespas e os cupins são seres que utilizam a eussociabilidade para sobreviver. “A vida em sociedade favorece a obtenção de alimento, defesa em grupo e proteção aos reprodutores que perpetuam a espécie”, explica Odair Bueno, pesquisador do Centro de Estudos de Insetos Sociais do Instituto de Biociências de Rio Claro da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp).
Cupins também surpreendem: eles têm um instinto que lhes permite construir os ninhos na direção dos ventos quentes, para controlar a temperatura do local. alguns cupinzeiros, como o da foto acima, são tão grandes e organizados que parecem metrópoles.
Bate-papo de formigueiro
Uma pesquisa feita pelas universidades de oxford, no reino Unido, e de Turim, na itália, demonstrou que as formigas conversam no formigueiro. a rainha emite um som que provoca reações nas operárias. os cientistas inseriram pequenos microfones e alto-falantes nos formigueiros para captar e retransmitir as “conversas”. De acordo com eles, as operárias ficam em estado de alerta ao ouvir certos sinais sonoros gravados. Por seu lado, as larvas da borboleta Maculinea rebeli se aproveitam da situação para tirar vantagem: nas imediações do formigueiro, elas emitem os mesmos sons da rainha. isso leva as operárias a cuidarem delas tão bem quanto cuidam da sua rainha.
Há pelo menos três características que determinam a eussociabilidade de uma espécie: cuidados com a cria (adultos que cuidam dos jovens); sobreposição de gerações (mais de uma geração vive na colônia ao mesmo tempo); e divisão de trabalho (indivíduos especializados na reprodução e indivíduos estéreis que desempenham as demais atividades, como coleta de alimento e água, construção do ninho e defesa da colônia). “A eussociabilidade não surgiu de uma vez. Há uma escala do nível de sociedade, em que os comportamentos sociais apareceram e foram se acrescentando”, afirma Bueno.
Muitos dos insetos eussociais fazem parte da ordem dos himenópteros, da qual a maioria possui ovipositor (órgão para postura de ovos) evoluído que se transformou em ferrão. Dentro dessa ordem, existem quatro superfamílias: a Apidae, das abelhas (das 20 mil espécies conhecidas, mil são eussociais), a Vespidae, das vespas e marimbondos (das 5 mil conhecidas, mil são eussociais), e a Formidae, das formigas (em que todas as 12 mil espécies conhecidas são eussociais).
O mapa da mina
Algumas espécies de abelhas sociais, como as operárias europeias (Apis mellifera, foto acima), comunicam a suas companheiras onde está o alimento por meio de movimentos de dança. Na “dança do círculo”, a abelha gira várias vezes nos sentidos horário e anti-horário, tocando as outras com as antenas e dando-lhes algumas gotas de néctar por trofalaxia (transferência de alimento pelo aparelho bucal entre os indivíduos de um ninho) para que reconheçam o odor que devem procurar. Na “dança do requebrado”, a abelha faz um semicírculo, anda em linha reta sacudindo seu abdômen e depois faz outro semicírculo no sentido inverso, transferindo o néctar para as abelhas próximas por trofalaxia. “a direção do movimento em relação à gravidade dentro da colmeia indica a direção do alimento em relação ao Sol e a velocidade do movimento indica a distância do alimento”, explica Paola Marchi, pesquisadora de pós-doutorado do instituto de Biociências da USP. Nem todas as espécies eussociais realizam esse tipo de comunicação. as abelhas sem ferrão emitem sons dentro da colmeia ou podem marcar o caminho das fontes de alimento com uma trilha de odores. Já as bombinas apenas transmitem os odores das flores visitadas dentro do ninho para as demais. No Brasil, essas abelhas de grandes dimensões constroem ninhos populosos na superfície do solo, geralmente escondidos na vegetação.
As vespas surgiram no período Jurássico (200 milhões a 145 milhões de anos atrás), mas seu desenvolvimento foi mais rápido após o aparecimento das flores, no início do Cretáceo (144 milhões a 60 milhões de anos atrás). Muitas delas viviam sozinhas; já outras desenvolveram hábitos sociais simples, que ficaram mais evidentes em abelhas e formigas. A vesparainha hiberna durante o inverno e desperta no início da primavera a fim de procurar um bom local para começar a colônia. O ninho começa a ser feito por meio da confecção de uma espécie de papel a partir de fibras de madeira que a vespa amacia ao mastigar e misturar a massa à saliva. O produto desse procedimento é usado para construir compartimentos em forma de favos, cada um com um ovo de onde nascerá uma vespa fêmea operária. Ao término do processo, essas fêmeas estéreis finalizarão a construção do ninho.
As abelhas surgiram há cerca de 100 milhões de anos (Cretáceo) no antigo supercontinente Gondwana, que reunia massas continentais do Hemisfério Sul, como a América Latina, a Antártica e a Austrália, a partir de um ancestral em comum com as vespas. As abelhas substituíram a caça a pequenos artrópodes pela alimentação à base de pólen e néctar.
Ao contrário do que se pensa, a maioria das espécies de abelhas é solitária. “Esse comportamento é caracterizado pela independência das fêmeas na construção e aprovisionamento de seus ninhos, ou seja, cada fêmea constrói, aprovisiona (coleta e armazena pólen e néctar) seu ninho sem cooperação ou divisão de trabalho entre fêmeas”, afirma Paola Marchi, pesquisadora de pós-doutorado do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP). Muitas vezes, a fêmea morre antes mesmo de sua prole emergir, sem contato entre gerações e, portanto, sem a característica da eussociedade. As espécies sociais mais conhecidas são as europeias (ou abelhas de mel, as que mais nos habituamos a ver e também as mais utilizadas na apicultura), as bombinas e as abelhas sem ferrão (ou meliponíneos, jataí, uruçu, mandaçaia, quaraipo, mirim), que formam grupos sociais, nos dando uma noção de como as civilizações ocorrem na natureza.
Na maioria das sociedades de insetos, a fêmea reprodutora é a fundadora da colônia. No caso das vespas a rainha começa o ninho construindo compartimentos em forma de favos com uma espécie de papel (fibras de madeira amaciadas pela mastigação e saliva). Depois de algum tempo, as operárias nascem e a ajudam a terminar o serviço.
Nessas espécies, as rainhas exercem poder sobre os zangões e as operárias. Mas como elas sabem quem é quem na colônia? “No caso mais básico, por exemplo, a diferenciação das fêmeas em rainhasreprodutoras e operárias se deve à especialização alimentar, na qual as rainhas recebem uma superalimentação e as operárias, apenas uma alimentação básica. Nas abelhas de mel, as larvas que vão originar rainhas recebem a geleia real e aquelas destinadas a serem operárias recebem apenas uma mistura de mel e pólen”, explica Odair Bueno.
As noções de coletivo e de sociedade apresentadas por esses insetos surpreendem os cientistas. Afinal, achava-se que o planejamento estratégico de um lar, os cuidados com as novas gerações, a divisão do trabalho e a luta pela sobrevivência do coletivo eram comportamentos tipicamente humanos. Agora, sabemos que esses “instintos” surgiram muito antes de o homem existir.