09/11/2020 - 10:17
No fim de agosto, quando a covid-19 já havia atingido 25 milhões de pessoas pelo mundo, cientistas de Hong Kong anunciaram o primeiro caso documentado de reinfecção pelo novo coronavírus. No estudo publicado no periódico “Clinical Infectious Diseases”, cientistas detalharam a história de um homem de 33 anos que testou positivo em 15 de agosto para covid-19 quatro meses e meio depois de ter sido diagnosticado pela primeira vez. A reinfecção só foi comprovada porque os vírus coletados no segundo exame positivo foram comparados geneticamente com os primeiros que o paciente contraiu em abril – e eram diferentes. Essa observação eliminou a suspeita de que o novo resultado positivo fosse causado por vírus que poderiam estar inativos no corpo do paciente após a primeira infecção.
Poucas semanas antes, pesquisadores da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP) haviam relatado que uma técnica de enfermagem de 24 anos testara positivo para o vírus duas vezes em um intervalo de 50 dias – a primeira em meados de maio e a segunda no fim de junho. Nesse caso, não foi possível fazer a análise genômica porque o material colhido do nariz havia sido descartado.
Nos últimos meses, começaram a surgir notícias sobre pacientes reinfectados pelo SARS-CoV-2, gerando preocupação na população e acendendo o sinal de alerta nas autoridades e na comunidade científica. A possibilidade de reinfecção poderia sugerir que as pessoas acometidas pela doença não desenvolveriam imunidade contra ela ou que essa imunidade teria prazo de validade. Além disso, trouxe mais um elemento para as discussões sobre a eficácia das medidas de isolamento social e as vacinas em desenvolvimento para combater o novo coronavírus.
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Suspeitas
Passados dois meses do caso de reinfecção em Hong Kong, o número de infectados pela covid-19 quase dobrou – já são 45 milhões de casos no mundo – e os pacientes reinfectados confirmados de que se tem notícia mundo afora não chegam a meia dúzia. Os casos suspeitos estão na casa de centenas. Houve registros documentados também na Holanda, no Equador, na Bélgica e nos Estados Unidos. Neste último, um paciente de 25 anos foi acometido duas vezes pela covid-19 em um intervalo considerado curto para doenças respiratórias causadas por vírus: 48 dias entre o primeiro e o segundo contágio. O caso tornou-se conhecido ao ser divulgado no periódico “The Lancet”. Na segunda vez em que foi infectado, o paciente apresentou sintomas mais severos, precisando de auxílio para respirar. O mesmo aconteceu nas reinfecções holandesa – em que a paciente, fragilizada por uma quimioterapia, morreu – e equatoriana.
Especialistas afirmam que o mais provável seria que os casos de reinfeção fossem associados a quadros assintomáticos ou com sintomas mais amenos do que na primeira infecção. Dessa forma, sobreviver ao primeiro ataque do SARS-CoV-2 seria garantia de tornar o sistema imune capaz de conter os danos da covid-19 de maneira permanente. A ocorrência de casos reincidentes mais severos aponta para outras hipóteses: a exposição a uma carga viral baixa no primeiro contágio poderia gerar uma resposta imune fraca, incapaz de barrar uma nova infecção. Outra possibilidade seria a de que a exposição a uma carga viral maior na reinfecção provocaria sintomas mais severos.
Casos excepcionais
No Brasil, pelo menos 93 casos de possíveis reinfecções por covid-19 estavam sendo estudados no fim de outubro, segundo levantamento divulgado em reportagem da CNN Brasil. Vinte e oito desses casos são acompanhados pelo infectologista Max Igor Lopes, que coordena um ambulatório dedicado exclusivamente a suspeitas de reinfecção no Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), em São Paulo. A equipe tenta descobrir como se dão as reinfecções e quais informações elas podem oferecer para melhor compreensão do contágio, do controle e até do potencial das vacinas contra a covid-19.
Lopes conta que a investigação é trabalhosa e que há pelo menos três maneiras de identificar um contágio reincidente. “A primeira é comparar os vírus coletados do paciente em momentos distintos por meio de uma análise genética. Isso nem sempre é possível por falta de material coletado nas duas ocasiões ou por algum defeito na coleta ou no armazenamento”, diz. Os laboratórios costumam guardar as amostras colhidas, mas diante do grande volume de coletas realizadas nos últimos meses muitas vezes é preciso fazer descartes. “Também é possível entrevistar o paciente para saber se houve transmissão da infecção para alguém próximo, em casa, por exemplo, o que estabelece um vínculo epidemiológico. O terceiro caminho é identificar o surgimento ou o aumento na quantidade de anticorpos relacionados à covid-19 em alguém que já havia contraído o vírus.”
Sem surpresa
O trabalho de detetive, entretanto, nem sempre esclarece todas as dúvidas. Os infectologistas ainda não sabem se as reinfecções são mais ou menos graves do que o primeiro contágio e se elas têm maior probabilidade de ocorrer depois de um período curto ou de um tempo mais longo. “Dos pacientes que avaliamos aqui no Hospital das Clínicas, 80% tiveram maior gravidade de sintomas na segunda infecção”, informa Lopes.
A possibilidade de contrair covid-19 mais de uma vez, contudo, não era uma completa surpresa. “A reinfecção não é algo inesperado para vírus respiratórios, como o influenza e os outros coronavírus que circulam entre humanos. Isso é conhecido e documentado”, explica o infectologista Celso Granato, diretor-clínico do Grupo Fleury e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Então, não é estranho que as pessoas contraiam o SARS-CoV-2 mais de uma vez. Em minha opinião, contudo, as reinfecções devem ser vistas como exceções e não como algo comum.”
Especialistas alertam para a probabilidade de que a maior parte dos casos de reinfecção jamais seja identificada, já que a maioria dos que contraem covid-19 é assintomática. Ou seja, muitos indivíduos podem se contaminar com o vírus sem saber até fazer o teste. Para os que desenvolvem os sintomas e testam positivo pela primeira vez, não é possível assegurar que não tiveram contato com o novo coronavírus antes.
Dificuldade de identificação
Se alguém diagnosticado tiver se curado e for reinfectado, mas não tiver sintomas, pode ser que nunca saiba a não ser que passe por outro teste, apenas por rotina. Foi o que aconteceu com o paciente de Hong Kong, de agosto. Seu segundo contágio só foi detectado por acaso em um exame feito em aeroporto. Em resumo, para haver um caso documentado de reinfecção, o mais provável é que o paciente tenha apresentado sintomas em dois momentos distintos e tenha sido testado em ambos.
Qualquer que seja o real cenário por trás de tantas incertezas, ele está longe de ser desolador. “Nossa maior preocupação, no momento, não são as reinfecções. Primeiro, porque é difícil comprová-las. Segundo, porque estamos preocupados com a proteção primária das pessoas. A primeira onda de contágios no Brasil ainda está evoluindo e não sabemos o quanto vai crescer”, ressalta Granato.
Em termos práticos, isso significa que as medidas de isolamento social e o uso de máscaras para evitar o espalhamento do vírus continuam importantes mesmo para quem já testou positivo, uma vez que reinfectados, assintomáticos ou não, podem seguir transmitindo o SARS-CoV-2. “É importante não confundir flexibilização do contato social com um afrouxamento nos cuidados de prevenção contra o vírus. Pelo contrário: quando se aumenta a liberdade das pessoas de ir e vir, aumenta a responsabilidade de cada um de nós de proteger a nós mesmos e aos outros”, alerta Granato.
ARTIGOS CIENTÍFICOS
TO, K. et. al. Coronavirus disease 2019 (Covid-19) re-infection by a phylogenetically distinct severe acute respiratory syndrome coronavirus 2 strain confirmed by whole genome sequencing. “Clinical Infectious Diseases”. 25 ago. 2020.
TILLETT, R. et al. Genomic evidence for reinfection with SARS-CoV-2: a case study. “The Lancet Infectious Diseases”. 12 out. 2020.