01/07/2007 - 0:00
Caliente explosão Devido às mudanças de temperatura, ao amanhecer, os gêiseres de El Tatio entram em ação e os visitantes podem se extasiar com o cenário composto pela explosão de altas colunas de água fervente e de vapor jorradas por eles. Na foto abaixo quatro flamingos andinos alçam vôo no Salar de Atacama.
Os fenômenos naturais sempre fascinaram os humanos. Quando manifesta sua força, a natureza nos adverte que nossa escala é acanhada. Somos insignificantes diante do movimento de um furacão, da energia de um vulcão ou da potência de um terremoto ou tsunami. Essa relação de respeito, amor e medo também provoca uma grande atração e temos de aproveitar a ocasião quando o planeta desvenda algum de seus segredos. Foi o que aconteceu comigo no Chile.
A razão principal da minha visita ao Deserto de Atacama era experimentar, com todos os meus sentidos, a explosão dos gêiseres de El Tatio. Na hora do nascer do Sol, dezenas de colunas de vapor e de água fervente brotam de um platô nas encostas andinas. Um espetáculo que somente a natureza pode produzir.
Logo que cheguei a San Pedro de Atacama, busquei informação sobre El Tatio. “Os gêiseres estão a 4.320 metros. Por conta da altitude e do frio, é bom esperar alguns dias para fazer essa visita”, me avisou a chilena Adriana Gómez, que conhecia bem a região. “Melhor deixar esse passeio para quando o seu organismo estiver mais habituado ao clima.”
Confesso que essas sábias palavras se transformaram em uma ducha de água gelada, tão fria como a temperatura de uma noite no deserto. Mas fazia sentido: a vila de San Pedro estava a 2.500 metros sobre o nível do mar e um par de dias para me acostumar ao oxigênio rarefeito seria uma boa tática.
O Deserto de Atacama é o lugar mais seco do planeta. As estatísticas das últimas quatro décadas comprovam que a média de chuva não passa de meio milímetro por ano. Duas são as razões para que esse superlativo seja realidade. De um lado, o Atacama é protegido pela Cordilheira dos Andes, que não deixa as nuvens bolivianas ou argentinas passarem para o Chile. De outro, as correntes de água fria do Oceano Pacífico dificultam a evaporação da água.
Todas as paisagens de Atacama são inusitadas e, seguindo dicas de mochileiros, resolvi passar o meu primeiro pôr-do-sol no Vale da Lua. Como o próprio nome sugere, é um lugar de montanhas e dunas desérticas. Escrevi “desérticas”? Nem tanto assim. Eu e toda a torcida do Colo-Colo, o time de futebol mais popular do Chile, pensamos no mesmo programa: subir as dunas e ver o Sol se esconder atrás da Cordilheira do Andes.
Quando cheguei ao anfiteatro criado pelas montanhas, vi que centenas de incansáveis jovens ascendiam uma trilha, em fila indiana. Todos subiam ao topo de um dos cerros para o ritual do fim do dia.
Tomei fôlego e segui os intrépidos. Como se não bastasse a dificuldade inerente de vencer uma gigantesca duna de areia fina, os grãozinhos rapidamente penetraram nos meus sapatos e meias, fazendo com que meus pés pesassem um quilo a mais a cada passo. Os primeiros cem metros foram penosos. Mas, à medida que a vista sobre o vale se tornava mais ampla, minhas interjeições negativas se convertiam em expressões de descobertas. Toda vez que eu levantava a cabeça, o deslumbramento aumentava. Com razão as pessoas faziam fila para ver esse espetáculo oferecido gratuitamente pela natureza.
Cena típica A paisagem desértica enfeitada por cactáceas destaca-se entre a imensidão de grãos de areia e de pedras existentes ao longo de todo o trajeto rumo aos gêiseres de El Tatio. Abaixo, duas vicunhas (Vicugna vicugna), os camelídeos selvagens que habitam a região andina, atravessam a estrada, nas proximidades do campo de gêiseres.
Cheguei na cresta de um dos picos. A vista era excelente: não havia nenhuma cabeça entre meus olhos e a grande tela natural. Embriagado pelo lugar, percebi quando as montanhas pintadas de amarelo se transformaram em laranja; e quando passaram para o rosa e daí para um vermelho incandescente. No momento que o Sol se foi e o seu último pedacinho de brilho desapareceu, toda a platéia entrou em silêncio absoluto. Era como se estivéssemos prendendo a respiração para que o Sol não se apagasse por completo.
San Pedro de Atacama é bem mais simpática de noite do que de dia. Com o sol a pino, a luz forte e a constante poeira tornam a cidade atordoante. Poucas pessoas transitam pelas ruas e o estado precário das construções fica mais óbvio. Contudo, quando a noite aparece, os bares da Calle Caracoles ganham vida e cor.
A música andina invade o ambiente e as lareiras aquecem aqueles que ainda não tomaram uma taça de vinho. Reduto de viajólogos, restaurantes como La Casona, El Adobe ou El Enkanto acolhem os estrangeiros de todas as latitudes – ávidos para contar as aventuras do dia ou para conhecer as dicas do que devem fazer no dia seguinte.
Com tanta informação ao meu dispor – parecia estar em um Google ao vivo -, fui pescando dados para compor o meu quebra-cabeça. “Se você quiser ver flamingos, vá à Lagoa Chaxa, na reserva nacional que está dentro do Salar de Atacama”, me disse um biólogo chileno que se transformara em guia turístico. “Aproveite também para ver as salinas desse lago cristalizado de cem quilômetros de extensão, com o vulcão Licancabur ao fundo”, confidenciou um apaixonado de geologia.
“A cor da Lagoa Verde vale o desvio”, ressaltou um aventureiro francês. “A lagoa está do outro lado da fronteira, na Bolívia”, completou. Vários viajantes me recomendaram visitar o Museu Arqueológico do Padre Le Paige, em San Pedro mesmo. “Os tecidos indígenas são imperdíveis”, assegurou uma canadense dedicada à pesquisa etnográfica. “As múmias são surpreendentes. Seus cabelos ainda estão intactos”, concluiu.
Como a jornada a El Tatio é considerada o ápice da visita ao Deserto de Atacama, os que haviam visto os gêiseres naquela manhã já tinham preparado as suas malas para deixar San Pedro no dia seguinte. A maioria, no entanto, estava ansiosa para saber como chegar e o que fazer. Continuei minha investigação.
Sim, fazia muito frio em El Tatio. Eu deveria estar bem abrigado, com um agasalho impermeável, que cortasse o vento. Não poderia esquecer de usar meias bem grossas.
Sim, era preciso chegar antes de o Sol nascer. O ideal, entre as 5h30 e 6h30. Portanto, eu teria de percorrer os 95 quilômetros de terra de San Pedro aos gêiseres em plena escuridão.
Sim, não era fácil viajar até lá. Não existe transporte público, a estrada não é asfaltada e as diversas pistas parecem ter sido criadas para confundir o novato. Dirigir sozinho, no breu total, não era perigoso, mas era fácil eu parar em outro lugar.
Cores do deserto O Vale da Lua ao entardecer. Ao fundo, o vulcão Licancabur, com seus imponentes 5.912 metros de altura. Na foto acima, a raposa andina. Ela pode ser avistada no Atacama, embora a coloração de sua pelagem confunda-se com a do próprio deserto.
Mas o fato de ter de acordar às 3 horas da matina era o maior desafio. Metade de meus neurônios estaria anestesiada pelo frio e pelo sono. A outra metade daria conta de dirigir a 4×4, mas não conseguiria interpretar nenhum mapa disponível. Deveria eu participar de uma excursão organizada, como me aconselhavam?
Não, a opção estava fora de cogitações, pois eu perderia o controle de meu tempo e velocidade. E se eu quisesse ser o último a deixar El Tatio? Concluí que a solução seria encontrar um co-piloto local que pudesse navegar comigo até meu destino.
Conversando com taxistas e guias, consegui identificar um motorista que estaria de folga naquela manhã. Pepe Perez conhecia bem o trajeto. Ele levava uma van de 15 pessoas quase que diariamente. Contente em ganhar uma verba adicional, Pepe se ofereceu até mesmo para dirigir a camioneta. “A las 3h30 de la mañana pasaré en su hotel”, confirmou com um aperto de mão que selava nosso trato.
Dito e feito. Coberto da cabeça aos pés como se estivesse partindo para uma expedição a um dos pólos do planeta, encontrei Pepe em pleno negrume. Entramos no carro e decidimos que ele tomaria a direção na ida e eu na volta. Durante as duas horas de percurso, trocamos poucas palavras. Não era a melhor hora para socializar.
Subimos quase dois mil metros de desnível para chegar até El Tatio. Até mesmo a camioneta sentiu o ar rarefeito. Quando chegamos e coloquei a cabeça para fora do veículo, foi como se eu tivesse enfiado meu cérebro no congelador. Tirei o relógio de pulso e o coloquei sobre o carro para confirmar a temperatura: fazia 7 graus negativos!
Mas a tremenda pancada de frio também me fez despertar: afinal, eu estava em um dos lugares mais espetaculares do planeta e precisava aproveitar. Os vapores dos gêiseres começavam a sair das entranhas da Terra e a natureza estava prestes a começar o seu show.
Quando o céu deixou de estar totalmente negro, os jatos de água fervente tomaram força. Havia gêiseres de todos os tipos: gordinhos e baixinhos, altos e esguios, fortes e fracos, femininos e masculinos. À medida que percebíamos melhor os contornos das montanhas que nos rodeavam, os turbilhões de vapor tomavam conta do lugar. Jatos que alcançavam dez metros de altura se misturavam com altas nuvens brancas que pareciam algodão doce. Era uma cena feérica – nem mesmo artistas gráficos do mundo virtual poderiam chegar a esse absurdo de encanto.
Cenário natural Um gêiser expelindo água fervente em El Tatio, ao amanhecer; uma igreja andina construída em adobe, situada em um vilarejo próximo de El Tatio; e espigas naturais de rocha, resultados de uma intensa erosão provocada pelos ventos e frio do Deserto de Atacama.
Como esperado, fiquei em El Tatio até as 10 horas. Com o sol forte e a temperatura bem acima do ponto de congelamento, todos os gêiseres, exaustos com suas ejaculações, murcharam. O preto da noite e o branco do vapor foram substituídos por cores vivas. As piscinas naturais mostravam um emaranhado de algas vermelhas, ocres e verdes, comprovando que existiam microorganismos que conseguiam prosperar até mesmo nesse mundo das águas borbulhantes.
Já não havia visitantes em El Tatio quando iniciamos nossa viagem de retorno. Decidi dirigir sem pressa, para desfrutar do panorama. Rodávamos tão devagar que duas vicunhas (um camelídeo andino selvagem) cruzaram nosso caminho passivamente. Parei e elas se deixaram fotografar. Foi nosso presente de despedida das terras mágicas do Atacama.
O Chile é um dos 222 países e territórios do Teste de Viajologia Mundial.
Haroldo Castro, conservacionista, fotojornalista e presidente do Clube de Viajologia, já documentou 133 países.
haroldo@viajologia.com.br
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