27/06/2019 - 18:39
Especialista em direitos humanos a partir de perspectivas interculturais, Abdullahi Ahmed An-Na’im tem buscado conciliar sua identidade como muçulmano sudanês com seu firme compromisso com os direitos humanos universais. Para ele, os direitos humanos devem ser centrados nas pessoas, e não no Estado.
Ao se referir aos três “Cs” dos direitos humanos, o que o sr. quer dizer?
AN-NA’IM – Os três “Cs” são o conceito, o conteúdo e o contexto. O conceito é a universalidade, pois falamos de direitos humanos como direitos do humano, mas queremos dizer isso mesmo? Conseguimos de fato proteger os direitos do humano como tal? Qual país faz isso? Infelizmente, a verdade é o contrário – a retórica dos direitos humanos é usada pelos países como arma para demonizar uns aos outros em suas políticas de poder, em vez de serem princípios universais de política pública para proteger a dignidade de todos os seres humanos. O segundo “C” refere-se a quais são esses direitos e, aqui, devemos admitir que se trata de um trabalho em andamento, em vez de já implementado como política pública na vida das pessoas. O terceiro “C” levanta a questão de saber se os princípios dos direitos humanos são operacionalizados na prática e acessíveis às pessoas cujos direitos estão em jogo. Que diferença os direitos humanos têm para uma pessoa que vive em pobreza extrema no Cairo, em Karachi ou Lagos?
Qual deveria ser o papel do Estado na proteção dos direitos humanos?
AN-NA’IM – A proteção dos direitos em qualquer lugar acontece no nível dos direitos civis, não no dos direitos humanos – em outras palavras, a proteção é concedida pelos países aos cidadãos e aos chamados “residentes legais”, nunca aos seres humanos como tal. É por isso que os refugiados e os trabalhadores migrantes, por exemplo, não gozam da proteção de seus direitos humanos, conforme proclamados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. Até mesmo os direitos dos cidadãos e residentes legais são determinados pelo Estado a cada passo do caminho. Sempre são países que decidem negociar tratados com outros países, ratificar ou ignorar tratados internacionais relevantes e determinar o modo e o escopo da proteção dos direitos de qualquer pessoa sujeita à sua jurisdição. Todo o campo dos direitos humanos está sob a autoridade da soberania do Estado. O direito internacional global não pretende forçar nenhum país a fazer algo. A ONU e todas as outras organizações internacionais são constituídas e governadas por países; elas só podem fazer o que os países lhes permitem, e no âmbito e forma autorizados por eles. Tudo isso pode ser apropriado para o atual estado do desenvolvimento humano, mas não é bom para a proteção dos direitos humanos. É por isso que falo do paradoxo da autorregulação pelos países em contraposição aos direitos fundamentais arraigados, que supostamente estão além do controle e da manipulação do Estado.
Mas como garantir o respeito pelos direitos humanos?
AN-NA’IM – Não quero dizer que não precisamos de direitos humanos ou que sua proteção não pode ser concretizada na prática. O que desejo enfatizar é que devemos ter clareza de onde os direitos humanos vêm e de que forma – incluindo questões sobre como esses direitos são definidos e operacionalizados. Para mim, os direitos humanos devem ser definidos pelas pessoas que os aceitam e vivem de acordo com eles no dia a dia, e não impostas por antigas potências coloniais em suas ex-colônias ou por delegados de estados pós-coloniais e burocratas internacionais. Em segundo lugar, as normas de direitos humanos devem ser implementadas por meio de etapas contextuais realistas adequadas às necessidades e aos recursos das comunidades relevantes, e não pela promulgação de uma legislação altissonante apresentada em reuniões estéreis de órgãos internacionais e conferências diplomáticas ou acadêmicas. Em terceiro lugar, as estratégias de implementação devem ser profundamente contextuais e ficar sob o controle dos sujeitos humanos desses direitos em todos os lugares.
Pode exemplificar?
AN-NA’IM – Se quero combater a mutilação genital feminina no Sudão, por exemplo, não posso fazê-lo com uma declaração emitida em Genebra, ou mesmo com o Sudão emitindo uma lei. Mas posso fazê-lo mudando as atitudes nas comunidades. Essa é a chave. No Sudão, os britânicos emendaram o Código Penal para tornar a mutilação genital feminina punível com dois anos de prisão em 1946, o ano em que nasci. Tenho 72 anos e essa mutilação ainda existe para mais de 90% da população. Que eu saiba, não houve um único processo. Matar pela “honra” é um problema semelhante. Essas são áreas claras onde precisamos ter transformação.
Qual é o melhor caminho para a mudança?
AN-NA’IM – Precisamos ir além das ideias burocráticas e formalísticas para inspirar a imaginação das pessoas e impulsionar a mudança. Às vezes as pessoas não tentam provocar mudanças porque não acham que isso seja possível. Mas elas estão erradas. Quando me mudei para Atlanta (EUA), em 1995, por exemplo, a sodomia era um crime que levava à prisão. Em 2015, a possibilidade de casais do mesmo sexo se casarem tornou-se um direito constitucional. A velocidade com que essa transformação aconteceu mostra que não é preciso começar com a mudança legal, mas com mudanças culturais e sociais. A transformação em uma comunidade é realmente a força motriz da mudança – não a consequência da mudança.
Ao se referir à cultura dos direitos humanos, que pode ser promovida por meio do discurso interno e do diálogo intercultural, o que o sr. quer dizer?
AN-NA’IM – Quando falo em cultura dos direitos humanos, refiro-me aos valores internalizados – desde a socialização precoce das crianças – que são reforçados ao longo da vida. Esses valores tendem a apoiar o respeito e a proteção dos direitos humanos dos outros, embora possam não ser identificados nesses termos. Dentro dos seres humanos, e em suas comunidades, há impulsos para respeitar a dignidade do outro e lutar pela harmonia intercomunitária, pela coexistência e interdependência mútua. Todos esses são valores de direitos humanos, na minha opinião, embora não sejam representados como tal no discurso comum. Tenho batalhado desde os anos 1980 pelo cultivo da cultura dos direitos humanos para cada comunidade como a base para o aprofundamento e a expansão do consenso internacional dentro das culturas e pelo diálogo entre diferentes culturas.
Como o sr. começou a se interessar pelos direitos humanos por uma perspectiva islâmica?
AN-NA’IM – Enquanto lutava com minha própria crença conflitante no Islã e a oposição à Sharia (o conjunto de leis da fé muçulmana) nos anos 1960, encontrei Ustadh (professor reverenciado) Mahmoud Mohamed Taha. Foi sua interpretação inovadora do Islã que me ajudou a conciliar minha crença nessa religião e o compromisso com a defesa dos direitos humanos. Taha era um engenheiro sudanês de profissão e um reformador sufi muçulmano por orientação religiosa. Ele participou da luta pela independência no Sudão dos anos 1940 e foi prisioneiro político sob a administração colonial anglo-egípcia. Fundou e presidiu o Partido Republicano, que trabalhou pela independência do Sudão como uma república democrática – daí o nome. Depois de um longo período de prisão e de uma etapa de disciplina religiosa, Ustadh Taha surgiu em 1951 com uma interpretação reformista do Islã. Após sua execução, em janeiro de 1985, e a supressão de seu movimento de reforma, deixei meu país, mas continuei a desenvolver meu próprio entendimento e aplicação da metodologia de reforma de meu professor, e tenho me esforçado para viver de acordo com seu modelo.
Conte-nos sobre seu projeto “O Futuro da Sharia”.
AN-NA’IM – “O Futuro da Sharia” (acessível neste link) combina vários temas do meu trabalho acadêmico e da defesa da mudança social, que evoluíram na minha mente desde que estudava Direito, nos anos 1960, até o presente. Em termos de reforma e estudos islâmicos, consegui conciliar meu compromisso com um estado secular de uma perspectiva islâmica – como fizera com os direitos humanos mais cedo – com minha religião. Estou convencido de que as ideias de direitos humanos e cidadania são mais consistentes com os princípios islâmicos do que com as alegações de um estado supostamente islâmico de impor a Sharia. No meu livro de 2008 “Islam and the Secular State” (Islã e o Estado Secular), apresento argumentos islâmicos para a separação entre Islã e Estado e de regulação das relações entre o Islã e a política. Argumento que a aplicação coercitiva da Sharia pelo Estado trai a insistência do “Alcorão” na aceitação voluntária do Islã. A piedade individual pode ser reconciliada com a identidade religiosa coletiva – para ser muçulmano por convicção e livre escolha, que é a única forma de ser muçulmano, preciso de um estado secular, que seja neutro em relação à doutrina religiosa e promova a genuína observância religiosa.