01/04/2012 - 0:00
Um estudante chinês perguntou a um professor de uma universidade sueca o que significava a palavra “amor”, argumentando que não a encontrava no dicionário da sua língua. Os colegas interferiram dando exemplos de tradução. O chinês riu e disse: “Esse amor de vocês não existe na China!” O episódio é uma expressão discreta dos efeitos colaterais da duração da cultura maoísta na China – uma ideologia esvaziada de sentimentos pessoais. Não houve jeito de convencer o estudante de que a palavra amor costuma ser entendida universalmente e que os chineses foram os primeiros a traduzir uma das sagas sobre o tema: a peça Romeu e Julieta, escrita por Shakespeare entre 1591 e 1595.
Muitos conhecem a tragédia romântica ambientada na Verona medieval, cujas linhas gerais são essas: Romeu, filho da família Montecchio, se apaixona por Julieta, filha dos inimigos Capuletos. Os jovens convencem um frei a casá-los em segredo. Os pais da moça descobrem os planos de fuga do casal e, desconhecendo que já eram esposos, obrigam a filha a casar com um parente do príncipe de Verona. Julieta evita a união fingindo-se de morta, com a ajuda de uma droga que a deixa sem pulsação. Romeu, desavisado, reencontra Julieta aparentemente sem vida e se suicida tomando um veneno. Julieta volta à consciência e vê seu amor morto. Desesperada, enfia no próprio peito o punhal que Romeu tinha consigo. Tragédia total.
William Shakespeare (1564-1616) e uma cena do filme Romeu e Julieta, com Leslie Howard e Norma Shearer, sucesso mundial em 1936. Ao lado, a Piazza Viviani, em Verona.
A sacada da casa da família Capuleto é um dos elementos mágicos do drama. Nos palcos, funciona como uma moldura para o encontro dos apaixonados. Mas os atuais guias turísticos de Verona explicam, um tanto apreensivos, que o balcão visto na Via Cappello, no centro histórico da cidade, “não é real”. Na verdade, há alguns anos um comerciante veronês teve a ideia de construir uma sacada em uma altura oportuna e pendurar no muro da casa uma placa dizendo Casa di Giulietta. Dentro da residência que teria pertencido à família Dal Cappello que seria uma corruptela de Capuleto, Julieta teria nascido, entre os séculos 13 e 14.
No pátio da casa encontra-se uma Na Casa de Julieta, os turistas podem subir na sacada romântica. Embaixo, acariciar o seio direito da estátua da heroína é uma receita de felicidade. estátua de bronze da heroína, hoje convertida em objeto de peregrinação: tocar seu seio direito traz felicidade ao casamento, diz-se. As paredes da entrada abrigam milhares de mensagens e cartas de amor (coladas com chiclete). Para crédulos e céticos uma loja de suvenires oferece toalhas gêmeas, alianças, lençóis, xícaras, livros, CDs, camisetas, bótons e broches.
“Esta era a casa dos Capuletos onde nasceu a Julieta, por quem tanto pensaram os corações gentis e cantaram os poetas (Sec. 13 e 14)”
Na Casa de Julieta, os turistas podem subir na sacada romântica. Embaixo, acariciar o seio direito da estátua da heroína é uma receita de felicidade.
A sacada romântica, a Casa de Julieta, os festivais de ópera do teatro Arena di Verona e o talento de Shakespeare atraem um milhão de turistas por ano a Verona. Só quem mora na Via Capello, no mesmo quarteirão da Casa de Julieta, reclama de congestionamentos e do barulho. Alguns já tentaram vender suas casas, mas não aparecem compradores. A criatividade romântica floresce pela cidade. Nos subterrâneos do antigo Convento de San Francisco al Corso, por exemplo, encontra-se a Tomba di Giulietta, para onde a heroína teria sido levada após sua morte. Nos restaurantes da bela Piazza Viviani não é difícil encontrar fettuccine a la Montecchio e spaghetti a la Capuleto.
Indústria cultural
As receitas culturais têm sido benéficas para Verona, cidade que chegou aos tempos modernos com uma integridade admirável. A maioria das construções romanas continua em pé. O anfiteatro para 30 mil pessoas da Arena di Verona é um verdadeiro monumento.
No período entre as duas guerras mundiais, a Itália sofreu uma terrível decadência econômica com a grande depressão econômica mundial. Os jovens emigraram. Os que permaneceram precisavam de engenhosidade para sobreviver. Foi nesse contexto que o sucesso mundial do filme Romeo and Juliet, de George Cukor, em 1936, veio dar um formidável impulso para o abalado ethos da cidade.
Acima, promoções para casamento em Verona, suvenires românticos e o suposto túmulo de Julieta.
Acima, os italianos Biaggio e Petronilla, os chineses Ewon e Richard e o articulado gerente de marketing Sebastiano Leder.
Alguns veroneses decidiram vender a história do romance frustrado para entreter os de menor poder aquisitivo. A saga de Romeu e Julieta logo conquistou o mercado por meio de músicas, espetáculos de teatro, cartõespostais, amuletos, etc. A ideia atraiu a atenção de turistas ingleses e alemães, mas durante a Segunda Guerra Mundial foi novamente esquecida. Na era da indústria cultural, entretanto, seu apelo se tornou irresistível.
A sacada recuperou sua posição privilegiada, fomentada pela publicidade e a distensão nos países da Europa Oriental e na China, que liberou as fantasias individuais da juventude romântica e milhares de turistas. Verona oferece, durante todo o ano, em várias línguas, promoções para luas de mel e salões de festa e de casamento ao estilo Romeu e Julieta. Os felizardos ganham, no pacote, entradas para as óperas na Arena.
Os historiadores italianos parecem pouco interessados em discutir a veracidade do drama de Shakespeare, mas observam que uma adolescente do século 16 jamais apareceria sozinha na sacada de casa. As representantes do sexo feminino das classes altas não estavam autorizadas a sair desacompanhadas, e a Julieta shakespeariana tinha 13 anos.
De frente para o pátio da Casa de Julieta está o Hotel Il Sogno di Giulietta, instalado em um casarão do século 16, com reservas permanentemente esgotadas. “De noite, os portões do pátio são fechados, e os hóspedes têm o luxo de aproveitar esse que é o espaço mais romântico do mundo, tomando um champanhe debaixo da sacada, ao lado da estátua de Julieta”, explica Sebastiano Leder, diretor de marketing. “Tenho orgulho de ser um dos criadores do conceito deste hotel único.” Sua equipe organiza noivados, festas de casamento e jantares românticos.
Na alta temporada, Verona vira um ímã para recém-casados. Ewon Tong e Richard Choo, de Taiwan, foram um dos muitos casais que escolheram a cidade para passar a lua de mel. “Já conhecíamos a história de Romeu e Julieta, mas aprendemos mais com os guias quando chegamos aqui. Adoramos a casa de Julieta. Nossa lua de mel ganhou uma dose extra de romance. Ewon ficou tão extasiada que emudeceu”, conta Richard.
Os italianos Petronilla Pierro e Biaggio di Simone dirigiram 750 km de Salerno a Verona para encontrar um filho na cidade. “Mas tão importante quanto reunir a família foi visitar a Casa de Julieta. Ela desempenha um papel importante na nossa vida”, diz o casal. Eles acreditam que, de alguma forma, Julieta contribuiu para 25 anos de casamento feliz. “Já prometemos voltar para retribuir com uma nova visita nas nossas bodas de ouro.”
Direitos humanos
Na Itália, berço da música romântica, os contos e poemas de amor floresciam muito antes de Shakespeare colocar Romeu e Julieta em cena. Relacionamentos trágicos eram o tema recorrente das canções cantadas com acompanhamento de instrumentos de corda. Os músicos encontravam mercado em Verona, Ravena, Veneza e Florença. Nas ruas de Verona, um tenor e um barítono ressoavam lamúrias de amor e logo um compositor escrevia uma música. Dessa efervescência nasceria a ópera barroca, em Veneza, com o Teatro San Cassiano, em 1637, a primeira casa de ópera pública.
Shakespeare projetou o drama do amor inviável no palco após ler o poema do inglês Arthur Brooke, A trágica história de Romeu e Julieta, publicado em 1562. Brooke ambientara a sua tragédia em Verona, baseando-se na versão adaptada em 1559, pelo francês Pierre Boaistuau, de uma tragédia similar escrita pelo italiano Matteo Bandello, em 1554. Bandello, por sua vez, tomara como fonte o romance de 1530 de Luigi Da Porto, baseado na versão de Masuccio Salermitano, escrita em 1476 e ambientada em Siena – a suposta primeira versão do mito.
Como se vê, há vários Romeus e Julietas. Da Porto contribuiu para a versão moderna, transportando-a de Siena para Verona, inventando os nomes Montecchio e Capuleto e afirmando que a história era verídica. Mas há enredos semelhantes muito antes de todas essas releituras. O amor impossível já motivava audiências em Os contos efésios, de Xenofonte Efésio, ou na história de Píramo e Tisbe, nas Metamorfoses do poeta romano Ovídio, ambos nascidos antes de Cristo.
Na era renascentista, os contos sobre amores desafortunados emocionavam o público. As tramas refletiam o sacrifício recorrente de jovens inocentes por convicções religiosas e disputas políticas, motivos que levaram os europeus a conflitos sangrentos. Para garantir direitos sociais e políticos, os nobres e os clãs negociavam a união dos filhos para conservar ou aumentar os privilégios e a honra da família. Um casamento era um tratado político entre dinastias; e o amor, uma arma fatal.
Os jovens que se apaixonavam “equivocadamente” estavam condenados a morrer ou a se render às normas. Nesse sentido, o Romeu e Julieta de Shakespeare foi uma das primeiras obras na literatura europeia a despertar o inflamado debate sobre direitos humanos. O autor inglês tinha contato direto com as classes altas e estava bem informado sobre o costume europeu de trocar filhas da realeza e da nobreza para garantir trono e fortuna.
Shakespeare era um católico em uma sociedade anglicana, um jardineiro de sementes liberais que escrevia peças para o seu próprio teatro, The Globe, em Londres. O impacto do tema seduziu muita gente, mas ainda demoraria vários séculos até que um grupo organizado de mulheres inglesas, na primeira década de 1900 as damas das meias vermelhas -, pressionasse o governo a implementar por lei o direito das mulheres a escolher seu próprio futuro.
Produção fértil
Todos os verões, a desgraça do casal é encenada na Arena di Verona. Chineses, europeus e africanos choram copiosamente pelos amantes. Principalmente os chineses, que lembram seu próprio drama de apaixonados que não conseguiram se unir nem mesmo no túmulo, a lenda de Liang Shanbo e Zhu Yingtai, escrita no ano 200, análoga ao mito de Romeu e Julieta. Há poucos anos, a cidade de Ningbo, na ilha de Taiwan, onde se passa o mito, mandou uma estátua de mármore das duas Borboletas Apaixonadas, Liang e Zhu, para uma praça de Verona.
Shakespeare morreu com 52 anos. Sua produção mostra uma impressionante criatividade e conhecimento da sociedade e da política da sua época. Fez fama rapidamente, em poucas décadas. Escreveu 40 dramas sobre temas históricos e costumes sociais, entre os quais destacam-se Romeu e Julieta, Hamlet, Otelo, Macbeth, Rei Lear e O Mercador de Veneza, que oferecem um perfil intenso e psicológico sobre a vida e suas paixões, o amor, o ódio, o poder e a difamação, os sonhos e os mitos.
Além das peças, o autor publicou 154 sonetos e participou como ator em seu próprio teatro. Sete anos após sua morte, suas obras começaram a ser encadernadas e vendidas ao público. Para muitos trata-se do melhor escritor do mundo. Na Inglaterra, há um intenso debate acadêmico sobre a dúvida de todas as peças de teatro atribuídas a ele serem realmente de sua pluma. Os dramas não têm assinatura. Os admiradores do autor, entretanto, argumentam que todas as peças são escritas de uma maneira singular: shakespeariana.
Em 1595, Londres era um centro europeu das artes dramáticas, movimentando vários teatros e um grande número de atores mal pagos. A Inglaterra e a Espanha cultivavam a tradição de teatro da Antiguidade, entretendo os cidadãos com narrativas sobre assassinatos, amores, pecados, ilusões e comédias de intriga. Com o advento da ópera, os teatros passaram a competir em luxo e pelo prestígio dos solistas, dos músicos e dos compositores. Depois que Romeu e Julieta cantaram sua desdita em um palco, nunca mais saíram de cena.
Os restaurantes de Verona também aproveitam o mito romântico. Casais jovens cobrem de mensagens a entrada da Casa de Julieta.