A lentidão e os congestionamentos são parte da realidade dos centros urbanos. Fazer o trânsito fluir, porém, é um quebra-cabeça complexo. No Brasil, o desafio envolve muitas variáveis, desde o número crescente da frota de veículos e a precariedade dos transportes públicos até o comportamento dos motoristas ao volante. Enquanto os especialistas analisam o assunto na tentativa de apontar soluções para o problema, o Psicólogos do Trânsito, um grupo de jovens paulistanos, decidiu levar bom humor à rua, mostrando que um simples gesto pode melhorar o caos do trânsito.

Com a encenação de curtos espetáculos lúdicos, o grupo transforma uma das esquinas mais movimentadas de São Paulo – o cruzamento das ruas Henrique Schaumann e Teodoro Sampaio, no bairro de Pinheiros – em palco de diversão e alegria. Sobretudo nas noites de segunda e sexta-feira, quando invade a pista e consegue o milagre de fazer o motorista rir mesmo encontrando-se preso em mais um dos gigantescos engarrafamentos da cidade. Estudos indicam que, em média, o paulistano perde 27 dias do ano no trânsito.

O Psicólogos do Trânsito nasceu em agosto de 2010, inspirado pelo trabalho do grupo terapêutico Doutores da Alegria. Desde a primeira exibição, seus integrantes – Guilherme Brandão, 25 anos; Thiago Velloso, 24 anos; Marcos Bordenalli, 36 anos; Andréa Brandão, 26 anos; Mara Brandão, 38 anos; e Cristiane Paotrigo, 32 anos – se mantêm firmes na tarefa de distribuir bom humor para quem passa à noite naquela esquina da zona oeste da cidade.

Vestidos de palhaço, eles aproveitam o tempo dos carros parados no semáforo para cumprir essa missão. Com cartazes educativos, ocupam a faixa de pedestres, fazem performances e brincam com os motoristas. Muita gente fecha o vidro do carro. No fim da apresentação de apenas um minuto, os jovens erguem uma faixa com a frase “Um dia sem sorrir é um dia desperdiçado”, de Charlie Chaplin. Em geral, nessa hora, o comportamento dos estressados muda: abrem o vidro, buzinam, acenam e seguem pelo trajeto mais descontraídos.

 

O trabalho voluntário não tem patrocinador. O esforço se paga com um sorriso. “Somos paulistanos comuns. Acordamos cedo e enfrentamos o trânsito para ganhar o pão”, conta Guilherme. Na segunda e na sextafeira à noite, essa rotina é quebrada. Depois do trabalho, eles se reúnem na sede da entidade, em Taboão da Serra, na Grande São Paulo. Ali, se vestem de palhaço e partem para o cruzamento, onde, das 19h30 às 21h30, alegram os motoristas, exceto quando chove.

“Gostaríamos de expandir a iniciativa para outros semáforos, mas não temos recursos”, admite Guilherme. Além da manutenção do site www.psicologosdotransito.org, o grupo tem despesas com o aluguel da sede e com maquiagens e fantasias. “Nossa maior dificuldade é a parte financeira, mas ela não é maior do que a vontade de ajudar as pessoas”, ressalta. “Saber que conseguimos reduzir o estresse do motorista em pelo menos 1% e que, por

isso, ele não vai brigar quando chegar em casa é a nossa maior recompensa”, completa Andréia.

 

 

 

“Não temos educação, do ponto de vista da igualdade. Obedecer no Brasil significa subordinação e inferioridade. Quem é superior não obedece.”

Roberto DaMatta

 

 

Jeitinho brasileiro

A iniciativa do Psicólogos do Trânsito é exemplar, mas é uma gota no meio do oceano de problemas causados pelo trânsito, no qual o estresse, o mau humor, a agressividade e a violência ao volante são uma constante. Autor do livro Fé em Deus e Pé na Tábua – Ou Como e Por Que o Trânsito Enlouquece no Brasil (Ed. Rocco), o antropólogo Roberto DaMatta afirma que a origem do comportamento individualista e violento do motorista deriva da formação cultural do Brasil, país com origem escravista que se tornou republicano privilegiando a aristocracia. Ocorre que, em terras tupiniquins, o automóvel é visto e usado como instrumento de poder, dominação e divisão social. Enquanto nos demais países o espaço público pertence a todos, aqui os pedestres são cidadãos sem direito de exercer a cidadania e a igualdade de direitos em relação a um espaço que é de todos. A suposta aristocracia motorizada considera os transeuntes como obstáculos que atrapalham o trânsito.

Os pedestres, por sua vez, também desrespeitam as leis e atravessam a rua com o sinal fechado ou fora das faixas. Ambos desrespeitam as regras do sistema e criam, cada um à sua maneira, sua relação com a rua. “O brasileiro não aprende em casa ou na escola a ver o outro como alguém que tem os mesmos direitos de usufruir o espaço que é de todos. Para nós, é o contrário: o espaço de todos pertence a quem ocupá-lo primeiro, com mais agressividade”, explica DaMatta.

Para o antropólogo, fechar, xingar e ser agressivo no trânsito são apenas expressões do conceito do “sabe com quem está falando?” e do “jeitinho brasileiro”, práticas comuns de um país que, apesar de ser República, nunca perdeu os privilégios aristocráticos. “O brasileiro se considera aristocrático no trânsito quando é essencialmente transgressor: não obedece a lei, dirige embriagado, desrespeita os pedestres, tem esquemas próprios para transferir suas multas e, quando parado por um policial, tenta suborná-lo”, diz DaMatta. “Não temos educação, do ponto de vista da igualdade. Obedecer no Brasil significa subordinação e inferioridade. Quem é superior, não obedece. Quem faz as leis não obedece.”

Cenas de rua: Guilherme Brandão, Thiago Velloso e Marcos Bordenalli divertem os motoristas no congestionamento.

Para o brasileiro, as incivilidades praticadas no trânsito são cometidas sempre pelos outros, nunca por ele. Daí a dificuldade em se criar a cultura da direção defensiva, na qual os motoristas se antecipam às reações e ações dos demais. “Afinal, quem tem de se preocupar com prevenção é sempre o outro. É ele que tem de abrir caminho para o dono da rua.” A solução para combater os ecos de escravidão e de clientelismo que permeiam a sociedade brasileira, segundo DaMatta, é clara: “Temos de falar mais em igualdade, ensinar mais igualdade. A sociedade brasileira deve ser educada, debater e conhecer as suas qualidades e fragilidades. Só assim conseguirá amadurecer e mudar.”

 

Movido a raiva

“A pessoa que mais se irrita é a que mais tem tendência a ser agressiva no trânsito”, afirma a psicóloga Cláudia Aline Soares Monteiro, autora da primeira tese de doutorado sobre motoristas brasileiros, defendida em 1994, no Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (DF). Na pesquisa Variáveis Antecedentes de Erros e Violações de Motoristas, a psicóloga traçou o perfil dos motoristas que mais sentem raiva, conduzem agressivamente, erram e violam as leis do trânsito com frequência.

Dos 923 entrevistados, 84% admitiram ter pensado em fazer ou cometer agressão física, 84% dos condutores revelaram ter se comportado de modo agressivo, 83% afirmaram sentir raiva enquanto dirigiam e 83,9% confessaram ter xingado. Entre outros dados, o estudo comprovou que as pessoas com mais tempo de habilitação eram as mais agressivas. Já os jovens de ambos os sexos, de até 27 anos, solteiros e sem filhos cometiam mais infrações.

Para Cláudia, a mudança desses comportamentos exige investimento na educação do trânsito, ensinando os motoristas a lidar com as situações estressantes com mais tolerância diante da pressa e da irritação de outros pedestres e veículos. Ouvir música e respirar fundo são dicas possíveis para quem deseja manter a calma. Por sua vez, o Estado também deve dar a sua contribuição: colocar mais placas de sinalização e semáforos nas vias, além de fiscalizar o cumprimento das leis.

Recentemente, a Organização das Nações Unidas (ONU) proclamou a década de 2011 a 2020 como um período de esforço intensivo para a redução das mortes em acidentes de trânsito. Como os jovens do Psicólogos do Trânsito, qualquer cidadão pode ajudar e fazer a sua parte.