04/08/2020 - 10:13
Um grande número de redes de vales escavados na superfície de Marte foi esculpido pela água derretendo sob o gelo glacial, e não por rios que fluíam livremente, como se pensava antes. A conclusão é de uma pesquisa da Universidade da Colúmbia Britânica (Canadá) publicada na revista “Nature Geoscience”. A descoberta representa um golpe na hipótese dominante de que no passado Marte foi “quente e úmido”, a qual postula que rios, chuvas e oceanos já existiram no Planeta Vermelho.
Para chegar a essa conclusão, a autora principal Anna Grau Galofre, ex-aluna de doutorado do departamento de ciências terrestres, oceânicas e atmosféricas da universidade canadense, desenvolveu e usou novas técnicas para examinar milhares de vales marcianos. Ela e seus coautores também compararam os vales marcianos aos canais subglaciais do Arquipélago do Ártico canadense e descobriram semelhanças impressionantes.
“Nos últimos 40 anos, desde que os vales de Marte foram descobertos pela primeira vez, a suposição era de que rios já corriam em Marte, corroendo e originando todos esses vales”, diz Grau Galofre. “Mas existem centenas de vales em Marte, e eles parecem muito diferentes um do outro. Se você olha para a Terra a partir de um satélite, vê muitos vales. Alguns deles feitos por rios, outros feitos por geleiras, outros feitos por outros processos. E cada tipo tem uma forma distinta. Marte é semelhante. Seus vales parecem muito diferentes um do outro, sugerindo que muitos processos estavam em jogo para esculpi-los.”
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Ótima analogia
A semelhança entre muitos vales marcianos e os canais subglaciais da ilha Devon, no Ártico canadense, motivou os autores a conduzir seu estudo comparativo. “A ilha Devon é uma das melhores analogias que temos para Marte aqui na Terra. É um deserto frio, seco e polar, e a glaciação é amplamente baseada em frio”, diz o coautor Gordon Osinski, professor do departamento de ciências da terra e do Instituto de Exploração da Terra e do Espaço da Universidade da Colúmbia Britânica.
No total, os pesquisadores analisaram mais de 10 mil vales marcianos, usando um novo algoritmo para inferir seus processos de erosão subjacentes. “Esses resultados são a primeira evidência de extensa erosão subglacial impulsionada pela drenagem canalizada de água de derretimento sob uma camada de gelo antiga em Marte”, diz o coautor Mark Jellinek, professor do departamento de ciências terrestres, oceânicas e atmosféricas da universidade canadense. “As descobertas demonstram que apenas uma fração das redes de vales corresponde a padrões típicos de erosão das águas superficiais. Isso contrasta fortemente com a visão convencional. Usar a geomorfologia da superfície de Marte para reconstruir rigorosamente o caráter e a evolução do planeta de uma forma estatisticamente significativa é, francamente, revolucionário.”
Uso na Terra
A teoria de Grau Galofre também ajuda a explicar como os vales se formariam 3,8 bilhões de anos atrás em um planeta mais distante do Sol que a Terra, durante um período em que o Sol era menos intenso. “A modelagem climática prevê que o clima antigo de Marte era muito mais frio durante o tempo da formação da rede do vale”, diz Grau Galofre, atualmente bolsista de pós-doutorado em exploração na Universidade Estadual do Arizona (EUA). “Tentamos juntar tudo e levantar uma hipótese que realmente não havia sido considerada: que as redes de canais e vales podem se formar sob camadas de gelo, como parte do sistema de drenagem que se forma naturalmente sob uma camada de gelo quando existe água acumulada na base.”
Esses ambientes também suportariam melhores condições de sobrevivência para possíveis vidas no passado de Marte. Uma camada de gelo daria mais proteção e estabilidade à água subjacente. Além disso, forneceria proteção contra a radiação solar na ausência de um campo magnético – algo que Marte já teve, mas que desapareceu bilhões de anos atrás.
A pesquisa de Grau Galofre foi focada em Marte, mas as ferramentas analíticas que desenvolveu para esse trabalho podem ser aplicadas para descobrir mais sobre a história antiga da Terra. Jellinek diz que pretende usar esses novos algoritmos para analisar e explorar os recursos de erosão remanescentes da história primitiva da Terra.
“Atualmente, podemos reconstruir rigorosamente a história da glaciação global na Terra que remonta cerca de 1 milhão a 5 milhões de anos”, diz Jellinek. “O trabalho de Anna nos permitirá explorar o avanço e a retirada das calotas de gelo há pelo menos 35 milhões de anos – até o início da Antártida, ou antes –, bem antes da idade de nossos núcleos de gelo mais antigos.”