01/07/2007 - 0:00
Bento 16 visitou o Brasil em maio. Pregou contra o aborto e as uniões civis entre pessoas do mesmo sexo, defendeu a família e a castidade antes e depois do casamento. Como você encara esse papa e as suas idéias moralizantes?
Veja a contradição: na Itália, onde fica a sede da Igreja católica, o aborto está liberado desde 1974. Os choques entre as posições do governo e o Vaticano são freqüentes. Mas sempre prevalecem as decisões liberais do Estado laico. No Brasil temos a Confederação dos Bispos (CNBB), cujos membros muitas vezes têm posições diferenciadas. Mas na Itália não existe isso. Todas as regras destinadas a orientar a conduta da população católica são designadas diretamente pelo Vaticano. Os choques com o governo, então, são inevitáveis.
O papa tem tentado interferir em excesso na política italiana. Tem deixado pouquíssimo espaço para o diálogo democrático. Penso que ele tem de respeitar a Constituição italiana. Acho um absurdo, em plena era da Aids, a Igreja não admitir o uso de preservativo nas relações sexuais. Acho um absurdo ela não reconhecer uma família de divorciados, ou uma família de não-casados. Todos sabemos que o conceito de família se transforma ao longo dos anos. A Igreja quer parar a história? Quanto ao aborto, é apenas uma questão de consciência, pois compete aos pais decidirem se querem ou não ter o filho.
E as uniões homossexuais, que o papa abomina?
A diversidade sexual não foi inventada por lei. Ela é um fenômeno natural. De qualquer forma, sou contra o casamento de qualquer tipo. Mas quem quiser, que se case. É um direito. Queremos criar direitos, sobretudo direitos sociais, também para os casais homossexuais. Acho muito justa essa batalha.
Por que decidiu se candidatar ao Senado italiano?
Foi uma surpresa. Nunca havia pensado nessa possibilidade. Nos últimos anos trabalhei muito nos fóruns sociais mundiais, sobretudo no Fórum de Caracas (Venezuela), onde minhas posições ficaram bem conhecidas. Sou aquilo que na Itália hoje se define como um altermundialista, um batalhador do conceito de solidariedade social, totalmente contrário à globalização liberal. Algumas lideranças da esquerda italiana procuravam um candidato que representasse essas áreas. Isso aconteceu 35 dias antes das eleições! Aceitei o convite do Partido Refundação Comunista para ser candidato ao Senado pela Lombardia, região que é a mais desenvolvida, a que tem a maior riqueza per capita.
Em termos de voto popular, como foi possível a sua vitória com uma campanha de apenas 35 dias em uma disputa eleitoral tão acirrada como foi a de 2006 na Itália?
Foi motivada pelo rádio. Minha voz é muito conhecida na Lombardia. Há 20 anos faço um programa na Radio Popolare de Milão, nas áreas de cultura e política internacional, que tem grande audiência. Pude confirmar agora que o rádio é muito perigoso.
Del Roio, em 1967, com sua MULHER Ísis de Oliveira, morta pela Revolução
Hoje, o que não faltam são movimentos em prol da justiça social, da consciência de solidariedade entre os diferentes povos e classes sociais e do desenvolvimento sustentável. Como você vê a interação do atual governo italiano e dos demais governos da Europa com esses movimentos?
A União Européia mergulhou de cabeça na globalização neoliberal. Isso aumentou a desigualdade entre Estados, classes sociais e indivíduos. O trabalho se desagregou, perdeu força de contrato. Nesse quadro, ocorreu uma rápida e importante desagregação do tecido social. Como conseqüência, a população européia sofreu – e sofre – muito. É natural, portanto, o surgimento na Europa de uma reação a tudo isso. Mas, infelizmente, isso acontece num momento em que a Europa já não é a vanguarda cultural do mundo. Já vai longe o tempo em que o Velho Continente produzia os grandes teóricos que revolucionaram a história do mundo.
Na Europa, até hoje um continente de nações divididas, o atual governo no qual essas influências chegam mais perto é o de Romano Prodi, da Itália. Nós saímos de cinco anos de um governo de direita, o de Berlusconi, caracterizado por conceitos fascistas e neoliberais. Um governo que durou muito, também em função do total encantamento de uma parte da esquerda histórica italiana pelos cânticos da sereia neoliberal. Um governo que mandou tropas italianas para o Iraque e Afeganistão, embora a Constituição italiana determine que a Itália não pode participar de guerras no exterior.
Prodi retirou as tropas italianas do Iraque, mas as enviou para o sul do Líbano. Sim, mas lá eram tropas para atuar apenas como interposição entre Israel e o Líbano.
Nossa presença militar também permanece no Afeganistão, mas não são tropas combatentes, estão lá em missão de ajuda ao povo afegão. Esses soldados italianos somente podem atirar para se defender.
Por conta dessas limitações, os Estados Unidos estão furiosos. Queriam que abríssemos fogo ao lado dos fuzileiros norte-americanos. De qualquer forma, faço parte daqueles parlamentares italianos totalmente contrários à presença militar italiana no Afeganistão, e continuaremos a lutar pela total retirada de nossas tropas.
Se a União Européia mergulhou de cabeça no neoliberalismo, de onde provêm, então, os estímulos que alimentam a reação na Europa à globalização?
Curiosamente, a resistência hoje vem de pólos bem distantes. Exemplo: a luta, em vários países do Terceiro Mundo, contra as comemorações do 5o Centenário da Descoberta da América. Na realidade, Colombo, Cabral e os demais descobridores e conquistadores representam a primeira globalização. Ao lado dos movimentos contrários às celebrações, também surgiram os movimentos de contestação.
As rebeliões zapatistas no México são reações à globalização. Do mesma forma que o Movimento Jubileu Sul, na África do Sul; os movimentos contra as dívidas externas dos países em desenvolvimento; a Marcha Mundial das Mulheres e vários outros. Todos eles manifestações surgidas no sul do mundo. E tudo isso explodiu nos fóruns de Porto Alegre (RS), uma cidade do sul do mundo.
Os governos do sul do mundo influenciam também por esses ventos de rebelião?
Sim, sobretudo na América Latina. Exemplos disso são os governos de Evo Morales, na Bolívia; Ugo Chaves, na Venezuela; Kirchner, na Argentina; Tabaré Vázquez, no Uruguai; e do governo Lula, no Brasil.
A Itália tem consciência de que deve MUDAR seus padrões de consumo energético
Os movimentos antiglobalização atuam também em outras frentes de batalha: a degradação do meio ambiente e a questão do aquecimento global.
Essas questões são gravíssimas e afetam os 6,5 bilhões de habitantes do planeta. A Itália, infelizmente, não está desempenhando bem o seu papel. Quando o Protocolo de Kioto foi assinado, a Itália se comprometeu a reduzir 6,5% da emissão de gases de efeito estufa no país. Desde então, essa emissão aumentou em 13%. Por conta disso, o governo italiano terá de pagar uma multa anual de R$ 20 bilhões. Só esse fato já mostra o que foram esses anos de governo neoliberal na Itália. Somos o país com a maior taxa de carros per capita.
O governo Prodi implementa agora várias políticas culturais e econômicas no âmbito da questão ambiental. Por exemplo, a proibição da privatização dos recursos hídricos. Nós também temos consciência de que devemos mudar radicalmente os nossos padrões de consumo energético.
A atual política de Estado estimula os investimentos em fontes alternativas de energia, resistindo à tentação de partir para a energia nuclear. Por quê? Em função do lixo atômico. Onde iríamos escondê-lo? Na África, como fazem outras potências, infectando o solo africano?
Com o Brasil, por exemplo, a Itália está tentando fechar um acordo sobre o etanol, que leva em conta as limitações da produção e da exportação desse combustível. O mesmo acontece em relação à produção dos demais carburantes de origem vegetal. Caso do álcool de beterraba produzido na Itália. Queremos uma democratização dessa produção. Queremos que os produtores tenham subsídios, para não ficarem nas mãos de especuladores. Queremos implantar sistemas cooperativos para os pequenos e médios agricultores.
O Bric – sigla que se refere a três grandes países emergentes da atualidade – o Brasil, a Índia e a China – é um fato novo e determinante na economia mundial. Como você analisa a postura do atual governo italiano em relação ao Bric?
É exatamente na Comissão de Assuntos Exteriores do Parlamento Italiano, da qual faço parte, que se discute a linha de conduta em relação ao Bric a ser recomendada ao governo Prodi. Somos inteiramente favoráveis ao incremento das relações da Itália com o Bric. Enquanto no governo Berlusconi as relações com o Brasil, por exemplo, estavam quase a zero, Prodi – seguindo a orientação do Parlamento – foi a todos os três países do Bric. Lembro também que Massimo D’Alema, nosso ministro do Exterior, esteve presente na posse do segundo mandato de Lula.
A produção cultural italiana já foi ponta de lança mundial no cinema, nas artes plásticas, na música e na literatura. Hoje, a influência cultural da Itália no mundo parece restrita a meras releituras do design e das tendências da moda pelos estilistas de roupas.
Este é um dos pontos mais dolorosos da realidade italiana contemporânea. Nas últimas décadas, como em tantos outros países do Ocidente e do Oriente, a “incultura” norte-americana simplesmente nos esmagou. A união de partidos que atualmente governa a Itália tem exposto continuamente essa situação. A prioridade é fazer com que a Itália volte a ter alguns postos avançados em termos de alta tecnologia. Mas, ao mesmo tempo, há grandes incentivos relacionados aos aspectos culturais: produção de livros, apoio ao cinema e ao teatro, à culinária e à conscientização da massa social quanto aos impactos ecológicos ligados a todas as áreas da produção e da vida em geral.
Hoje, mais do que nunca, a Itália parece um gigantesco celeiro de imigrantes provenientes sobretudo dos países em desenvolvimento. Atualmente, quando se caminha pelas ruas de Roma ou de Milão, ou qualquer outra grande cidade italiana, esses imigrantes parecem competir em número com os próprios italianos. Qual a sua posição diante da imigração?
A sociedade italiana está passando por um processo de profunda transformação. No passado, entre a segunda metade do século 19 e a primeira metade do século 20, exportamos aproximadamente 25 milhões de pessoas. Hoje, o fluxo se inverteu. É a Itália que recebe milhares de imigrantes a cada ano. Para mim, que descendo de italianos que emigraram para o Brasil e que foram extremamente úteis para o País, as vantagens dessa presença estrangeira em solo italiano são infinitamente superiores às desvantagens.
O italiano, porém, não está habituado a isso. O sentimento de xenofobia aqui ainda é forte. Esse sentimento impregna vastas áreas da direita, sobretudo as de tendências fascistas, que não toleram os imigrantes. Por isso, o governo anterior criou leis verdadeiramente racistas para conter o fluxo de estrangeiros. Leis intolerantes, cuja origem é a ignorância e o medo. O governo Prodi finaliza agora uma nova lei de imigração, bem mais flexível, em substituição à lei criada por Berlusconi.
O atual governo não facilita as coisas para os imigrantes só por generosidade ou por solidariedade social. A Cofindústria, máxima entidade italiana para as questões da indústria, grita continuamente que o país precisa de 350 mil novos imigrantes por ano para manter as fábricas italianas abertas.
Os alertas da Cofindústria têm razão de ser. Como foi que chegamos a esse ponto? É simples: hoje, a Itália tem 58 milhões de habitantes. Em 2050, sem a imigração, nossa população estará reduzida a 42 milhões. Isso acontece porque os italianos ultimamente têm poucos filhos. Hoje, a média de filhos por italiana é de 1,2. Mas sabemos que para manter estável a população de um país são necessários 2,2 filhos por mulher. Cada vez mais, a Itália se torna um país de velhos, de aposentados.
Graças aos progressos da ciência e à excelente assistência social de que dispomos, os italianos hoje vivem muito mais tempo. Mas é inevitável que chegaremos a um momento de grande mortandade de idosos, com uma conseqüente queda brusca da população. Sou um daqueles políticos italianos que têm plena consciência disso tudo. É por isso que defendo o direito de adquirir a cidadania italiana no prazo de mais ou menos cinco anos para o estrangeiro que trabalhe honestamente e pague os seus impostos.
Sua vida daria um romance
José Luiz Del Roio nasceu em São Paulo, em 1942. Trabalhava em um projeto para a organização sindical dos camponeses quando houve o Golpe de Estado de 1964. Foi para a clandestinidade contra a ditadura e adotou o codinome “Francisco”. Resultado: teve de abandonar o Brasil no início dos anos 70 e percorrer os caminhos do exílio em vários países do mundo. Chegou à Itália em 1975.
Na terra dos avós, sua carreira foi meteórica. Trabalhou anos na Fundação Feltrinelli, na qual criou o arquivo histórico do movimento operário brasileiro. Participou da criação do Tribunal Bertrand Russell e da Liga Internacional para os Direitos e a Libertação dos Povos. Teve uma participação bastante determinante nos fóruns sociais mundiais.
É autor de 15 livros, publicados na Itália e no Brasil. Na Itália trabalha com várias instituições do governo e com organizações nãogovernamentais ligadas sobretudo ao setor da economia e do comércio ético e solidário.
É um dos principais responsáveis pela participação anual do Brasil no Sana, uma das maiores feiras do mundo para a agricultura e os produtos naturais e biológicos, realizada anualmente na Bolonha. Quando não está no Senado, em Roma, ou no Parlamento Europeu, em Estrasburgo, reside e trabalha em Milão.