01/05/2012 - 0:00
Muçulmano inglês lê, em Londres, tradução do Corão em bengali, cosmopolitanismo inexistente nos Estados Unidos
Qualquer reflexão sobre culturas em contato próximo – traduzido por tensões, conflitos ou por busca de aproximação – começa necessariamente com um esforço para definir o que se entende por cultura. Adotando a perspectiva do antropólogo norteamericano Cliff ord Geertz, pode-se observar que a cultura não é exatamente um modelo de comportamento ou uma estrutura social, mas a forma como criamos sentido e o exprimimos no seio de um modelo ou de uma estrutura. A cultura é o acúmulo de ideias, de crenças, de gestos, de rituais e de práticas que levam uma sociedade a se perceber como um conjunto dotado de coerência e portador de sentido, como um povo distinto que possui uma identidade própria.
Nem por isso as culturas são herméticas, pois é raro que possam se proteger das pressões e influências externas. Na verdade, elas são permeáveis, dotadas de capacidade própria e, ao mesmo tempo, da particularidade de estarem sempre comprometidas, até certo ponto, em processos de interpenetração e de hibridização. Elas encontram, então, um modo equilibrado de avançar lado a lado e se amalgamar, promovendo uma interação limitada e pragmática com as culturas vizinhas, sem deixar de experimentar dificuldades para conservar a percepção de si e manter sua identidade fundamental.
O conflito ocorre quando um sistema cultural mostra-se ameaçador em relação a outro. Esse sentimento origina-se, quase sempre, na intrusão violenta de um sistema no espaço ocupado por outro, digamos, um “imperialismo”, em pequena ou grande escala, característica onipresente na história da humanidade. O medo do outro é, porém, mais intenso e insidioso quando resulta de uma situação de hibridação rápida e invasiva, que cria um profundo sentimento de perda de controle.#Qe comportamento, crenças e rituais seculares dissolvem-se e começam a parecer estranhos, dando a impressão às populações de que, apesar de se manterem em seu próprio território, já não são elas mesmas. Atualmente, essa inquietação associada à hibridização contamina quase todas as culturas da Terra. A questão consiste em saber se é possível superá-la ou atenuá-la. Se a resposta for afirmativa, como proceder e em que medida tal desafio será vencido?
Derrubar estereótipos
Para responder a essa pergunta, vamos debruçar-nos sobre a reação norte-americana às sociedades árabes e muçulmanas. Ninguém se surpreenderá se afirmarmos que essa reação é, no mínimo, confusa. De modo geral, os norte-americanos manifestam desejo de compreender e, até mesmo, de aceitar as diferenças culturais, mas estão intimamente convencidos da superioridade do american way of life.
À esquerda, jovens americanas muçulmanas em boliche, em São Francisco. À direita, exposição sobre arte islâmica em Nova York
A atual reação norte-americana, concentra-se sobretudo nos temores (em relação, principalmente, ao “terrorismo islâmico”), e não tanto na busca de uma compreensão abrangente e matizada das culturas, ao mesmo tempo diversas e complexas, das sociedades árabes e muçulmanas. Tal busca de compreensão existe de fato nos EUA, mas apenas em círculos restritos (basicamente, nos meios universitários), e não no público em geral, influenciado pela mídia e pela internet.
Inevitavelmente, na sociedade norte-americana, os estereótipos sobre árabes e muçulmanos predominam. A questão consiste em saber como proceder para que um grande número de norte-americanos questione tais estereótipos, enfrente seus medos e procure de fato entender essas culturas.
Inútil deixar-se induzir em erro: mesmo que consigamos tal compreensão, continuarão existindo diferenças culturais muito difíceis de aceitar por questionarem e ofenderem os valores e os modos de vida norte-americanos. Basta um exemplo simples: para os norte-americanos, a burca e o véu simbolizam – ou, antes, encarnam – o aviltamento e a despersonalização da mulher. A priori, nenhum debate ou explicação conseguirá superar essa reação quase instintiva.
Existem outros problemas. É possível chegar a compreender as diferenças culturais sem aceitá-las, por não considerá-las opções pertinentes. Essa rejeição implica necessariamente um conflito? Não tenho uma resposta categórica para essa pergunta, mas convém formulá-la de forma séria e honesta.
Espelho desconfiado
A tentativa de compreender uma cultura é necessariamente seletiva. É impossível saber tudo sobre tudo. Quais aspectos das culturas árabe e muçulmana devem ser privilegiados, então? Quais grupos deverão ser escolhidos para representar essas culturas junto à nossa sociedade? Até agora, os norte-americanos tendem a se interessar por dois grupos, com a exclusão de quase todos os outros: os militantes religiosos radicais e as mulheres. Os debates e as análises tendem a ser distorcidos pelo medo e pelas inquietações suscitados por eles.
No que concerne ao primeiro grupo, podese dizer que os norte-americanos veem o Islã à luz dos eventos de 11 de setembro de 2001 e os árabes, à luz do conflito israelense-palestino. Penso que o inverso também seja verdadeiro: os árabes do Oriente Médio e da diáspora veem os EUA sob o prisma palestino-israelense. Cada um é o reflexo da desconfiança, do medo e do ressentimento pelo outro – um coquetel ideal para provocar tensões e suspeitas, e até mesmo rejeição cultural recíproca.
Quanto aos militantes americanos em favor dos direitos das mulheres, alguns estão bem informados e dão testemunho de uma sensibilidade cultural que faz falta a outros. Em ambos os casos, suas intervenções atingem as dimensões mais íntimas da vida privada e contestadas com maior obstinação das sociedades árabe e muçulmana; assim, por vezes, as tentativas de aproximação acentuam as tensões culturais, em vez de dissipá-las.
Intermediários culturais
A literatura e as demais manifestações artísticas abrem atalhos originais para a compreensão das culturas. Em artigo da The New Yorker, Claudia Roth Pierpont faz um balanço revelador: “Os romances árabes fornecem excelentes respostas às perguntas que, sem estarmos conscientes, teríamos desejo de nos formular.” É exatamente isso. Infelizmente, apenas uma ínfima parte da literatura árabe, publicada nos últimos 20 anos, foi traduzida para o inglês.
Exposição sobre Andy Warhol, em Dubai. Abaixo, muçulmana norteamericana em manifestação contra o terrorismo
Embora os romancistas construam seus próprios universos – que não são simples reflexos de suas culturas, nem falam em nome de suas sociedades, mas expressões individuais fundamentais -, suas obras constituem produtos diretos e autênticos das culturas no centro em que vivem. O mesmo se passa com músicos, pintores e escultores.
A despeito de todos os limites e de todas as reservas que possam ser evocados, a literatura, a música e as artes plásticas continuam a ser o melhor meio para os estrangeiros entenderem uma cultura diferente. Elas oferecem as mais variadas oportunidades de percepção das culturas árabes e dos modos pelos quais elas tentam se definir.
No entanto, para poderem servir como ponte entre culturas, tais artes precisam de tradutores, artistas e intérpretes. Esses intermediários têm sido considerados, muitas vezes, como simples meios de transmissão do esforço criativo dos autores. Com toda a evidência, essa visão não faz jus à profundidade do conhecimento e da compreensão indispensáveis para que os produtos de um sistema cultural se tornem inteligíveis, portadores de sentido e úteis aos membros de outra sociedade. A obra tanto do tradutor quanto do intérprete musical não constitui, talvez, uma criação em si, mas, como recriação, ela é um elemento essencial do processo de aproximação cultural.
Para concluir, diria que só quando os Estados Unidos dispuserem de um grupo mais importante de tradutores e intérpretes conseguirão assumir as realidades complexas das culturas árabes. Sobretudo quando esses intermediários deixarem de ser atores marginais da vida intelectual e cultural do país para ser considerados realmente como atores que usufruem de todas as prerrogativas.
Essa evolução não acontecerá de um dia para o outro e não resolverá todas as tensões e inimizades existentes entre culturas tão diferentes. Mas ela teria, ao menos, o mérito de permitir que os norte-americanos comecem a ver os árabes e os muçulmanos tais como eles são na verdade, com complexidade.
Convém esperar que, em compensação, os intelectuais e os eruditos árabes façam um esforço semelhante para compreender o modo de vida e de pensamento norte-americanos, o que, admito, não é fácil. Mas é uma tarefa que devemos empreender se pretendemos, um dia, superar a confusão e a desconfiança mútuas que impregnam tão profundamente essas duas culturas.
*Stephen Humphreys é professor de história islâmica na Universidade da Califórnia (EUA). Artigo escrito para o Prêmio Unesco-Sharjah para a Árabe em 2010.