01/08/2012 - 16:30
Um século depois, parte do que resta da memória física da ferrovia épica vai submergir sob as águas das hidrelétricas do Rio Madeira.
Duas monumentais obras da engenharia brasileira do século passado foram implantadas em Rondônia: a quilométrica linha telegráfica da Amazônia, levada a cabo pelo marechal Cândido Mariano da Silva Rondon, e a ferrovia Madeira-Mamoré, aberta em plena floresta tropical, que completa 100 anos em agosto. Da primeira não resta um fio, mas a linha de comunicação que uniu Rondônia ao resto do Brasil não se desfez. A segunda está indo pelo mesmo caminho, sem ressalvas.
Raramente um historiador lida com a história ao vivo, mas em Rondônia isso ainda é possível, pois o que sobrou da sucateada ferrovia ainda dá para ser vislumbrado. Muitos vestígios estão lá: locomotivas abandonadas, trilhos perdidos no mato, um museu em Porto Velho, outro em Guajará-Mirim, um cemitério abarrotado de cruzes, ruínas de estações fantasmas e pontes metálicas enferrujadas.
Parte desse legado está submergindo sob as águas represadas das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, no Rio Madeira, como a ponte metálica Jaci-Paraná, com 84 metros de vão, um ícone da ferrovia. “Essa vai para baixo d’água”, lamenta o historiador Aleksander Palitot, da Faculdade Porto, da Fundação Getúlio Vargas de Porto Velho. “Vários trechos da ferrovia foram inundados. Outra perda é a inundação do Marco Rondon, ou Marco Divisório, um obelisco centenário construído pela expedição Rondon, que implantou as linhas telegráficas em 1911, durante a demarcação dos Estados do Amazonas e de Mato Grosso”, diz o historiador. Da memória apagada sobreviverão, além dos museus, pontes ferroviárias convertidas em rodoviárias, já usadas na rodovia Porto Velho-Guajará-Mirim.
O descaso com a preservação do que resta da ferrovia histórica leva o arquiteto Luiz Leite de Oliveira, presidente da Associação de Amigos da Madeira-Mamoré, a denunciar “a degradação, o abandono e o completo desaparecimento que também ocultará o orgulho de termos construído uma obra considerada ciclópica na época”.
Exagero? Nem tanto. Na ocasião, a construção da estrada foi comparada à abertura do Canal do Panamá. Personalidades como o presidente Theodore Roosevelt, dos Estados Unidos, o escritor Mário de Andrade e o médico e antropólogo Edgar Roquette-Pinto, pioneiro do rádio no Brasil, “vieram a Rondônia conhecer o resultado do desafio de construir uma ferrovia no coração da Floresta Amazônica”, ressalta Palitot.
Saída para o mar
O apogeu da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM) foi sua inauguração festiva em 1º de agosto de 1912, em Porto Velho. Os 366 quilômetros da ferrovia cortavam a floresta unindo as recém-fundadas Porto Velho e Guajará-Mirim (na divisa com a Bolívia). Desde 1867, sonhava-se com a obra. Naquele ano o Brasil firmou com a Bolívia o Tratado da Amizade que permitia ao país andino a navegação pelos rios Beni, Guaporé, Mamoré e Madeira, para escoar produtos pelo Oceano Atlântico. Havia só um porém: faltava transpor um extenso trecho encachoeirado do Rio Madeira – o que só uma ferrovia conseguiria.
A primeira concessão para a construção da estrada foi acertada em 1868 e entregue ao americano George Church, presidente da Madeira-Mamoré Railway Co. Em 1872, iniciaram-se as obras. Com problemas similares aos encontrados pelos engenheiros franceses na primeira fase da construção do Canal do Panamá – agravados pelas dificuldades de abrir caminho pela floresta e o exorbitante número de trabalhadores mortos por malária e febre amarela –, duas empresas contratadas para a execução da ferrovia foram à falência, deixando para trás, em 1879, sete quilômetros de trilhos colocados.
Em 1879, a Bolívia sofreu uma traumática perda de território na costa do Oceano Pacífico, conquistado militarmente pelo Chile durante a Guerra do Pacífico (1879-1883), travada também contra o Peru. Os bolivianos perderam a cidade de Antofagasta e se viram sem saída para o mar. A ferrovia Madeira-Mamoré e os rios amazônicos viraram a única alternativa para a exportação dos seus produtos, pelo porto de Belém, no Oceano Atlântico. Entretanto, nenhuma outra empresa de engenharia topou encarar o desafio e Church desistiu da empreitada.
Para piorar, as relações entre Brasil e Bolívia também se deterioraram. Na virada do século 20, a Amazônia ganhou prosperidade com o ciclo da borracha, graças à seringueira Hevea brasiliensis. Espalhadas pela floresta, as árvores produziam uma borracha de qualidade única, essencial para o transporte, a comunicação e a indústria da época, um pouco como o petróleo é hoje em dia. Até 1910 a borracha foi o segundo produto da exportação brasileira, perdendo apenas para o café. Em consequência, a região recebeu investimentos, conheceu um boom econômico, inaugurou o Teatro Amazonas, em Manaus, e os seringalistas que haviam invadido a floresta boliviana proclamaram a República do Acre, em 1889.
Graças aos esforços do diplomata José da Silva Paranhos, o barão do Rio Branco, evitou-se uma guerra com o país vizinho por meio do Tratado de Petrópolis, de 1903, pelo qual a Bolívia vendeu o Acre ao governo brasileiro. Pelo acordo, o Brasil se comprometeu a indenizar os bolivianos em dinheiro e a construir efetivamente a estrada de ferro. Em 1907 o governo federal assumiu a construção da ferrovia, entregando o empreendimento ao empresário norte-americano Percival Farquhar (1864-1953). Foi a primeira grande obra da engenharia civil norte-americana fora dos EUA após o início da construção do Canal do Panamá (então em andamento). Quase 800 engenheiros e trabalhadores norte-americanos participaram da empreitada.
Farquhar, na verdade, estava mais interessado na borracha acreana do que nos produtos bolivianos. Segundo o jornalista Elio Gaspari, pesquisador do empreendimento, o norte-americano foi o maior empresário de serviços públicos da história nacional. “Ao câmbio de hoje, seus investimentos no país equivaleriam ao controle da Light, da Vivo, da Eletropaulo, da Acesita, dos metrôs do Rio e de São Paulo e ele ainda seria o principal acionista de nossos portos e ferrovias”, diz Gaspari.
Sob suas ordens, o trajeto da ferrovia foi alterado, pântanos foram saneados, o médico e sanitarista Oswaldo Cruz foi enviado a Rondônia para dirigir as campanhas de saúde, construiu-se um hospital de referência em Porto Velho e a capital de Rondônia ganhou sistemas de água e esgoto.
Rastro de sofrimento
Depois de seis anos de construção, que empregaram 21 mil homens de 30 nacionalidades e percalços como desmoronamentos causados por chuvas e ataques de índios, a obra terminou em 1912. Seis mil trabalhadores perderam a vida na empreitada, a maioria vitimada pela malária e a febre amarela.
Uma vez implantada, a “Ferrovia do Diabo” tinha tudo para dar certo, pois a borracha seguia valorizada no mercado mundial. Mas veio outro imprevisto. No fim do século 19, o inglês Henry Wickham contrabandeara para a Inglaterra 70 mil sementes da seringueira, liberadas pela alfândega de Santarém como “espécies exóticas e delicadas para o Jardim Botânico de Londres”. A hévea foi plantada na Indonésia e na Malásia e começou a produzir intensivamente em florestas cultivadas. Assim, em 1913, a ferrovia sofreu outro golpe: os plantadores asiáticos inundaram o mercado com uma borracha de boa qualidade a preços baixos. A biopirataria de Wickham arruinou a economia da borracha da Amazônia e deu à Inglaterra o monopólio global do produto até a Segunda Guerra Mundial, quando surgiu a borracha sintética.
Falida, a ferrovia se arrastou nas mãos da Madeira-Mamoré Company até 1934, quando a empresa rescindiu o contrato de arrendamento de 60 anos e a estrada voltou para as mãos do governo federal. Durante a Segunda Guerra Mundial a Madeira-Mamoré recuperou valor estratégico, recolhendo borracha para o esforço de guerra aliado. Até 1957, chegou a registrar tráfego de passageiros e cargas. Em 1966, entretanto, o governo federal determinou que fosse desativada e substituída por uma rodovia, para não configurar um rompimento do Acordo de Petrópolis. Tal rodovia é a união da BR-425 (Porto Velho-Guajará-Mirim) e da BR-364 (Porto Velho-Cuiabá). Em 1981, um pequeno trecho da ferrovia voltou a funcionar para fins turísticos, mas foi paralisado no ano 2000.
Quarenta anos depois do último apito das marias-fumaças, uma pátina de esquecimento líquido cai sobre a estrada, inundada pelas águas do reservatório da hidrelétrica de Santo Antônio. Como compensação pelos impactos da obra, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional determinou a restauração da oficina da EFMM em Porto Velho (5,7 mil metros quadrados de área construída e galpões de 13 metros de altura), paga pelo consórcio Madeira Energia, responsável pela usina.
Um trecho de oito quilômetros da estrada, entre Porto Velho e Santo Antônio, vai abrigar um trem turístico em 2014 – para matar saudades.