A enfermeira Fernanda Azevedo prepara-se para atender pacientes em Lichinga, no norte de Moçambique.

Mônica Guarnieri Machado é pediatra especialista em HIV. Ela se emociona ao contar que no país onde vive e trabalha, Moçambique, no sudeste da África, cerca de 85 bebês são infectados pelo vírus todos os dias. A cifra revela a falta de políticas públicas de saúde, a carência de recursos e a miséria que assolam o país há décadas. Diante delas, a brasileira encara uma triste escolha profissional quase diária: “Se são amamentadas, as crianças correm o risco de ser contaminadas pelo HIV por meio do leite materno. Mas se suspendemos a amamentação, acabam morrendo de disenteria ou diarreia por consumirem água e alimentos contaminados.” Paulista de Itapetininga, 42 anos, Mônica acostumou-se a enfrentar as adversidades africanas da sua profissão.

Ela é um dos sete profissionais brasileiros que vivem em Moçambique, atuando como voluntários da organização médico-humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF), fundada na década de 1970, na França, por médicos e jornalistas. Ao todo, há cerca de 100 voluntários brasileiros espalhados por diversos países, a maioria na África, todos atuando em missões que envolvem graves catástrofes naturais, conflitos armados e emergências médicas.

No caso de Moçambique, as missões da MSF começaram em 1985 e se concentram no combate à Aids, doença que atinge grande parte da população do continente africano. Embora façam parte da MSF há mais de duas décadas, os brasileiros aumentaram a sua participação nos últimos anos, sobretudo a partir de 2006, quando foi montado um escritório, na cidade do Rio de Janeiro, responsável pelo recrutamento de novos profissionais.

 

Com 20 milhões de habitantes, Moçambique é o país com mais voluntários brasileiros da Médecins Sans Frontières, devido à língua comum portuguesa, à herança cultural luso-africana e ao fato de a medicina brasileira ter se tornado uma referência mundial no tratamento da Aids. Enquanto no Brasil os índices de contaminação são de 0,5% da população, em Moçambique atingem mais de 17%. Em algumas regiões, como a capital, Maputo, o índice chega a 25% e, em alguns bairros da capital, a alarmantes 36%.

O perfil de Mônica Machado se assemelha ao de profissionais que atuam em trabalhos voluntários e humanitários ao redor do mundo. A médica iniciou sua carreira em pediatria comunitária, voltada para a saúde pública. “Nunca tive a intenção de ficar rica, de ter consultório particular e de aproveitar o status que a minha profissão pode dar. Quando fiz o vestibular já sabia o que queria”, explica. “Sempre partilhei da consciência social promovida pela Teologia da Libertação e pelos trabalhos missionários. Sou ligada aos movimentos sociais da Igreja, e isso já me encaminhou para esse tipo de vida”, ressalta.

 

Acima, Fernanda Azevedo atende uma paciente. No alto, o carioca Rafael Machado em ação. No alto, à direita, a paulista Júlia Schmidt. À direita, a fila de doentes em Lichinga.

Como integrantes do MSF, os médicos recebem uma ajuda de custo muito aquém do que ganhariam exercendo a profissão no Brasil, sem contar o status e a possibilidade de ascensão social e econômica de que gozam por aqui. Mônica, no entanto, se diz realizada. Todos os dias, ela caminha até um centro de saúde da capital e de lá segue para postos de saúde da periferia, onde acompanha os médicos moçambicanos, geralmente um profissional por posto, orientando-os e dando suporte para casos mais graves. Atualmente há cerca de mil médicos no país. Apenas 40 são formados por ano. Moçambique ocupa um dos últimos lugares do Índice de Desenvolvimento Humano da ONU: é o 165o país mais pobre das 169 nações listadas no IDH.

A 2 mil quilômetros de Maputo, em Lichinga, no norte do país, o carioca Rafael Machado, de 32 anos, infectologista com especialização em HIV, conta que durante a faculdade de medicina sempre teve a intenção de “lidar com gente”. “Fui fazer infectologia, com especialidade em medicina tropical, o que me levou à saúde pública, pois a maioria das doenças tropicais ataca populações de baixa renda”, conta. “Na hora de fazer a residência, deparei-me com uma vaga para atuar com o HIV. Topei na hora, pois havia envolvimento social, um peso na sociedade e um grande tabu, e eu gosto de desafios.”

Rafael foi recrutado pela MSF em dezembro de 2009, e em janeiro de 2010 seguiu para sua primeira missão em Moçambique, sendo atualmente o único infectologista da região Norte do país. Além da ausência de estrutura e de equipamentos, um dos principais problemas enfrentados em Lichinga é a falta de medicamentos, que obriga muitos pacientes a abandonar o tratamento. “A maioria vive em locais distantes e não consegue voltar com frequência para buscar seus remédios. O ideal seria que levassem uma quantidade suficiente para permanecer onde vivem por mais tempo, mas não há medicamentos para isso e muitos acabam abandonando o tratamento”, diz o médico.

A falta de estrutura do país encontra reflexo no cotidiano de Rafael e de sua esposa, Franciane Fardin Sacramento, 29 anos, capixaba de Vitória, que também atua como enfermeira em Lichinga. Os dois se conheceram quando trabalhavam com comunidades indígenas no Brasil. Na casa onde vivem, as pequenas headlamps, lanternas usadas em acampamentos, são dependuradas em local fixo e estratégico, nas paredes. Precisam estar à mão diante dos constantes cortes de energia elétrica que assolam Lichinga.

Assim, ao menor tremer das luzes, sabem onde encontrá-las. Os brasileiros têm um jeitinho especial para adaptar-se às adversidades.

17% dos moçambicanos estão contaminados pelo HIV

 

Acima, um diminuto Luiz Otávio Guimarães (de mochila preta, no centro da foto) inspeciona a conservação dos medicamentos em Maputo. No interior, as estradas precárias desafiam as visitas às aldeias.

Logística e administração

Acima, a pediatra paulista Mônica Machado.

Quando se pensa em Médicos Sem Fronteiras, um equívoco comum é achar que a organização é formada só por médicos e enfermeiras. Além deles há muita gente envolvida com a logística das missões, que permite aos médicos chegar a locais de acesso dificílimo, em condições precárias de higiene, sem água ou alimentos. Na verdade, entre os brasileiros recrutados em todo o mundo, apenas 40% são médicos.

Boa parte da equipe brasileira em Moçambique atua em áreas de organização, de logística e de coordenação dos projetos. É o caso do manauara Luiz Otávio Morais Guimarães, 36 anos, que, depois de uma carreira na área de administração e logística em multinacionais, resolveu mudar de vida e aderiu à MSF, trabalhando em países como o Maláui (vizinho a Moçambique) e a Colômbia.

A logística desafia o atendimento médico tanto quanto as doenças

“Todo mundo pensa que a MSF é feita só de médicos”, diz Luiz Otávio. “Mas para um médico chegar às aldeias e atender os pacientes é preciso ter toda uma estratégia que garanta local para dormir, água potável, comida e a conservação dos medicamentos. Isso muitas vezes pode ser um grande, imenso, problema”, explica o administrador.

Luiz Otávio foi para a MSF no momento que percebeu sua insatisfação com o trabalho. Mesmo trabalhando em grandes empresas, queria mudar de vida. Ao ver um anúncio da entidade em Manaus, resolveu participar do recrutamento e foi aceito. Seis meses depois desembarcava no Maláui. Antes de Moçambique, trabalhou na Colômbia, em Papua-Nova Guiné e no Estado de Alagoas, durante as enchentes de 2010, que deixaram milhares de desabrigados. Em dezembro do ano passado, mudou-se para Maputo, onde atua como coordenador de logística.

A paulistana Kelly Cavalete é outra brasileira que assumiu um cargo de responsabilidade na entidade. Formada em enfermagem, atua como uma das coordenadoras do projeto de HIV, em Maputo. Ela e o marido, Bruno Cardoso, paulista de Caçapava, 35 anos, são responsáveis por equipes que atendem pacientes de HIV nos postos de saúde da capital e prestam auxílio aos médicos que atuam no interior do país.

Kelly conta que seu trabalho é fruto de uma mudança de foco da MSF. “Quando foi criada, na década de 1970, a organização tinha como foco prestar assistência em guerras e catástrofes mundiais, geralmente em situações de emergência. Com o tempo, passou a focar também situações que exigem um trabalho mais demorado e que envolvem ações educativas e de treinamento de pessoal, como é o caso dos países africanos às voltas com altos índices de contaminação por HIV.” Nesses casos, o trabalho desenvolve-se em longo prazo, pois trata-se de uma doença que exige acompanhamento constante.

Kelly e Bruno conheceram-se na Amazônia. Participaram de diversas missões da MSF, em vários países, antes de decidir virar um casal e de ter um filho, Madou, que vive com eles em Maputo. Atualmente, a enfermeira brasileira está grávida do segundo filho.

Afinidades eletivas

Embora esteja a mais de 8 mil quilômetros do Brasil, Moçambique tem muitas coisas em comum com nosso país. O gosto pela música, pela dança, pelo futebol, e a alegria contagiante do povo, mesmo com os graves problemas que enfrenta, fazem parte do jeito de ser do moçambicano e do africano em geral. Outro ponto em comum, naturalmente, é o idioma, trazido pelos portugueses no século 16. A população fala dezenas de línguas autóctones, mas o português é o idioma oficial.

Mosquiteiros contra a malária, em Maputo. Abaixo, a alegria contagiante das mulheres da aldeia de Sabura.

“Na prática, entretanto, descobre-se que há muita gente que não fala português, sobretudo conforme se afasta da capital”, diz a infectologista paulista Júlia Chagas Schmidt, de 33 anos, que atua em Maputo. “Muitas vezes achamos que os pacientes estão entendendo o que perguntamos durante uma consulta, pois respondem com um aceno de cabeça, mas muitos não falam nem entendem português e têm vergonha de confessar. Temos que perceber prestando atenção a sutilezas”, explica a médica.

A alegria é a vitamina da celebração da vida contra a adversidade

Júlia chegou a Moçambique para um período de seis meses, tendo passado antes pela Índia, sua primeira missão na MSF. A experiência, de junho de 2009 a maio de 2010, fortaleceu sua ética profissional. “Fui para a MSF porque o que mais gosto é o atendimento clínico. É sempre uma nova descoberta, sempre se aprende. Com o tempo você começa a entender culturalmente algumas doenças, começa a ver muito mais no rosto das pessoas”, explica Júlia, que chama a atenção na capital por sua altura, a pele branca e os cabelos louros curtos.

Já a enfermeira paulista Fernanda Cândido de Azevedo, atualmente em sua primeira missão no MSF, tem outra justificativa para a escolha: “Percebi que queria experimentar essa vida quando aconteceu o tsunami na Indonésia, em 2004. Senti o mesmo na tragédia do terremoto do Haiti, em janeiro de 2010. Fiquei com vontade de ir para lá, para ajudar de verdade”, conta.

Pesquisando na internet, Fernanda deparou- se com uma reportagem sobre organizações humanitárias. “Estava querendo me reencontrar, queria dar um sentido para a minha vida, crescer como pessoa, e aquele anúncio me soou como ideal para seguir esse caminho”, diz a enfermeira, que, após uma difícil seleção, foi chamada para atuar em Moçambique.

Fernanda é testemunha das dificuldades no interior do país. Assim como Rafael e Franciane, ela vive em Lichinga, atuando em um projeto chamado Profilaxia de Transmissão Vertical, que atende mulheres grávidas portadoras de HIV e busca evitar a transmissão da doença para o feto. Visita comunidades distantes, onde a língua do colonizador quase não deixou marcas. Distribui medicamentos, cartilhas, cartazes e fornece orientação periódica a aldeias como Chiulaula, Lulimili e Namacula, na periferia de Lichinga. Também visita locais mais distantes, na zona rural, como Sabura, que não possui energia elétrica para preservar os medicamentos. Nesse caso, os pequenos geradores de energia movidos a óleo, fornecidos pela MSF e por outras entidades humanitárias, são a chave da sobrevivência.

Há muitas dificuldades, mas também há momentos encantadores e mágicos. Pessoalmente, não precisei de muito tempo para descobrir ao que a enfermeira Fernanda se referia. Enquanto visitava a comunidade de Sabura com a brasileira, fomos surpreendidos por uma aglomeração ruidosa de gente atravessando a pequena aldeia de casas de barro e palha. A música e os tambores imediatamente dominaram o ambiente.

Encenava-se a tradicional cerimônia de posse do régulo, o chefe da aldeia. Enquanto os rapazes tocavam, as mulheres cantavam e dançavam. Nossa presença intensificou a empolgação. Quando os moçambicanos olham nos olhos, transmitem alegria de viver. Não há tragédia sem júbilo. A alegria é a vitamina da celebração da vida contra a adversidade.