Não é de hoje que o duo espiritualidade/ arte faz sucesso. De uns tempos para cá, porém, a dupla conquista cada vez mais novos espaços e invade palcos, páginas e telas de todos as tipos e gêneros, solidificando uma forte parceria. O resultado é uma crescente produção cultural de obras com enfoque na temática espiritualista.

Essas obras, por sinal, pipocam aqui, ali e em todo o mundo, atestando que este não é um fenômeno unicamente nacional. Atores, atrizes e outros personagens do cenário cultural brasileiro crêem que a arte tem relação com o sagrado. Alguns, por sinal, vão ainda mais além: apostam na teoria de que a arte é uma expressão da espiritualidade.

Carlos Vereza, 68 anos, kardecista há 19, é um deles. Presente na 5ª Mostra de Teatro Transcendental, onde participou de uma pré-estréia do longa- metragem Bezerra de Menezes – O Médico dos Pobres, Vereza acredita que o artista é intuído pelos espíritos. “Se ele estiver fazendo algo errado também é intuído”, afirma.

PRATICANTE DA DOUTRINA espírita, o ator conta que no meio artístico há uma corrente que acha que o ator exerce sua mediunidade por meio de seu personagem. “Particularmente, não acredito que o espírito ‘baixe’ no ator. A doutrina espírita tem de ser estudada”, prossegue Vereza. Mas ela é mais do que uma religião. Ela passa pela ciência, razão, filosofia. Não tem dogmas, cultos, rituais nem ídolos. “Ninguém pode praticá-la sem estudar. Como se falar de perispírito, sem saber o que é isso?”, questiona.

 

… Reino de Dionísio

Cenas da peça Meu Amigo do Outro Mundo, cujo enredo aborda o relacionamento entre duas crianças e um amigo imaginário.

Médium intuitivo e de incorporação, segundo asseguram os espíritas que conhece, Vereza diz sentir-se honrado por ter interpretado o personagem de Bezerra de Menezes, um médico humanitário, que é muito mais conhecido nos demais Estados brasileiros do que no Ceará, onde nasceu, e que é tão ou mais popular que o padre Cícero. “Doutor Bezerra é um verdadeiro anjo. Depois de você ler sua biografia, ter contato com a sua vida, interpretá- lo e – quer acreditem ou não – sentir a sua presença nas filmagens, não se é mais o mesmo”, garante.

Como é interpretar dois personagens tão distintos – o médico cearense que declarou em público ser espírita quando vivo ou o escritor Graciliano Ramos, no filme Memórias do Cárcere, de Nelson Pereira dos Santos, que era ateu?

Vereza diz ter gostado de ter feito os dois papéis, mas observa que há uma grande diferença entre religião e religiosidade. “Esta última pode ser praticada até por um ateu. Também de nada adianta a pessoa seguir uma religião e sair por aí explorando os empregados, destratando as pessoas. Graciliano era ateu, mas um homem humano e extremamente generoso, um espírito imbuído de religiosidade.”

Os ateus alegam que o SER HUMANO é obra do ACASO, do nada. Mas o nada não pode produzir o nada. Isso não é religioso. É CIENTÍFICO

Quanto à sua religião, Vereza garante não ter mudado em nada após ter conhecido o kardecismo. Admite, contudo, que a doutrina lhe ensinou muito. Aprendeu, por exemplo, a ter uma forma de ser mais abrangente, ficou mais tolerante, compreendeu que a lei do retorno existe. “Passei a ver o mundo de outro modo”, revela, ao confessar que ele próprio é um buscador. Vive buscando compreender por que está aqui, passando por este planeta redondo que não cai e que, no entanto, não é segurado por nenhum efeito especial.

“TENTO ENTENDER que para a existência de um efeito inteligente como a criação do universo é preciso existir uma causa inteligente”, explica. Vereza ressalta que os ateus não explicam a formação do universo desse jeito. Alegam que o ser humano é obra do acaso, do nada. Mas, a seu ver, o nada não pode produzir o nada. “Isso não é religioso. É científico. É lógica”, define.

Assim, para ele, existe primeiro uma força criadora, que “não é um velhinho de barba sentado numa nuvem”, mas uma força criadora que já existia antes do big bang. “A explosão do big bang foi uma explosão de amor, uma explosão que criou os planetas, os seres e tudo o que existe”, argumenta.

A religiosidade – ou melhor a espiritualidade – pautou a Mostra de Teatro Transcendental, realizada no Theatro José de Alencar de Fortaleza. Em sua quinta edição, a iniciativa apresentou as peças Violetas na Janela (RJ), A Dança da Psique de Augusto dos Anjos (SP), Um Espírito Baixou em Mim (MG), Minha Eterna Namorada (PR), Deus (CE) e a infantil Meu Amigo do Outro Mundo (ES).

 

A atriz Ana Rosa e sua filha na vida real, Ana Beatriz

Sua extensa programação incluiu ainda a apresentação diária e aberta ao público de um teatro de bonecos sobre a vida de Chico Xavier em terminais de ônibus da cidade, além de mesa-redonda e workshops. As montagens também foram encenadas em outros dez municípios cearenses. Promovido pela Associação Estação da Luz (entidade civil sem fins lucrativos que também é responsável pela produção do filme sobre Bezerra de Menezes), o evento é um mix de ação cultural e prática solidária. A exemplo dos anos anteriores, todo o dinheiro e alimentos nele arrecadados (além do ingresso, era preciso levar um quilo de alimento não-perecível para assistir aos espetáculos) foram destinados a seis instituições do Ceará. “Nossa proposta é apresentar peças de temática transcendental, especialmente aquelas de teor espiritualista que instiguem a platéia a refletir, impulsionando- a a dar sua contribuição para a construção de um mundo melhor”, diz o empresário cearense Luís Eduardo Girão, um dos idealizadores da mostra e da Estação da Luz.

A interpretação da médium que psicografou a obra,Violetas na Janela, sucesso que está em cartaz há dez anos

GIRÃO CONTA QUE a idéia de criar um evento nesses moldes nasceu em 2001, após ele ter assistido O Cândido Chico Xavier, do grupo carioca Companhia do Caminho, que estava em cartaz em São Paulo. “No fim do espetáculo fui conversar com o ator e diretor paraense Flávio Serra. Em fevereiro de 2002, trouxe a peça para Fortaleza”, recorda. Resultado: sucesso de público e de bilheteria. O espetáculo foi assistido por 4.200 pessoas num único fim de semana, registrando a maior bilheteria do Theatro José de Alencar até então. Tamanha procura obrigou os produtores a organizarem apresentações extras.

Desse episódio nasceu a amizade entre o empresário e Serra (este último faleceu no dia 18 de agosto). Juntos, eles foram os mentores da mostra, cuja primeira versão foi em 2003. “O nome ‘Transcendental’ foi definido em 2002. Tinha e ainda tem como meta reunir grupos cênicos cujas peças transmitam mensagens positivas. Elas podem ser sobre Gandhi, budistas ou espíritas, desde que propaguem a cultura da paz.”

Ao ser indagado sobre a relação da arte com a espiritualidade, Girão diz acreditar que a primeira é a expressão mais fidedigna da segunda. Para ele, os espíritos influenciam em todo o processo, desde a criação até a receptividade do público.

Os ”personagens” do Teatro de Bonecos

Mais ainda: na maioria das vezes, há co-participação direta deles, intuindo os artistas na elaboração do texto, na execução da obra, abrindo portas para a divulgação na mídia e até magneticamente deixando o público mais aberto para o despertar de suas emoções mais profundas, restabelecendo desse modo uma conexão entre a pureza espiritual do ser e suas aspirações terrenas.

Embora de cunho eclético, todas as montagens apresentadas este ano têm – diretamente ou não – enfoque espírita. A Dança da Psique de Augusto dos Anjos, por exemplo, aborda o assunto indiretamente. Produzido e interpretado por Heberth Bezerril, o monólogo retrata o duelo do poeta com sua poesia, questionando Deus, o bem, o mal, a violência e a fé, o que remete o público a um questionamento pessoal.

“Senti a presença de Augusto dos Anjos no palco e me emocionei”, comenta o ator de 37 anos, que faz teatro desde os 18. Espiritualista, crente em Deus e na vida após a morte, Bezerril confidencia que seu processo de criação é inspirado pelo “alto”. “Escuto o texto. Já escrevi peças em dois dias”, revela o ator. Ele é outro que acha que a arte está ligada à espiritualidade: “Quando entro em cena é como se ficasse tomado. Fico potente, ganho vitalidade, sinto muita energia. Me transfiguro”, acrescenta.

Os fenômenos mediúnicos retratados na peça Um Espírito Baixou em Mim; abaixo

NASCIDA NO CIRCO Teatro Novo Horizonte, em Promissão (SP), onde aos 15 dias de vida estreou no espetáculo O Mundo Não me Quis, no circo do avô, a atriz Ana Rosa Guy Galego relaciona a arte a uma missão. Ao lado de outros 24 atores, ela integra o elenco de Violetas na Janela. Em cartaz há dez anos, o espetáculo é um fenômeno de bilheteria. Baseada no bestseller de mesmo nome que já vendeu mais de um milhão de exemplares, narra a história de uma jovem de 19 anos que morre e vai para uma colônia espiritual. Depois de aprender a conviver em seu novo lar, a jovem aceita compartilhar suas experiências e aprendizado espirituais auxiliada pela tia, a médium Vera Marinzeck de Carvalho. É ela quem psicografa o romance espírita.

Ana Rosa conheceu a doutrina espírita em 1962, após perder o filho de um ano e dois meses, fruto do casamento com Dedé Santana. Tinha 17 anos e ficou muito revoltada. Ao perceber seu estado emocional, Augusto Cesar Vanucci lhe deu o Evangelho Segundo o Espiritismo. “Comecei a estudar o kardecismo e nele encontrei respostas”, lembra. Anos depois, viveu uma situação semelhante à da peça que hoje estrela e dirige – sua filha Ana Luiza de 19 anos, do segundo casamento com o falecido ator Guilherme Corrêa, morreu num acidente de carro, em 1995. “Só consegui superar mais essa perda graças aos ensinamentos de Allan Kardec’’, diz.

Os atores Haley Joel Osment e Bruce Willis, protagonistas centrais do filme O Sexto Sentido. Ao lado, personagens da montagem Minha Eterna Namorada, que mostra a continuação dos relacionamentos amorosos no plano espiritual. Em comum, todos têm abordagem espiritual

Se for considerada a sua primeira atuação ainda recém-nascida, Ana Rosa tem 65 anos de carreira – nunca parou de interpretar, tendo inclusive entrado para o Guinness Book em 1997 como recordista em número de trabalhos em telenovelas gravadas em videoclipe. Já atuou em teatro, cinema e tevê. Kardecista praticante, a atriz atribui o êxito de Violetas na Janela à mensagem de esperança transmitida pela montagem. “Isso é uma missão’’, declara. “Na realidade, acho que neste século a espiritualidade e tudo aquilo que transcende é missão da arte.”

Parceira de peça, a atriz Cristina Pereira também crê no duo arte/espiritualidade. “Se não fosse o sagrado, o teatro não existiria”, afirma. Basta ver que o primeiro passo para o teatro como conhecemos hoje ocorreu no século 6 a.C., na Grécia, onde surgiu o primeiro ator, quando o corifeu Téspis destaca-se do coro e declara estar representando o deus Dionísio. “Desde então, a arte está relacionada ao sagrado. Tanto é que muitos artistas dão um tratamento sagrado ao teatro e saúdam Dionísio ou fazem rituais antes de entrar no palco.”

Namoro é bem antigo

A relação da arte com a espiritualidade não é nova. Na literatura é comum ver obras dessa temática. Romances espíritas como os de Zíbia Gasparetto ocupam por semanas e até meses o topo do ranking dos mais vendidos. Na pintura pipocam telas psicografadas pelos grandes mestres. Casos das de Van Gogh, Picasso, Rembrandt reproduzidas pelo médium Gasparetto. Na música, sucessos da música gospel, new-age ou mesmo as mensagens de fé cantaroladas pelo padre Marcelo Rossi estão aí para não desmentir o fato.

No teatro, Augusto César Vanucci, Renato Prieto, Felipe Carone e Lúcio Mauro são considerados os precursores da transcendentalidade. Na televisão, a exibição e a posterior reapresentação das novelas A viagem e O Profeta (sucessos da extinta Rede Tupi) e até mesmo a recém-exibida Almas Gêmeas, pela TV Globo, comprovam essa tendência.

No cinema, filmes como Amor Além da Vida, Ghost, O Sexto Sentido e O Mistério da Libélula – só para citar alguns – abordam o tema. Mas novos lançamentos vêm por aí. Caso do longa Bezerra de Menezes – O Médico dos Pobres, cuja estréia está prevista para este segundo semestre. Dirigido por Glauber Filho e Joe Pimentel, a produção cearense está em fase de finalização. Suas filmagens começaram em maio, preocupando-se com a reconstituição fiel do século 19.

Para isso, os produtores contaram com a pesquisa histórica feita por Luciano Klein, biógrafo de Bezerra de Menezes e roteirista do filme ao lado de Glauber Filho. Protagonizado por Carlos Vereza, o filme é um documentário, ou docudrama, como é classificado por seus diretores.

Os atores Lúcio Mauro, Paulo Goulart Filho, Nanda Costa, Caio Blat e Nicette Bruno (participou nas passagens documentais) também estão no elenco. Produzido pela Trio Filmes e Estação da Luz, o filme está orçado em R$ 1,7 milhão e tem apoio da Lei Rouanet.

Bezerra de Menezes nasceu em 1831, em Riacho do Sangue (CE), onde passou sua infância e adolescência. Na maioridade, fez medicina no Rio de Janeiro. Elegeuse vereador e deputado em várias legislaturas, defendendo idéias abolicionistas. Mas foi o trabalho em favor dos desfavorecidos que lhe trouxe reconhecimento, conferindolhe o título de “Médico dos Pobres”. Aliás, ainda hoje é imensa a quantidade de entidades do Brasil inteiro batizadas com seu nome, num tributo a um homem que soube, como poucos, pela prática da caridade, abnegação e amor, construir na prática uma realidade melhor para milhares de brasileiros.