17/02/2020 - 10:08
Veneza é única. Essa cidade criada nos primeiros séculos da era cristã sobre mais de 100 pequenas ilhas no nordeste da Itália, repleta de canais e pontes e sem os onipresentes automóveis, tornou-se tão icônica que virou modelo para descrever outros aglomerados urbanos – Recife, por exemplo, tornou-se a “Veneza brasileira”; Amsterdã, na Holanda, a “Veneza do norte”. A influência dos canais inspirou até um investidor imobiliário americano a criar um empreendimento similar em uma área litorânea pantanosa da região de Los Angeles, denominado Venice – o nome da cidade italiana em inglês.
A ideia original por trás de tamanha originalidade era simplesmente defender-se. Usando a barreira da água, os habitantes iniciais queriam proteger-se das invasões bárbaras ocorridas durante os anos de queda do Império Romano do Ocidente. O conhecimento ampliado que os moradores adquiriram dos canais e de seus segredos de navegação (as embarcações que não conheciam a área encalhavam facilmente) ajudou a dificultar agressões externas, além de estimular a alma marítima da comunidade.
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Com o tempo, Veneza tornou-se uma potência naval, cuja riqueza advinha do comércio de metais e pedras preciosos, vidro e seda. A opulência se refletiu na sua beleza arquitetônica, que lhe rendeu, na Idade Média, o apelido de La Serenissima. Sua força como elo entre Ocidente e Oriente só começou a decair na época dos Grandes Descobrimentos, no fim do século 15.
Desde então, a fama da cidade passou a ser mais associada ao seu inegável fascínio romântico e turístico. E é na era do turismo de massa que sua sobrevivência corre mais riscos. A por natureza limitada infraestrutura da cidade sofre com passarelas superlotadas, canais congestionados e longas filas para as atrações. Navios de cruzeiro enormes, que se contrapõem à preciosa arquitetura local e despejam mais e mais visitantes, são um sério problema adicional.
Inundações periódicas
Para piorar o cenário, a cidade, situada numa região pantanosa, está afundando lentamente, um fenômeno agravado pela elevação do nível do mar. Veneza sempre sofreu inundações periódicas de “acqua alta” (marés excepcionalmente altas), mas a frequência de tais eventos aumentou (veja quadro no fim deste texto). Sem fundações adequadas, as edificações aos poucos cedem mais espaço à água.
A cidade tem um sistema de alerta de inundações que conta com uma série de sirenes. Os alertas sonoros indicam a gravidade da inundação esperada. Há também avisos de texto e um aplicativo para manter os residentes informados. E cientistas monitoram cuidadosamente as mudanças que ocorrem nessa área.
Estar em Veneza é uma experiência diferente da vivida em qualquer outra cidade do mundo. Andar por ruas, pontes e praças como a de São Marcos, conhecer a basílica de mesmo nome e numerosas outras igrejas da área, navegar de gôndola pelos canais, visitar a Accademia e outros importantes museus venezianos, apreciar o requintado carnaval local são vivências inesquecíveis. Mas tantos atrativos concentrados em um espaço tão pequeno constituem também a maldição da cidade.
Em 1987, Veneza e a sua laguna foram listadas como Patrimônio Mundial da Unesco, um reconhecimento à arquitetura e ao patrimônio cultural únicos da região. Pouco mais de 50 anos depois, no entanto, a Unesco pensa em excluir essa indicação. Em 1951, a cidade tinha 174.808 habitantes. Em 2016, havia apenas 54.976 pessoas morando lá. Enquanto isso, mais de 30 milhões de turistas a visitam a cada ano. De um lado, o êxodo dos nativos venezianos indica um problema socioeconômico sério; de outro, e inter-relacionado ao cenário citado, o fato de a cidade receber um enorme número de visitantes representa uma pressão gigantesca no transporte e nas acomodações locais, assim como nas instalações de esgoto e reciclagem.
O turismo representa um problema em várias partes do mundo, mas nada igual ao que se observa em Veneza. Por vezes, a evasão de habitantes faz a cidade lembrar mais um amplo e sofisticado cenário de parque de diversões do que um aglomerado urbano vivo e pulsante. Até mesmo um número considerável de turistas se incomoda com o que vê. Comentários se referindo a Veneza como “pouco povoada e superturística”, “arruinada por navios de cruzeiro” e “a cidade mais cara da Itália” não são raros hoje em dia.
Recursos escassos
Como a Itália enfrenta uma grave crise financeira, não há muitos recursos governamentais para reparar edifícios históricos em ruínas ou melhorar a infraestrutura. As pessoas podem se preparar para a água das inundações com botas de borracha e passarelas elevadas, mas as edificações locais não têm tanta sorte. Os níveis de água estão agora permanentemente acima dos originais, e a água salgada ataca os tijolos de argila, fazendo com que eles deixem entrar mais água. Como resultado, o piso térreo de muitos dos edifícios de Veneza é agora inabitável.
Para preservar os prédios e evitar mais erosão, um projeto específico, denominado MOSE (sigla em italiano de Módulo Experimental Eletromecânico), está em andamento. Uma série de barreiras subaquáticas está sendo instalada para reduzir a quantidade de água que entra na lagoa. Iniciada em 2003, a construção ainda não foi concluída por questões financeiras. Pela última estimativa, o projeto deverá ser finalizado no próximo ano.
Como os cerca de 30 milhões de visitantes anuais de Veneza compartilham com os moradores um território que mede menos de 3 quilômetros quadrados, as tensões que isso provoca levaram a municipalidade a criar um imposto turístico para garantir a sobrevivência da cidade. A partir do verão de 2019, cada turista de estada de curta duração passou a pagar até € 10 (US$ 11,50) para entrar nas áreas históricas de Veneza. O município tem como alvo particularmente os excursionistas que chegam em navios de cruzeiro. A taxa inicial está fixada entre € 2,50 e € 5 por pessoa, mas nos horários de pico pode subir para € 10.
A taxa de ocupação hoteleira arrecada cerca de € 30 milhões por ano, mas o novo imposto turístico poderá gerar mais de € 50 milhões anuais. Talvez esses recursos adicionais ajudem a cidade a sair do atual estágio de crise. Mas tornar Veneza mais sustentável para seus habitantes e visitantes ainda parece uma meta longínqua.
QUADROS
Mazelas venezianas
* Custo de vida crescente
* Aumento dos custos de habitação, já que os turistas competem por alojamento com os habitantes locais
* Sistemas de transporte superlotados
* Falta de oportunidades de emprego bem remuneradas
* Mescla normal de lojas de varejo substituída por lojas de suvenires turísticos
Inimigos flutuantes
A chegada de navios de cruzeiro representa um impacto especialíssimo na infraestrutura de Veneza. Eles atracam no centro da cidade, na Praça de São Marcos. Sua massa enorme apequena os edifícios próximos. Nem todos os passageiros desembarcam para passear por Veneza, mas como cada navio transporta mais de 4 mil turistas, até mesmo uma pequena parcela de visitantes já acarreta conseqüências no cotidiano da cidade.
Além de atrapalharem os fluxos turísticos “normais”, os passageiros desses navios e gastam muito pouco em terra. Por esse motivo, muitos venezianos estão fazendo campanha contra o atracamento desses navios no coração da cidade.
Navios de cruzeiro maiores, com mais de 12 mil pessoas entre passageiros e tripulantes, também visitam Veneza, mas são obrigados a ancorar em terminais de cruzeiros especiais nos arredores da cidade. Seu tamanho os impede de navegar pelo Grande Canal.
Em 2017, o governo italiano proibiu navios de cruzeiros de 100 mil toneladas ou mais de entrar no Grande Canal. O trabalho para permitir que isso aconteça deve levar no mínimo quatro anos para ser concluído.
Isolamento amenizado
Espalhada por 118 ilhas, Veneza possui 177 canais e 400 pontes, que fazem da cidade um cenário sem paralelo no mundo. Até 1846, só era possível chegar ao seu centro histórico por embarcações. Naquele ano, foi construída uma ponte ferroviária ligando a área ao continente.
Em 1933, a Ponte della Libertà, com quatro quilômetros de extensão, permitiu o acesso rodoviário, ligando o município vizinho de Mestre à Piazzale Roma.
O problema das marés altas
Acqua alta é o termo utilizado na região do Vêneto para os picos de maré excepcionais que ocorrem periodicamente no norte do Mar Adriático. Os picos atingem o seu máximo na Laguna de Veneza, onde causam inundações parciais de Veneza e Chioggia.
O fenômeno ocorre principalmente entre o outono e a primavera, quando as marés astronômicas são reforçadas pelos ventos sazonais predominantes que dificultam o refluxo usual. Os principais ventos envolvidos são o sirocco, que sopra para o norte ao longo do Mar Adriático, e o bora, que tem um efeito local específico devido à forma e localização da lagoa veneziana.
Em 2019, o fenômeno deixou marcas profundas na cidade. No dia 12 de novembro, as águas chegaram a 1,87 metro, segundo nível mais alto já atingido; em 18 do mesmo mês, atingiram 1,50 metro. O recorde, por enquanto, ainda é de 4 de novembro de 1966: 1,94 metro.