01/04/2012 - 0:00
Atila Roque é cientista político e diretor da seção brasileira da Anistia Internacional. Foi diretor da ActionAid International e um dos fundadores do Fórum Social Mundial.
Mobilizar cidadãos comuns em defesa dos direitos humanos é a premissa básica que norteia o trabalho da Anistia Internacional (AI), organização fundada em 1961 pelo advogado inglês Peter Benenson, indignado com a notícia da prisão de dois jovens portugueses que ousaram brindar à liberdade durante a ditadura salazarista. Hoje com mais de três milhões de membros e apoiadores voluntários espalhados pelo globo, a AI obtém vitórias importantes por meio de seu considerável poder de pressão, como, por exemplo, a adoção da Convenção contra a Tortura pela ONU e a libertação de centenas de pessoas detidas por suas crenças políticas em vários países.
No fim do ano passado, a AI reabriu o escritório do Rio de Janeiro, que havia funcionado de 1984 até 2001. A direção da seção brasileira foi entregue ao cientista político Atila Roque, ex-assessor do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, no Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), além de ex-diretor-executivo da ONG ActionAid International, em Washington, e um dos fundadores do Fórum Social Mundial. Nesta entrevista, Roque fala sobre as prioridades da Anistia no Brasil e os avanços e desafios para os direitos humanos no país e no mundo.
Por que a Anistia Internacional decidiu reabrir seu escritório no Brasil?
O peso internacional crescente do país e a força da sociedade civil brasileira tornaram inadiável a retomada de uma presença da Anistia Internacional aqui. As conquistas recentes e os desafios pendentes no campo dos direitos humanos fazem do Brasil, em grande medida, um laboratório do que é possível alcançar com a mobilização social e a participação cidadã.
Nos últimos dez anos, o que mudou no cenário dos direitos humanos?
É importante lembrar que, mesmo sem uma presença física no Brasil, a AI nunca deixou de trabalhar sobre as violações de direitos humanos no país. Entretanto, durante esse período registraram-se importantes mudanças que precisam estar refletidas no modo como trabalhamos aqui. A principal foi a consolidação da democracia e de uma perspectiva mais ampla de direitos humanos, incorporando as dimensões econômicas, sociais e ambientais. Também assistimos ao fortalecimento dos instrumentos legais e institucionais de combate a violações de direitos. Uma das áreas em que estamos verificando importantes progressos, ainda que a estrada adiante continue árdua, é a da segurança pública e da violência, especialmente a cometida contra a vida. No âmbito das iniciativas legislativas, devemos destacar a entrada em vigor da Lei Maria da Penha, que representou um verdadeiro salto civilizatório no combate à violência contra as mulheres.
Quais as prioridades da AI no Brasil?
A AI não deixará de ser uma organização internacional, portanto continuaremos a combinar uma agenda de defesa de direitos humanos em escala global com questões domésticas. A presença do escritório no Brasil vai permitir um aprofundamento das relações com a sociedade civil e uma proximidade maior com as pessoas diretamente afetadas pelos problemas. Entre os temas prioritários destacamse a questão da segurança pública, a reforma da polícia e a violência letal, inclusive a situação prisional, a violência contra as mulheres, as milícias e os homicídios de jovens negros. Estaremos atentos à temática da reforma urbana, especialmente ao impacto trazido pelas remoções forçadas sobre as comunidades, e às grandes obras que serão realizadas para a Copa do Mundo e a Olimpíada; à questão indígena e às consequências sobre as comunidades locais dos projetos de infraestrutura e desenvolvimento, como o complexo hidrelétrico do Rio Madeira e a Usina de Belo Monte, no Pará. Também dedicaremos atenção especial à política externa brasileira e ao posicionamento do país em relação a violações de direitos em outras partes do mundo, tais como as que vêm ocorrendo no contexto da chamada Primavera Árabe.
Foco da Anistia: família de posseiros na zona leste de São Paulo, removida pela subprefeitura de Guainazes.
Quais são os desafios para esse tipo de trabalho no país?
O principal é o de contribuir, a partir da mobilização cidadã e do diálogo aberto na esfera pública, para fortalecer e consolidar uma cultura de respeito aos direitos humanos. Entender que não pode haver direitos para uns e direitos diferenciados para outros reflete o grau de civilização de uma sociedade. O respeito aos direitos humanos deve ser para todos, sem exceção. No passado, era forte, em certos setores da sociedade, o preconceito de que direitos humanos significavam defesa para bandidos. Felizmente, isso está mudando. Mas é preciso continuar um trabalho constante de desconstrução de estereótipos para eliminar o sentimento irracional que gera insensibilidade e nos leva a ter medo da criança que está na rua. Desenvolvimento e democracia não podem prescindir do respeito aos direitos humanos.
Muitas das principais violações de direitos humanos cometidas no Brasil são questões antigas, como a violência policial e a situação penitenciária. O que falta para esses problemas serem resolvidos?
Em primeiro lugar, a questão da impunidade. No Brasil, ainda não existem mecanismos eficazes de controle e de responsabilização pelos crimes cometidos por agentes do Estado, e não me refiro apenas àquela pessoa que se encontra na ponta executora da violação de direitos – o policial ou o agente penitenciário, para citar exemplos mais constantes. É necessário que aqueles em posição de comando e que admitem a prática sistemática de tortura ou extermínio como método de repressão ao crime também sejam investigados e punidos. Em segundo lugar, é preciso haver uma vontade política de acabar com essas violações. Infelizmente, temos visto como interesses políticos ou econômicos de alguns continuam a prevalecer. Na área de segurança pública, temos testemunhado alguns avanços, mas estamos longe de colocar em prática um processo de reforma que promova um impacto sistêmico e nacional. A segurança pública no Brasil ainda sofre distorções decorrentes de anos de autoritarismo e de baixíssimo nível de integração entre unidades federativas e União. Faltam instrumentos de informação. Não há possibilidade de acessar dados online a respeito de crimes. É preciso uma política que premie o agente que faz bem seu trabalho e que puna rigorosamente aquele que rompe com a legalidade. É fundamental ainda a ênfase no diagnóstico – caso contrário, não sabemos onde investir nem como fazer política pública. A agenda dos sonhos seria tratar a segurança de forma integral, não apenas como uma resposta a uma situação de emergência.
A criação da Comissão da Verdade sofreu críticas por um possível caráter “revanchista” e por “reabrir feridas” da história do país. Como avançar nessa área?
É inadmissível que ainda tratemos o tema da repressão como tabu e em meio a tanta dificuldade de acesso à informação. As famílias precisam saber o que aconteceu com seus filhos e filhas. Não olhar com transparência e sem medo é se recusar a aprender com o próprio erro. É um tumor que segue consumindo as forças da democracia brasileira. A comissão deveria ter sido instalada há tempos. É muito positivo que o Estado e a sociedade brasileira finalmente comecem a examinar o que aconteceu nos anos de terrorismo de Estado no país. Acreditar que garantir justiça para vítimas de crimes contra a humanidade seja “revanchismo” é perigoso. A falta desse processo no Brasil não somente afetou as vítimas da ditadura e seus familiares como o país inteiro. Durante vários anos de pesquisa, após o fim da ditadura, a AI continuou a testemunhar ex-agentes do regime militar em posições de poder nos vários sistemas de segurança pública.
As práticas de tortura e execuções sumárias se enraizaram como métodos de repressão policial, reforçados por um conceito profundo de impunidade. Reabrir o debate sobre esse período e acessar sem restrições os documentos é importante para mostrar que o Brasil nunca mais aceitará essas práticas.
Melhorar a segurança pública e as condições das penitenciárias é um imperativo no Brasil.
O ano de 2011 foi marcado por movimentos populares no Egito, Síria, Chile e Estados Unidos. Ainda que distintos, todos remetem à luta por direitos, à presença maciça da juventude e ao uso de novas tecnologias. Estamos vivendo um novo momento na luta pelos direitos humanos?
Estou convencido de que vivemos um período de grandes invenções e de renovação das formas de mobilização e lutas sociais, o que não significa o fim dos movimentos sociais e das instituições políticas como as conhecemos ao longo do século 20. Em comum a todas essas revoltas, encontramos um sentido renovado da noção de direitos humanos e de mobilização cidadã. Estamos falando de pessoas comuns que se sentem mobilizadas a se manifestar contra situações de injustiça e de opressão. A crise é profunda e irreversível, mas os seus resultados vão depender da capacidade de aproveitarmos este momento para realizar uma revisão dos valores que constituem as sociedades, trazendo para o centro a questão do respeito aos direitos humanos. A AI quer dar uma contribuição relevante a esse processo. Um dos desafios será criar os canais de diálogo e de comunicação com esses novos movimentos predominantemente de jovens à margem da sociedade, em grande parte do “Sul” do mundo – nos países em desenvolvimento ou pobres -, e fazer com que suas vozes sejam incorporadas às redes e aos movimentos dos quais fazemos parte, assim como representadas nas campanhas e ações que promovemos pelo mundo.