Nas últimas décadas aconteceram transformações historiográficas com deslocamentos teóricos e ofertas metodológicas. A partir dos anos 1980, a escravidão e a pós-emancipação ganharam destaque. Já existiam estudos importantes, contribuições de brasilianistas, pesquisadores estrangeiros, mas, sobretudo a partir daquele período, ocorre uma inflexão. Para além de uma escravidão generalizante que prevalecia em manuais antigos ou de um escravismo em embates teóricos necessários, vão surgir novas abordagens esmiuçando pedaços de uma grande e complexa sociedade escravista no Brasil. Por diferentes caminhos – perfis geracionais e temáticas –, os livros recentes de João José Reis, Mariana Armond Dias Paes e Petrônio Domingues expressam faces de algumas dessas trilhas intelectuais, de uma história social passando aos seus desdobramentos de história pública.

Em termos cronológicos temáticos, começamos com o livro Ganhadores: A greve negra de 1857 na Bahia, de João Reis. Um dos mais importantes historiadores brasileiros é considerado referência da viragem historiográfica sobre escravidão africana atlântica. Por meio de pesquisas primorosas, narrativas empolgantes e incorporações teóricas bem conduzidas, Reis vem oferecendo nos últimos 30 anos inúmeros estudos originais sobre a escravidão, biografias e africanos em cenários urbanos alicerçados por identidades, religiosidades e cultura étnica.

O impacto da escravidão urbana no Brasil foi considerável, estabelecendo diferenças para outras sociedades escravistas e com escravos nas Américas. Nunca se tratou somente de associar escravidão a cidades. Por aqui havia núcleos urbanos desde o século 17, além do período setecentista em Minas Gerais. Mas não representavam ainda verdadeiras cidades negras escravistas. Estas surgiriam com muita força na era oitocentista, como espaços profundamente demarcados pelo trabalho compulsório nos setores de serviços: carregadores, quitandeiras, vendedores diversos, carpinteiros, etc.

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Alta concentração

A escravidão predominantemente rural ao longo dos quase quatro séculos vai constituir, no Brasil, os maiores espaços urbanos africanos do Atlântico. Em nenhum lugar – mesmo no litoral ou interior do continente africano – vamos encontrar tamanha concentração africana escrava em áreas urbanas, especialmente Rio de Janeiro, Salvador e Recife no século 19.

A maior parte dos cativos urbanos vivia no sistema do ganho, terminologia a designar escravos ao ganho. Saíam para as suas diversas ocupações e a cada semana ou mês reapareciam diante de senhores para entregar quantias fixadas: o chamado jornal. O escravo se comprometia a entregar quantias regulares e o senhor a permitir que ele circulasse livremente pela cidade, morasse onde bem entendesse e guardasse para si o dinheiro que excedesse o valor do jornal. Escravos ao ganho precisavam ficar dias inteiros nas ruas.

“Ganhadores: A greve negra de 1857 na Bahia”, de João José Reis. Companhia das Letras, 456 páginas, R$ 79,00

Nas cidades negras do Brasil atlântico, africanos vão controlar o mercado de trabalho. Reis mostra como Salvador explode em termos demográficos na primeira década do século 19, montando uma estrutura única. Porém, o autor não transforma africanos numa “multidão” em termos analíticos. Adentrando savanas – no caso, África Ocidental –, localiza milhares e milhares de africanos e suas culturas. Gente originária de diversas microssociedades, marcadas por conflitos, guerras, deslocamentos políticos e interações geográficas. É com essa bagagem que Reis atravessa os mares do Sul para desembarcar na Bahia, analisando Salvador. Ali, cerca de 70% da população escrava era africana, num perfil de embarcados em portos da Costa da Mina.

Greve negra

Formas de controle, identidades étnicas e explosão de insurreições foram assuntos de obras clássicas do autor. Investigando as modulações étnicas do mercado de trabalho urbano baiano, neste livro Reis vai se aprofundar tendo como fio condutor uma greve de africanos, cativos ou livres, em 1857. Centenas deles ao ganho paralisaram por semanas o porto e os setores de abastecimento e transporte. Não lutavam por salários ou o fim de castigos, mas contra a imposição de leis que visavam controlar espaços, símbolos, signos e condições de trabalho: chapas de identificação individual que passaram a ser exigidas pela Câmara Municipal de Salvador.

Mais do que adornos, a burocracia fiscal significava mudanças de regras e costumes que interferiam nas relações de trabalho e oferta dos serviços. Reis chamou o movimento de “greve negra”, mostrando as disputas entre o poder público, senhores, comerciantes e trabalhadores em torno da cultura política e organização étnica.

As contribuições teóricas e metodológicas de Reis – data de 1993 a publicação dos primeiros ensaios sobre essa greve – têm sido fundamentais para a renovação da história do trabalho e do movimento operário. Abordagens clássicas muitas vezes só consideraram o fim da escravidão, a imigração, o anarquismo, os italianos, os espanhóis e o sindicalismo do alvorecer do século 20 como temporalidades exclusivas do mundo do trabalho. Desconsideravam-se formas organizacionais anteriores, incluindo protestos de africanos e da população negra em geral durante a escravidão.

As investigações de Reis adentraram os cantos de trabalho, escutaram as canções, contabilizaram lógicas comerciais, reagiram à fiscalização urbana, conferiram as matrículas, reclamaram de impostos, localizaram os interesses públicos, surpreenderam os lucros senhoriais e encontraram as expectativas desses trabalhadores negros.

“Escravidão e Direito: O estatuto jurídico dos escravos no Brasil oitocentista (1860-1888)”. de Mariana Armond Dias Paes. Alameda/Fapesp, 338 páginas, R$ 64,00
Arena jurídica

Entremos em Escravidão e Direito: O estatuto jurídico dos escravos no Brasil oitocentista (1860-1888), de Mariana Armond Dias Paes. Fruto de tese de doutorado, oferece competente investigação a respeito das entranhas jurídicas da sociedade escravista oitocentista. Há muito que os historiadores têm transformado processos crimes e ações de liberdade em postos de observação metodológica para melhor encontrar e ouvir escravizados em seus testemunhos, sob trechos opacos e transcrições difíceis. Mas a arena jurídica no mundo escravista era trincheira para várias batalhas. Assim Paes nos leva aos ambientes das formulações e dos conceitos, apresentando um excelente estudo sobre os estatutos jurídicos dos escravos. Para além dos tribunais, manuais, jargões e códigos, a autora destrincha os sentidos e significados que informavam aquela sociedade a respeito de direitos, leis, deveres, litígios, penas e punições.

Peças processuais foram cuidadosamente auscultadas para revelar dramas, conflitos, traumas e interpretações sociais traduzidas nas leis. Diferentes ordenamentos jurídicos, principalmente a partir da década de 1860, reconheciam os escravizados como pessoas, detentoras de direitos e mesmo voz e consciência. Não necessariamente alteravam as relações de poder, posto que subordinadas pelas ações senhoriais e intervenções de curadores. Paternalismo, violência, obrigações, direitos, poder e limitações civis e jurídicas funcionavam alternando tensões, interesses, conflitos e acordos.

A propriedade sobre bens imóveis e pessoas era tema central para juristas. Retóricas de direitos e proteção civil dialogavam – nunca enquanto incongruências – com as restrições das práticas jurídicas. Não era só a lei ou o entendimento sobre elas, mas suas operações cotidianas, das petições aos tribunais.

Escravidões redefinidas

Paes escolheu mergulhar nos contextos de ebulição, nos quais a escravidão, suas justificativas, defensores da permanência ou propagandistas da sua extinção gradual se colocavam em arenas jurídicas e suas respectivas armas. Ela vai abordar adequações de práticas, do pensamento liberal e dos sistemas de domínio, poder e propriedade: pessoas, corpos, mentes, bens e valores atribuídos.

As contribuições de Paes vão além. História, escravidão e direito vão ser articulados, mapeando o período entre 1860 e 1888. A crise e a extinção da escravidão foram igualmente enquadradas em exercícios teóricos de juristas e seus manuais, manipulando conceitos e alargando entendimentos sob a pressão dos escravos e da sociedade envolvente. Ideologias senhoriais, percepções escravas, doutrinas e práticas jurídicas inventavam liberdades ao redefinir escravidões. Enquanto personalidade jurídica, o estatuto do escravo ganhava novos contornos em decisões judiciais. Havia ao mesmo tempo violências e direitos de propriedade entre arcabouços jurídicos que combinavam trabalho compulsório e pessoas.

Liberalismo e escravidão vão estruturar a sociedade, ganhando mais força e justificativas nas últimas décadas oitocentistas, paradoxalmente quando os debates pela emancipação se aprofundaram. A questão não seria mais liberdade para quem, mas liberdade para quê?

O que acontece depois da Abolição? Quando começa e termina a pós-emancipação? Eis alguns desafios para os historiadores de um campo em construção. Não se tratou somente de esticar cronologias para as manhãs subsequentes ao 13 de maio. Quais os termos para entender uma sociedade quando não mais havia juridicamente escravizados, mas sobravam negros, racismo e segregação?

“Protagonismo Negro em São Paulo”, de Petrônio Domingues. Edições Sesc, 172 páginas, R$ 25,00
Protagonismo negro

Petrônio Domingues oferece muitas pistas em Protagonismo Negro em São Paulo. Ele é um dos mais produtivos historiadores de uma nova geração que vem se debruçado sobre a pós-abolição. Nos últimos anos surgiram importantes estudos com a urbanização, o movimento operário, o Estado, a industrialização, o Carnaval, a cidadania, a nação, os esportes e a democracia sendo revisados por chaves analíticas da questão racial e da pós-abolição. Negros não estavam só nas filas das fábricas nas periferias urbanas ou amarrados num mundo rural que se modernizava sem mudanças. Havia expectativas, personagens, movimentos e ações sob um “protagonismo negro” emergente, embora silenciado em narrativas de disputas.

Domingues e vários outros historiadores vêm oferecendo abordagens consolidadas com demonstração empírica e interpretações originais. Não se trata tão somente de escurecer universos de análise, incluindo seus autores. A força de muitos novos estudos está justamente na incorporação e adensamento historiográficos e não simplesmente na produção de uma narrativa subalterna paralela.

E Domingues vai descortinar paisagens afro-paulistas na capital e no interior. Encontramos impressões negras comunicando associações e leitores. Há uma profusão de periódicos promovendo a autovalorização dos afrodescendentes, visões de mundo, formas políticas e culturais. Sempre associados a uma determinada “elite negra” (intelectuais e profissionais liberais negros de classe média), havia uma diversidade de formatos, tendências e objetivos de atuação dos jornais e associações.

Espaços políticos impressos

Muitas das vezes seguindo o formato dos periódicos operários ou daqueles produzidos por imigrantes estrangeiros vão se constituir espaços políticos impressos pela e para a “classe dos homens de cor”. É ela a protagonista, como mostra o autor. Quase sempre alijada das narrativas sobre a “nação”, ela vai construir retratos e com eles representações próprias em torno das ideias de raça: o “nós” e os “outros”.

No livro, Domingues alinha investigações que já têm aparecido em vários de seus estudos. Destaca-se o vasto material dos jornais, publicando caricaturas, crônicas e poesias entre editoriais que apelavam para a conscientização. Educação, costumes e hábitos são nortes para indivíduos “letrados”. Periódicos seriam também núcleos de formação racial. Tudo estimulado por meio dos editoriais. Ações comunitárias e públicas de construção de monumentos, homenagens a abolicionistas, promoção de festas beneficentes são noticiadas.

Os três livros refazem caminhos para pensar história, memória e cidadania. A partir de programas de pós-graduação das universidades públicas com apoio de agências federais e estaduais de fomento têm sido produzidas dissertações, teses e pesquisas, articulando novos campos de investigação histórica. Sons do tempo presente não foram silêncios com os historiadores enclausurados em bibliotecas e arquivos. Debates públicos e movimentos sociais apresentam pautas e demandas. Movimentos sociais negros, políticas públicas de ações afirmativas e uma legislação que torna obrigatório o ensino de história da África e dos afrodescendentes reverberam ambiências acadêmicas. Arquivos, acervos e experiências têm sido descortinados, fazendo sobressair títulos e lançamentos editoriais.

 

* Flávio Gomes é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do CNPq.