15/07/2020 - 12:25
Um solitário e um caçador com instintos territoriais altamente desenvolvidos, um carnívoro cruel, um indivíduo desobediente: o gato. Essas características tornam as espécies avessas à domesticação. Mesmo assim, atualmente, cerca de 500 milhões de gatos vivem em residências em todo o mundo. É difícil estimar a quantidade daqueles desabrigados e em estado selvagem
Embora a história comum de gatos e pessoas tenha começado 10 mil anos atrás, as origens da relação ainda permanecem desconhecidas. Como foi realizado o processo de domesticação? Quando os primeiros gatos domesticados apareceram na Europa Central? De onde eles vieram e como? Qual era o papel deles na vida das pessoas que eram suas contemporâneas?
As lacunas de conhecimento sobre o assunto são numerosas. Assim, arqueólogos, arqueozoólogos, biólogos, antropólogos e outros pesquisadores internacionais cooperam para encontrar respostas para as perguntas. Um novo estudo nesse sentido, publicado na revista “Proceedings of National Academy of Sciences (PNAS)” e que tem como primeira autora a drª Magdalena Krajcarz, do Instituto de Arqueologia da Universidade Nicolau Copérnico, em Torun (Polônia), avaliou a dieta de gatos domésticos na Europa Central Neolítica para verificar o quanto eles coabitaram com as pessoas.
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Caminhos sinuosos
De acordo com as suposições feitas, a criação deliberada de uma raça que envolvia selecionar indivíduos específicos, cruzar e reproduzi-los ocorreu numa época relativamente recente, no século 19. Na Polônia medieval, os gatos não eram tão populares quanto se pensava. De acordo com as evidências fornecidas pelos pesquisadores, doninhas semidomesticadas ou até cobras foram usadas para proteger as colheitas de grãos contra roedores. Foram pessoas que se estabeleceram em cidades fundadas na segunda metade do século 13 que aumentaram a popularidade dos gatos.
Isso não significa, porém, que os gatos não tivessem tido nenhuma relação com as pessoas antes. Os restos do primeiro gato domesticado mais bem documentados em território polonês datam dos primórdios de nossa era. Acredita-se que os animais se espalharam pela Europa Central principalmente devido à influência do Império Romano.
No entanto, os restos do gato mais antigo naquela área datam de 4.200-2.300 a.C. Isso evidencia as primeiras migrações do gato núbio, que originariamente habitava o Oriente Próximo e o norte da África. Essa espécie em particular é considerada o ancestral dos gatos domésticos na Europa Central.
Benefícios mútuos
O gato núbio é uma das subespécies de gatos selvagens (ao lado do gato selvagem europeu, que não é o ancestral do gato doméstico, embora seja capaz de cruzar com ele) cuja domesticação começou no Crescente Fértil entre 10 mil e 9 mil anos atrás. Em escavações arqueológicas na Anatólia, na Síria e em Israel, foi encontrada uma variedade de estatuetas de pedra representando esses gatos.
Aparentemente, os gatos permaneciam nas proximidades dos primeiros fazendeiros e, com alta probabilidade, o Neolítico foi quando as primeiras inter-relações homem-gato tiveram início. As pessoas abandonaram o nomadismo em favor da vida sedentária e começaram a colher alimentos que, consequentemente, atraíam roedores de vários tipos. Isso poderia resultar na atração de gatos selvagens para fontes de alimentos facilmente alcançáveis e os benefícios eram mútuos. É muito provável que os gatos tenham se comportado de maneira neutra em relação aos humanos.
As análises de esqueletos dos gatos, juntamente com a iconografia dos mamíferos, permitem aos pesquisadores supor que os gatos chegaram à Europa migrando do Oriente Próximo, através da Anatólia, Chipre, Creta, Grécia, para a Roma Antiga, onde foram adotados por celtas e alemães.
Dieta e domesticação
O papel dos gatos na Polônia neolítica tardia não é claro, uma vez que os cientistas têm poucas evidências da presença desses animais. Os restos encontrados são provenientes de cavernas e não de assentamentos humanos, o que significa que os gatos não precisaram necessariamente ser enterrados pelos homens. Eles também poderiam ter sido alimento para outros predadores ou simplesmente teriam vivido e morrido em cavernas. No entanto, os pesquisadores não rejeitam a hipótese de que os animais poderiam ser mantidos pelos homens para proteger as colheitas dos roedores e, assim, se beneficiarem de suas habilidades, ocasionalmente seguindo para as cavernas que os humanos contemporâneos usavam como abrigos.
A nova pesquisa fornece uma visão sobre a dieta de gatos, a fim de determinar a proximidade entre as relações homem-gato. Para a realização dos estudos, foram utilizados seis restos de gatos neolíticos, com características do Oriente Próximo, de quatro locais de cavernas na região montanhosa de Cracóvia-Czestochowa (sul da Polônia). Nas proximidades, costumava haver assentamentos de agricultores localizados em solos férteis. Além disso, foram examinados quatro restos de gatos selvagens europeus de um período e área análogos, bem como três pré-neolíticos e dois outros do período romano. O material de referência cobriu adicionalmente restos humanos e de outros animais.
A análise de isótopos estáveis de carbono e nitrogênio no colágeno ósseo constituiu a base metodológica. O método de análise isotópica estável é uma ferramenta comumente aplicada na paleontologia e ecologia dos animais, porque a composição isotópica de seus restos reflete a composição isotópica dos alimentos. Segundo Krajcarz, o método permite, por exemplo, a identificação de hábitos alimentares de determinadas espécies de animais fósseis. Em pesquisas sobre hábitos alimentares de animais selvagens, as técnicas convencionais envolvem a análise de restos de comida nas fezes ou no estômago, o que impõe limitações significativas. Mais importante ainda, nem todos os restos podem ser identificados, e pertencem à última refeição. Finalmente, o acesso a esse material fóssil é muito pobre.
Dependência parcial
A análise isotópica permite realizar medições químicas precisas e reconhecer a dieta média que cobre toda a vida útil do animal. Principalmente, o método propicia o exame dos hábitos alimentares de animais do passado. Tudo o que temos são restos de tecido ósseo que sobreviveram no estado inalterado, pois a composição isotópica dos ossos permanece inalterada há milhares de anos, diz Krajcarz. Para simplificar a questão, os agricultores neolíticos tinham conhecimento suficiente para aplicar fertilizantes como esterco ou cinzas de plantas. Roedores que se alimentavam das colheitas eram consumidos por gatos. Pelo exame isotópico estável, é possível decidir se gatos contemporâneos desses humanos encontravam comida aproveitando de alguma forma a atividade de homens e mulheres.
Segundo os resultados do exame, os gatos do Oriente Próximo não eram totalmente dependentes dos homens. Eles fizeram uso de todas as fontes alimentares disponíveis, mas também puderam encontrar outras pessoas em seu habitat. Eles podiam fazer isso periodicamente, beneficiando-se da atividade humana ou caçando individualmente nas florestas. Assim, eles mantiveram sua independência.
De acordo com Krajcarz, suas descobertas confirmam a hipótese de que os gatos selvagens do Oriente Próximo se espalharam pela Europa acompanhando os primeiros agricultores, provavelmente como animais comensais. Os resultados da análise isotópica estável obtida para os gatos do período romano, no entanto, parecem assemelhar-se aos de homens e cães, o que sugere que os gatos seguiram uma dieta semelhante, ou seja, eles se beneficiaram de recursos humanos ou possivelmente foram alimentados por homens. Além disso, o desenvolvimento na agricultura influenciou parcialmente o gato selvagem europeu nativo, mesmo que ele fosse mais orientado para os recursos florestais.