01/12/2007 - 0:00
Uma das últimas “canoas de tolda” ainda existentes no Baixo São Francisco. Esse tipo de embarcação, originário da Malásia, foi trazido ao Nordeste pelos holandeses nos tempos coloniais. Hoje, apenas uns poucos artesãos da região são capazes de construir e manejar esses barcos.
Canindé de São Francisco, no interior sergipano, era desconhecida do turismo brasileiro até pouco mais de dez anos atrás. Foi nessa época que a recémformada represa da hidrelétrica de Xingó, no rio São Francisco, criou ali o quinto maior cânion navegável do mundo, permitindo com isso que barcos tivessem acesso a fantásticos labirintos de formações rochosas de 60 milhões de anos e com até 50 metros de altura.
O impacto causado pela exótica beleza dessas paisagens, porém, não se estendeu imediatamente ao município, a 213 km de Aracaju – e não é porque lhe faltem atrativos. É certo que lá estão, como em muitos outros redutos do Nordeste, o solo seco, o sol insistente, o azul do céu que passa da conta, a vegetação retorcida da caatinga. Mas, por trás desse cenário conhecido, escondem-se muitos segredos capazes de seduzir os visitantes.
Há três anos, a atual administração do município decidiu dar prioridade para o turismo, além da agricultura. O primeiro passo era diagnosticar os obstáculos que impediam o desenvolvimento nesse setor. “Nossos maiores problemas eram o desemprego e a baixa estima do sertanejo”, observa José Pedro Gomes dos Santos, secretário de Cultura e Turismo de Canindé.
“Deixamos de lado o blablablá de sempre de que temos potencial turístico e é preciso aguardar verbas, e partimos para bombar novos projetos com poucos recursos, mas com altíssima criatividade.”
Para tanto, ele foi buscar a turismóloga Silvia de Oliveira, com larga experiência no desenvolvimento turístico de Sergipe, para sua Diretoria de Turismo. Os resultados não tardaram a vir (ver quadro na pág. 37). Com o apoio do prefeito local, Orlando de Oliveira, Silvia e Gomes começaram por dinamizar a parte social e cultural relativa ao segmento. Essa atitude revitalizou, por exemplo, grupos folclóricos, como a Cavalhada e o Pastoril de Canindé, que hoje têm presença assegurada nas festividades do município e do Estado. A cidade, aliás, se desmancha em festas e bailes nos finais de semana, com desafios de violeiros e a alegria do forró pé-de-serra.
Nos finais de semana, festas e bailes tomam conta de toda a cidade. Multiplicam-se os FORRÓS e os desafios de violeiros
Nesse cenário vieram à luz personagens que são verdadeiros marcos culturais da cidade e estavam à deriva, como o orgulhoso vaqueiro Zé Leobino, de 84 anos, e a contadora de histórias Dona Durvalina, 79. Esses antigos moradores de Canindé de Baixo relatam episódios da primeira metade do século 20, quando a cidade era alvo dos ataques de Lampião e seu bando. “Vida boa é vida de vaqueiro”, tasca Leobino, que recorda com alegria o tempo em que participava da cavalhada e do pegaboi- no-mato. (Este último é um desafio de valentes a cavalo que pode ser visto nas maiores fazendas da região.)
O trabalho de Silvia e Gomes está dando a Canindé condições de tornarse um pólo turístico muito mais importante. Obviamente, os passeios pela represa de Xingó são um diferencial e tanto – num desses percursos, por exemplo, navega-se por cerca de 18 quilômetros até atracar na Gruta do Talhado, uma piscina de águas translúcidas e esverdeadas encravada numa gigantesca fenda do rochedo. Imagens fortes da natureza também estão nas trilhas da Fazenda Novo Mundo, a 30 km da cidade. Ali o visitante entra em contato com a riqueza da flora e da fauna, sítios arqueológicos e refúgios de cangaceiros. Mas há bem mais para ver.
A partir da esquerda, acima, em sentido horário: vaqueiro de Canindé com seu chapéu típico; sanfoneiros mirins mantêm a tradição do forró; a lápide na Gruta do Angico, onde Lampião e Maria Bonita foram assassinados; a roupa de couro de outro vaqueiro, a cavalo, o protege dos espinhos do mandacaru; aspecto do grande cânion do rio São Francisco; cena de cavalhada.
A FORMAÇÃO DO reservatório da usina trouxe a necessidade de salvar o material arqueológico que ficaria submerso. Descobriu-se então a existência de uma cultura xingoana com pelo menos 9 mil anos, e seus tesouros foram a origem do Museu de Arqueologia de Xingó (MAX). No moderno prédio, mantido pela Universidade Federal de Sergipe, pode-se passar várias horas conhecendo o primitivo habitante daquela região. São 55 mil peças, das quais as mais representativas estão expostas: cerâmicas, instrumentos de rocha, pinturas rupestres, esqueletos e reconstituições de nossos antepassados. O museu interage com a sociedade local por meio de eventos, publicações, exposições e de uma intensa ação educativa.
Um destaque turístico especial são os relatos sobre Lampião e Maria Bonita. A presença dos cangaceiros em Canindé foi marcante – é na divisa do município com Poço Redondo, por exemplo, que fica a Trilha do Angico, caminho para a grota homônima onde Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros foram mortos e decapitados. Suas cabeças foram levadas para Piranhas (AL), ali pertinho, e expostas nas escadarias da prefeitura.
A distância entre a memória e a história é um oceano, e, na boca do povo, Lampião e seu bando tornaram-se justiceiros. “Cansados de tanto levar fubeca dos governantes, eles partiram para a luta para sobreviver”, diz Leobino. Lampião representa hoje o sertanejo, a força e a liberdade.
No alto, a partir da esquerda, baile de forró em Canindé; o caju, fruta regional; no mercado, banca de pimentas. No centro, a partir da esquerda, velha moradora da cidade e sua vizinha, rendeira de bilro. À esquerda, vista da usina de Xingó.
Com mangas arregaçadas e sem medo de enfrentar dificuldades, Canindé se prepara para lançar vários projetos turísticos. Entre eles estão a Orla do Velho Chico, o Memorial do Cangaço, a reforma do aeroporto local. Mas há sempre uma preocupação paralela, explica Gomes: “Precisamos sensibilizar ainda mais a comunidade sobre a importância do desenvolvimento da atividade turística, bem como incentivar os empreendedores locais e promover o destino Canindé de São Francisco.” Pelo fascínio que o município pode exercer sobre o turista, essa talvez não seja uma tarefa tão difícil
SERVIÇO Quem leva: Xingotur Receptivo, fone (79) 9199- 0880, ou xingotur@yahoo.com.br.
Êxitos e desafios
Chamada pelo secretário José Pedro Gomes dos Santos para ocupar a Diretoria de Turismo de Canindé de São Francisco, Silvia de Oliveira logo percebeu que, antes de conhecer os atrativos da região, tinha de investir no canindeense para um trabalho integrado posterior ao turismo.
O prefeito Orlando de Oliveira deu carta branca à dupla, e os projetos sociais decolaram. O Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), com mais de 300 crianças, ministra cursos de dança, música, capoeira e artesanato. Além disso, foi inaugurada em 2005 a primeira Escola Pública de Sanfoneiros do Brasil, que conta hoje com mais de uma dezena de alunos, entre 8 e 14 anos. Silvia observa: “O investimento em qualificação profissional também passou a ser prioridade, bem como o incentivo aos empreendedores locais para melhorar seus estabelecimentos hoteleiros e gastronômicos. A formação de guias turísticos e os cursos de aventura abriram novos postos de trabalho.”
O sucesso do esforço de Silvia e Gomes é visível, mas nem tudo são flores. O desemprego, por exemplo, ainda é alto. Silvia também critica a falta de visão oficial. “Mesmo sendo um diferencial do turismo brasileiro, que agrega o bioma caatinga, único genuinamente brasileiro, a história do cangaço, o rio São Francisco, o cânion, os sítios arqueológicos, a hidrelétrica, complementados pela história e pela cultura do caboclo, Canindé foi preterida por outros 65 projetos selecionados pelo governo federal para investimento em infra-estrutura, no programa que vai até 2010”, lamenta. “Somos carentes de grandes empreendimentos, e bastaria um para nos posicionar como um dos principais destinos do Brasil; não entendo o porquê disso. O Nordeste não pode ser apenas sol e mar.”