01/09/2012 - 0:00
O mau agouro motivado pela fúria da tempestade noturna, em meio ao parto, se dissipou assim que, ao amanhecer, a jovem condessa Adèle contemplou o rosto do filho. Bonito seria dizer pouco. Os traços delicados e harmoniosos eram ainda mais valorizados pela alta fronte, mas a aura de grandeza em sua aparência vinha dos olhos negros como alcatrão, inquietos e inquisidores. Não era só ela que se envaidecia, mas as avós, que eram também irmãs, e o pai, o conde Alphonse, enfim, a família toda.
O menino nasceu afortunado: seus antepassados heróis e aristocratas participaram das primeiras Cruzadas em Jerusalém. Em Albi, Toulouse e Carcassonne, cidades do sudoeste francês, o sobrenome Toulouse-Lautrec carrega, ainda hoje, tradição e fidalguia.
Albi (do latim alba, “alva”) é uma cidade solar e medieval, totalmente construída de tijolos – que lhe dão grandiosidade – e da cor de tangerina madura. Ao entardecer, ganha leveza e um inverossímil tom rosa-romã. Em julho de 2010, não por acaso, Albi foi tombada pela Unesco e declarada Patrimônio da Humanidade. Foi nela que, em uma tenebrosa noite de novembro de 1864, nasceu o artista Henri Marie Raymond de Toulouse-Lautrec Monfa. “Meu filho será grande”, vaticinou Adèle, no quarto do palacete de Bosc, localizado no centro histórico da cidade.
Belo, nobre, rico e amado.
Perfeito? Não, mais que perfeito. Em poucos anos o menino revelaria possuir um dom especial. Toulouse-Lautrec é um caso raro na história da arte, podendo-se afirmar que nasceu sabendo: aos 9 anos já enchia páginas de cadernos escolares com belos desenhos, e aos 15 seus retratos da mãe, do pai e dos criados eram primorosos (o Museu de Arte de São Paulo, Masp, possui em seu acervo um belo retrato que Lautrec fez de sua mãe, nos jardins do château de Malromé. Amava, sobretudo, desenhar cavaleiros, amazonas, caleches, cavalos fortes e altivos. Captava com mínimos traços o máximo do movimento.
Quando a família se mudou para Paris, Henri foi estudar em um dos melhores colégios da Europa. Tudo perfeito demais da conta, talvez tenham dito as bruxas. Aos 14 anos, durante as férias em Albi, descendo a escadaria para os salões da casa, ele caiu e quebrou o fêmur esquerdo. A convalescência foi longa, mas os ossos não se uniram. Seis meses depois, quando passeava pelo jardim, escorregou e fraturou a perna direita. As pernas se deformaram e nunca mais cresceram. Hoje se sabe que Henri padecia de uma doença óssea não diagnosticada na época, a distrofia poli-hipofisária, provocada pelo fato de seus pais serem primos-irmãos.
Já adulto, seu tronco se desenvolveu normalmente, mas os braços ficaram curtos, e Henri nunca passou de 1,52 metro de altura. A pele do rosto, excessivamente gordurosa, era cheia de espinhas; o nariz tomou forma de batata e a boca se tornou inchada e disforme. Os lábios grossos, intumescidos e sempre úmidos, provocavam repugnância. Mais do que a deformidade e a desproporção do corpo, aquela boca impedia qualquer gesto de amor.
Irremediavelmente feio. Grotesco. Um garrancho de homem. Uma caricatura viva. Claudicava, sempre acompanhado de uma bengala, e coxeava com esforço e dor, tentando arrancar do chão as solas dos sapatos.
Mas se a feiura sobrava, o humor era farto. Espirituoso, o artista se retratava em caricaturas cáusticas. Exibia também uma sensualidade elevada à potência máxima. Gostava de cozinhar pratos excessivamente picantes e andava sempre com um pequeno ralador e uma nozmoscada para perfumar os copos em que ia beber vinho ou absinto.
Quanto mais forte fosse a bebida, melhor. Chegava a esconder, dentro do bastão da bengala, um tubo de vidro cheio de álcool. Consta que inventou o coquetel Terremoto, muito popular no cabaré Moulin Rouge, na sua época: metade de conhaque e metade de absinto, sobre cubos de gelo.
A invenção do cartaz
Quando Toulouse-Lautrec se mudou para Paris, em 1882, passou a frequentar em Montmartre les maisons closes, as casas de prostituição. Aquelas mulheres eram as únicas de quem podia esperar um pouco de ternura, mesmo que paga. O pitoresco bairro era ainda quase rural, com granjas, moinhos, plantações de uvas, circos, cafés e cabarés baratos. Seus quadros dessa época constituem um depoimento da cruel condição em que viviam as dançarinas, os palhaços, os gigolôs, as garçonetes e as prostitutas. Mas nunca foi um crítico moralizante. Não julgava nem condenava; apenas mergulhava no universo das personagens.
Em março de 1886, Henri encontrou-se em Paris com Vincent van Gogh, que se inscrevera no ateliê do professor Cormon. Há um estranho paralelismo entre a vida dos dois pintores. Ambos morreram com 37 anos. O holandês Van Gogh suicidou-se e, de certo modo, Toulouse- Lautrec também. Os dois possuíam personalidades, convicções e educação muito diferentes para se tornarem amigos. Contudo, em várias cartas de Van Gogh para o irmão Theo vê-se sua admiração pelo trabalho de Lautrec, além de recomendações ao irmão, que dirigia uma galeria de arte, para adquirir telas do pintor francês. Vincent e Henri gostavam de conversar sobre o impressionismo, corrente artística, na época, em ebulição, e pode-se afirmar que ambos se influenciaram mutuamente, sobretudo no colorido ousado e nos traços nervosos de suas pinturas.
Henri Perruchot, um dos mais conceituados biógrafos de Toulouse-Lautrec, afirma que os dois artistas tentaram expor juntos em um restaurante na Avenida de Clichy. Há dessa época um raro pastel de Lautrec, que hoje pertence ao acervo da Fundação Van Gogh em Amsterdã, retratando o perfil anguloso do ruivo holandês, com olhar e mãos tensos.
Certa manhã de 1891, surgiu um outdoor vibrante nos muros de Paris. Era um cartaz promocional, convidando às danças do Moulin Rouge, o primeiro de uma série que irá retratar o novo “parisianismo”: os bares, os cafés-concerto, as cantoras e dançarinas endiabradas do cancã, como Louise Weber, la Goulue (a Gulosa), a cantora Yvette Guilbert, Cha-U-Ikao, o cantor Aristide Bruant, os frequentadores desses locais e o Circo Fernando.
Toulouse-Lautrec, então com 27 anos, contou nos cartazes a vida parisiense, tornando-se um cronista de sua época. Foi também o primeiro designer moderno, notando que as pessoas não tinham tempo para ler muita informação nas capas de revista, nos livros, cartazes, suplementos literários e programas de teatro. Neles, exprimia o máximo da vitalidade com um mínimo de linhas e cores.
Para a artista paulista e professora de arte Fayga Ostrower (1920-2001), polonesa radicada no Brasil, “Toulouse-Lautrec figura entre os maiores artistas do século 19. Nos últimos anos de sua vida, seu estilo na pintura cresceu para um novo realismo, denso e monumental. Em qualquer fase, porém, há uma renovação na linguagem, na qual ainda hoje nossa geração se inspira”.
O celebrado Pablo Picasso declarou que sua renomada fase azul foi profundamente influenciada pelo artista albigense. Até o fim de sua vida, Picasso conservou em seu ateliê um cartaz de Lautrec.
Aquele que acumulou excessos de dor, trabalho, prazer e bebida faleceu ao lado da mãe protetora, em 9 de setembro de 1901, no château de Malromé, após uma crise de delirium tremens que o deixara paralisado. Depois de sua morte, Adèle reuniu todas as obras do filho, desde os primeiros desenhos da infância, esboços, litografias, gravuras, cartazes e quadros, e os doou à cidade de Albi.
Hoje, o Museu Toulouse-Lautrec ocupa várias salas do Palácio Episcopal, que fica a poucos passos do lugar onde ele nasceu. Nos rostos dos visitantes do mundo todo, o que se vê é admiração. Não se pode deixar de amar o artista e procurar conhecê-lo melhor. Finalmente, como augurou Adèle, Henri de Toulouse-Lautrec tornou-se grande.