Os primeiros seres humanos viveram em vales de rios da África do Sul, com solos férteis, repletos de pastagens, várzeas, bosques e pântanos em que abundavam hipopótamos, zebras, antílopes e muitos outros animais, alguns extintos há milênios.

Em contraste com os ambientes da Era do Gelo em outros lugares da Terra, esse era um ambiente exuberante, com um clima ameno que desapareceu sob o aumento do nível do mar há 11.500 anos.

Uma equipe internacional interdisciplinar de cientistas trouxe agora de volta à vida esse agradável berço da humanidade em uma coleção especial de artigos que reconstroem a paleoecologia da planície de Paleo-Agulhas, uma paisagem agora submersa no extremo sul da África que, durante as fases glaciais dos últimos 2 milhões de anos, estava acima do nível do mar e seca.

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“Esses períodos glaciais do Pleistoceno teriam apresentado uma paisagem de recursos bem diferente para os primeiros caçadores-coletores humanos modernos em relação à paisagem encontrada nas planícies costeiras atuais do Cabo, e podem ter sido fundamentais para moldar a evolução dos primeiros seres humanos modernos”, disse Janet Franklin, professora de biogeografia no departamento de Botânica e Ciências Vegetais da Universidade da Califórnia em Riverside (EUA), membro associado do Centro Africano de Paleociência Costeira da Universidade Nelson Mandela, na África do Sul, e coautora de vários artigos.

Ausência intrigante

Alguns dos mais antigos ossos e artefatos humanos anatomicamente modernos foram encontrados em cavernas em penhascos ao longo da costa da África do Sul. Por muitos anos, a falta de mariscos em algumas camadas nesses locais intrigou os arqueólogos. Apesar de aparentemente viverem perto do oceano, os habitantes capturavam principalmente animais de caça – o tipo de animais que normalmente vivem mais longe, no interior.

Os cientistas sabiam que uma paisagem submersa existia na plataforma continental ao largo da costa. Mas recentemente, talvez inspirados pelo aumento do nível do mar do atual aquecimento global causado pelo homem, eles perceberam que essas cavernas poderiam ter constituído a extremidade mais ocidental de uma longa planície perdida.

Durante a maior parte do Pleistoceno, a era geológica anterior à que vivemos agora, essas cavernas não estavam localizadas na costa. Com tanta água presa em geleiras do tamanho de continentes, o nível do mar era muito menor e os seres humanos poderiam ter prosperado entre os penhascos e um litoral mais suave, quilômetros e quilômetros a leste.

Uma edição especial da publicação “Quaternary Science Reviews” apresenta artigos em que uma ampla gama de técnicas é usada para reconstruir o ambiente e a ecologia da planície de Paleo-Agulhas. Eles revelam um mundo verdejante, rico em caça, plantas e recursos costeiros, periodicamente isolado do continente durante períodos quentes entre períodos glaciais, quando o nível do mar subia para níveis semelhantes aos de hoje, o que teria desempenhado um papel importante na evolução humana.

Vegetação reconstituída

Franklin e seus colegas usaram modernos padrões de vegetação ao longo da costa sul da região do Cabo para desenvolver modelos da vegetação esperada para os vários tipos de solo, bem como o clima (especialmente as chuvas) e os regimes de fogo (os padrões, a frequência e a intensidade dos incêndios florestais e selvagens que prevalecem em uma área por longos intervalos de tempo) das eras glaciais passadas ​​que enquadravam a maior parte do período em quais humanos modernos surgiram.

Participaram também do estudo Richard M. Cowling e Alastair J. Potts, da Universidade Nelson Mandela; Guy F. Midgley, da Universidade Stellenbosch; François Engelbrecht, da Universidade de Witwatersrand (todas da África do Sul); e Curtis W. Marean, da Universidade do Estado do Arizona (EUA).

A vegetação foi reconstituída com base em um modelo do clima antigo e dos regimes de fogo dessas fases glaciais que definem a evolução humana. O grupo desenvolveu o modelo de vegetação com base nos padrões atuais e nas condições ambientais, comparou seu modelo a um mapa de vegetação derivado de forma independente para validá-lo e, em seguida, aplicou-o ao clima, formas terrestres e solos reconstruídos para o pico da última era glacial na planície de Paleo-Agulhas.

A reconstrução, o mapeamento e a modelagem de paleoclima, geologia e solos por seus colaboradores são apresentados em outros artigos da edição especial.

Diversidade

O modelo constatou que a paleopaisagem exposta durante os níveis baixos do mar no período glacial adicionou uma área do tamanho da Irlanda ao extremo sul da África. Perto da costa, era dominada por “fynbos de calcário”, um matagal de baixa estatura, mas rico em espécies, típico da Província Florística do Cabo da África do Sul contemporânea, um hotspot global de diversidade de plantas. As planícies do norte eram principalmente pastagens em planícies de inundação rasas e em leito de rocha de xisto.

Essa vegetação do tipo savana, rara na paisagem moderna, teria dado sustento à megafauna típica dos períodos glaciais. Esses animais de caça, encontrados no registro arqueológico, incluem uma grande diversidade de animais herbívoros, incluindo o agora extinto búfalo-do-cabo gigante, e outros que não ocorrem mais naturalmente nessa parte da África, como as girafas.

A planície de Paleo-Agulhas tinha uma diversidade de espécies de plantas extremamente grande, além de uma variedade maior de ecossistemas e comunidades de plantas do que a encontrada atualmente nessa região, incluindo pastagens de xisto com mosaico de dunas de fynbos em terras altas e planícies de inundação amplas e rasas, que davam sustento a um mosaico de bosques e pastagens em solos aluviais férteis.