01/05/2012 - 0:00
Paula Rego, em 1990, no ateliê de Londres
O projeto do museu Casa das Histórias Paula Rego, em Cascais, leva a assinatura de um arquiteto português famoso, Eduardo Soto de Moura de Porto, autor de um edifício ultramoderno, rodeado por um bosque de árvores altas e finas, projetado para celebrar a obra de Paula Rego. Por entre os ramos graciosos surgem pirâmides vermelhas do teto de uma verdadeira casa de fadas, fundada em 2009 para ser um espaço reservado à pintura da artista. Mesmo se estivesse vazia, a casa-museu de Cascais já refletiria, em si, a arte europeia viva, aberta e acessível, em estrutura e cor.
A simbiose entre o museucasa de Cascais e a obra de Paula Rego é ostensiva. O interior branco assimétrico, com espaços sem adornos, oferece um silêncio gratificante para a contem plação das telas de dez metros de largura, repletas de personagens intrigantes que contam as experiências de vida da pintora. Os quadros de Paula comovem as visitantes e provocam insegurança nos homens. Expressam os sentimentos profundos de uma adolescente portuguesa que procura entender a vida a partir de uma família burguesa, culta e liberal, durante a ditadura salazarista em Portugal.
O Amor, numa visão desamparada do sentimento
Paula conquistou a liberdade criativa fora do país, ao entrar para a Escola de Arte Slade, da Universidade de Londres, uma instituição formal e conservadora, entre as melhores da Europa, onde vários pintores passaram os anos de formação. Lá, ela pôde, então, virar do avesso a mulher portuguesa.
”Quanto eu tinha 15 anos, meu pai me chamou e disse que eu tinha que ir embora de Portugal, porque não era um país bom para as mulheres”, afirma Paula numa entrevista concedida em 2009. “As mulheres não podiam nem ter conta bancária. Os maridos mandavam e batiam nelas. Ou se submetiam ou ficavam a jogar cartas. Meu pai, então, me mandou para Londres.”
Um golpe do destino aproximou-a do colega Victor Willing, um pintor inglês sete anos mais velho, com quem se casou aos 24 anos de idade. Tiveram três filhas. Voltaram para Portugal e moraram na casa do pai de Paula, em Ericeira, por seis anos. Nessa época, a artista trabalhou com colagem e fez sua primeira exposição em 1965, na Sociedade Nacional de Belas Artes em Lisboa, e, logo depois, no Instituto de Arte Contemporânea em Londres.
No ano seguinte, em luto pela morte do pai, recebeu a notícia de que seu esposo sofria de esclerose múltipla, com prognóstico grave. A família regressou para Londres e Victor Willing viveu durante 24 anos o agravamento da doença, sempre incentivando a mulher a evoluir na qualidade dos desenhos e das pinturas, feitos em pastel sobre papel e em grandes proporções. Mesmo doente e preso à cama, Willing produziu até o fim da vida, em 1987, apoiado pela mulher. Dessa perspectiva o casal assistiu à passagem dos anos 1960 e 1970, da contracultura e do radicalismo político, em Londres.
Os quadros intrigantes do tríptico O Homem Almofada
Do fundo das suas raízes portuguesas, a arte de Paula Rego expressa uma intensa força narrativa, às vezes brutal, sobre a desigualdade entre os sexos, o aborto ilegal e a opressão da mulher. O grotesco, o ambíguo, mas também o senso de humor e o carinho atraem o público. As cores intensas e o movimento das figuras, algo surrealistas, sugerem que, por trás, há uma alma em batalha com seus demônios, e, na vanguarda, uma celebridade artística de primeiro nível. “Tenho medo de tudo, do escuro e de mim mesmo”, explicou a pintora na inauguração do seu museu, em Cascais. “Pinto para dar face ao medo.”
As imagens violentas – como o quadro Mulher- Cão, que mostra uma mulher curvada, com as mãos no chão, como se estivesse de quatro, a latir – expressam lendas e relatos populares infantis que nada têm de inocentes. “Os contos tradicionais portugueses não são nada infantis. São violentos e brutos. Nossa tradição é das mais rudes. Em geral são contos sórdidos, maus e cruéis”, diz a pintora. Segundo ela, a mulher-cão tem boas razões para ser agressiva: “Ela precisa ter coxas grossas para ter força a fim de saltar e morder os homens. Porque ela é presa.”
O painel Prole’s Wall, exibido em Cascais
A Jangada, uma das divagações oníricas da pintora
Mestre desenhista
Atualmente Paula Rego mora em Londres, onde trabalha em seu estúdio, e em Portugal, numa casa de veraneio no Estoril. Continua no metiér com o mesmo entusiasmo de sempre, preparando figurinos em papel-machê ou em plástico para compor modelos para seus quadros. Seu estúdio está cheio de acessórios, roupas, couro, crânios de plástico e moldes do corpo.
Também continua a reviver as sagas da infância contadas por uma avó devota. Desse ambiente tira a inspiração para as telas. Dedica-se com muito afinco aos desenhos. Embora seja mestre em acrílicos e pastel sobre papel em grandes dimensões, não se considera uma pintora. “O que eu faço é desenhar. Desenho mais que posso.”
Poucas artistas foram tão bem-sucedidas no ofício. Primeiramente, por ter sido consagrada em vida e, depois, por sempre vender bem os quadros. Recentemente uma de suas obras foi vendida em um leilão por £ 600 mil (R$ 1,8 milhão).
Desde os anos l960, Paula é convidada a exibir nas mais célebres galerias e museus da Europa e dos Estados Unidos. Ela possui quatro títulos de doutora honoris causa de universidades de prestígio e foi condecorada como Dama do Império Britânico.
Como se vê nas cenas de sua imaginação, sua vida não foi um mar de rosas. O pânico tem sido um inimigo permanente. Aos 77 anos, a artista confessa “um grande medo de acordar uma manhã sem nenhum figurino visível na imaginação”. Uma das suas representações sobre a família – um homem sentado no dormitório, sendo ajudado a se vestir por uma mulher e uma menina, enquanto outra menina reza ao lado de uma janela – expressa um imenso sentimento de perda. Em cores vivas, a artista já pintou sua desolação.
Em 2011, Paula Rego empenhou-se a fundo em apresentar alguns de seus pintores ingleses favoritos no seu museu, em Cascais, organizando uma mostra séria, elegante e acadêmica, completamente oposta à sua produção inconformista.
Para saber mais
veja no YouTube: É assim Paula Rego Igualdade de Gênero, Paula Rego
Contemplando as diferenças de concepção de mundo entre os artistas e a anfitriã, é possível entender o sentimento de perplexidade da menina que chegou à Escola de Arte Slade, em Londres, com 16 anos. O choque cultural colocou em alerta sua imaginação e sensibilidade para sempre.
Paula Rego e seus modelos, em 2010, no ateliê de Londres. 2010