O novo Museu Casa Concha, em Cusco, recuperou os objetos levados de Machu Picchu para os Estados Unidos.

Em 2011 comemorou-se o centenário do achamento de Machu Picchu pelo historiador americano Hiram Bingham III, mas só agora as comemorações começaram de fato para os peruanos: o Museu Peabody, da Universidade Yale, nos Estados Unidos, está devolvendo ao Peru a totalidade das 47 mil peças de ouro, prata e cerâmica, mais esqueletos, múmias e fragmentos retirados de 170 tumbas de Machu Picchu entre 1911 e 1915.

Com a abertura do novo Centro Internacional de Investigação Inca-Machu Picchu, em janeiro, no Museu Casa Concha, em Cusco – com a mais bela e importante coleção de objetos da cultura incaica já exposta -, peruanos e turistas não precisam mais pedir “visto” americano para ter acesso à história da cidadela.

Machu Picchu, a 2.400 m de altitude sobre o vale do Rio Urubamba. Abaixo, o historiador norte-americano Hiram Bingham, seu descobridor.

Em 1990, arqueólogos e antropólogos peruanos definiram como obrigação a recuperação dos objetos devolvidos pela instituição americana. No começo, Yale não deu muita importância à reclamação, mas quando o governo do Peru, por intermédio dos presidentes Alejandro Toledo e Alan García, promoveu uma campanha agressiva na mídia, exerceu pressão política e ameaçou ir à Corte Internacional de Haia denunciando o roubo dos seus bens culturais, a ficha caiu.

“Em 2008 a universidade aceitou que as peças eram propriedades dos peruanos e concordou em devolvê-las. Mas, antes, ditou regras e impôs inúmeras condições, entre elas a construção de um museu, a escolha do seu curador e a formação de um centro de pesquisas”, conta o arqueólogo Luis Lumbreras, diretor das pesquisas do Centro Arqueológico Peruano Chavín de Huántar.

Lumbreras foi amigo do antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro e palestrante na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ele ressalta que, apesar de existir uma lei de 1822 que proíbe a saída de antiguidades do país, as escavações feitas por Bingham, em 1911, foram autorizadas pelo governo peruano, que também concordou com o envio das peças para os Estados Unidos. Portanto, não houve pilhagem nem contrabando.

No sentido horário, a partir do canto esquerdo, alto: jarro do século 15 usado para guardar chicha (cerveja); tecidos usados pelos moradores; as tranças com nós de um khipu, usado para contabilidade; faca ritual de ouro e objetos de prata achados nas tumbas de Machu Picchu.

O entalhe dos blocos de pedra das casas intriga os arquitetos até hoje.

“É importante dizer que no começo do século 20, na América Latina, nenhum país tinha arqueólogos formados, talvez só o México”, diz o cientista. “Hiram Bingham não pode ser considerado culpado de usurpação, nem mesmo de ser uma espécie de Indiana Jones, como muita gente imagina. Se tivéssemos que escolher um culpado seriam os malandros museólogos de Yale que durante décadas negaram a restituição das peças”, atiça.

Bingham era um historiador interessado em refazer a trilha do revolucionário venezuelano Simón Bolívar. Ao chegar ao Peru, em 1908, ficou sabendo da suposta existência de uma cidade de ouro perdida na selva. Baseando- se em dados científicos e históricos, e não a esmo, foi atrás e achou a aldeia escondida no alto de penhascos a 2.400 metros de altitude no vale do Rio Urubamba, construída pelos incas no século 15. “Foi a lenda do Eldorado que motivou a descoberta de Machu Picchu”, afirma Lumbreras.

A localização já não era segredo para muitos peruanos. Antes da chegada de Bingham, há evidências de que huaqueros, caçadores de relíquias, já tinham passado pela cidade, inclusive deixando rastros de queimadas. Para aquecer a fogueira das vaidades, historiadores peruanos apontaram a descoberta de mapas que mostram referências, em 1874, da cidade sagrada dos incas. Graças a eles, o missionário britânico Thomas Payne e o engenheiro alemão J. M. von Hassel teriam ido a Machu Picchu na última década do século 19. O próprio Bingham reconheceu, em cartas enviadas à National Geographic Society, instituição que patrocinou as escavações da cidade perdida de 1912 a 1915, que a primazia da descoberta não era sua. Há muita confusão sobre a história da descoberta da cidade inca. Mas o certo é que foi Bingham que, em 1912, colocou Machu Picchu no cenário mundial, após uma reportagem sensacional da revista National Geographic.

POLÊMICA VIVA

Toma lá, dá cá. Um movimento mundial envolvendo antropólogos, museólogos e historiadores induz governos e museus a devolver a certos países as peças pilhadas, saqueadas ou compradas ilegalmente há séculos. O tema é extremamente controverso, pois a aquisição dos objetos e das coleções proliferou durante tempos coloniais e guerras. Em muitos casos, elas estavam abandonadas e em deterioração nos países de origem.

Objetos saqueados devem ser devolvidos? O Louvre expôs objetos roubados por Napoleão do Egito por poucos anos. A queda do imperador, em 1815, levou à devolução de algumas relíquias, mas não do Obelisco de Luxor, que continua a adornar a Place de la Concorde, em Paris.

O movimento cresceu na década de 1980 quando a atriz Melina Mercouri se tornou ministra da Cultura da Grécia e liderou uma campanha pela repatriação dos mármores de Elgin (“Mármores do Partenon”, segundo os gregos), que ainda estão no Museu Britânico. A instituição prometeu devolvê- los assim que a Grécia construísse um museu para abrigá-las. O museu foi feito, inaugurado e as relíquias não vieram.

Seria fácil acrescentar itens famosos na lista do esbulho colonial, como o busto de Nefertiti reivindicado pelo Egito; os bronzes de Benin exigidos pela Nigéria; e, recentemente, o “Cilindro de Ciro”, do século 6 a.C., que abalou as relações entre o Irã e a Inglaterra – a peça babilônica considerada o mais ancestral documento existente sobre direitos humanos.

Nos Estados Unidos, tribos indígenas como os tlingits, do Alasca, os navajos

e os hopis entraram em pé de guerra para obter o retorno dos objetos

sagrados e ritualísticos às comunidades. Como resultado, leis foram

promulgadas para balizar o assunto. O modelo fez escola. Hoje os museus

evitam a pecha de receptores de obras roubadas ou adquiridas no mercado

negro. Tornou-se inconveniente e moralmente indefensável tê-las no

acervo. Mas os reclamantes também precisam mostrar serviço.

Em 2008, o Louvre, o Museu Britânico, o Metropolitan, de Nova York, e

os State Museuns, de Berlim, assinaram a Declaração sobre a Importância

dos Museus Universais, que adverte que a repatriação de objetos históricos

pode empobrecer a cultura mundial. “Museus não servem apenas aos

cidadãos de uma nação, mas às pessoas de todas as nações”, ressaltam.

Acima, o arqueólogo Luis Lumbreras, do Centro Arqueológico Chavín de Huántar. Abaixo, o antropólogo José Balena, curador do Museu Casa Concha.

Tesouro em casa

Em 1920, algumas peças foram devolvidas. Mas somente com o acordo entre Yale e a Universidade San Antonio de Abad, de Cusco, em 2008, o primeiro lote com 367 objetos de um total de 47 mil foi enviado à Casa Concha, em setembro passado. O museu, um antigo palacete colonial construído sobre ruínas incas, abrigará em dez salas as principais peças da herança inca, em exposição permanente.

“Os fios condutores da exposição são múltiplos e recuperam a história da construção da cidade ritualística de Machupicchu pelo imperador Pachakuti, sua importância religiosa, e finalizam com a redescoberta por Bingham”, explica o antropólogo José Altamirano Balena, curador do Museu Casa Concha. No idioma quéchua, a cidadela é grafada como uma única palavra cujo significado é Montanha Velha – o que quer dizer que até hoje não se sabe seu nome verdadeiro, apenas o nome da montanha onde estava situada.

Balena é um dos poucos pesquisadores renomados que conseguem descrever a cultura inca ao público leigo sem sacrificar sua complexidade. Segundo ele, a importância do repatriamento dos objetos comove os peruanos. “Termos conseguido de volta essas peças lavou a nossa alma. A presença delas aqui em Cusco adquire um encantamento maior. A cultura inca era muito ligada à energia, à vida e ao conhecimento do destino das pessoas impregnado nas peças.”

A instalação do centro de investigação inca na cidade é um estímulo ao conhecimento. “Uma visita ao museu antes da ida a Machu Picchu terá um valor cultural sem precedentes. para qualquer turista. Os visitantes aprenderão que a montanha sagrada para qual se dirigiam os incas era o lugar onde interpretavam seu destino e sua identidade. As montanhas funcionavam como antenas dessa energia reveladora.”

A cultura inca era rica em conceitos cosmológicos. Seu universo repousava numa hierarquia de forças vitais, tendo o homem como a força que liga objetos inanimados às forças espirituais. Uma vez conhecidas as antiguidades, Machu Picchu revela uma paisagem mais rica, emoldurada pelos cumes das montanhas e pela floresta que entra por suas portas e janelas. Essa é uma cidade fascinante justamente porque se esconde.

Fachada e pátio interno do Museu Casa Concha, em Cusco, instalado num antigo palacete colonial.

 

Em sentido horário, a partir do canto esquerdo: estátuas incas deterioradas; lhama de ouro; estátua de ouro de uma divindade; tecido antigo preservado; jarras para servir água e chicha.