Da janela do metrô que atravessa Viena de norte a sul, o bairro residencial localizado no nono distrito se transforma conforme os vagões se aproximam do que à primeira vista parece uma bizarra mesquita de um filme de Walt Disney. O grandioso edifício colorido com formas irregulares e esferas douradas é, na verdade, um incinerador que se tornou um dos dez pontos turísticos mais visitados da cidade cortada pelo Rio Danúbio, graças ao trabalho do excêntrico pintor e arquiteto Friedensreich Hundertwasser.

Em 1989, “Fried” recebeu uma proposta perturbadora. A prefeitura da capital austríaca convidou-o a redesenhar a fachada da usina de tratamento térmico de resíduos Spittelau, recém-devorada por um incêndio. Como se opunha à existência de incineradores poluidores, o ativista ambiental negou-se a participar do projeto. Mas a promessa de que a central poderia ser equipada com a mais moderna tecnologia de purificação de emissões e que 60 mil apartamentos seriam aquecidos a partir da incineração do lixo convenceu-o a aceitar o convite. “Spittelau é a prova de que em vez da arquitetura racional e impessoal sob a qual sofremos, podemos ser inspirados por um espírito criativo em harmonia com a natureza”, declarou Hundertwasser após a conclusão do trabalho. Autodefinindo-se como médico da arquitetura, por transformar prédios ordinários em obras de arte, o artista instalou um ninho para pássaros no topo da chaminé do incinerador – um toque capaz de materializar a ideia de que a simbiose entre tecnologia, arte e ecologia é possível. A maior contribuição de Fried, segundo Gerhard Hatz, professor de geografia e pesquisa regional da Universidade de Viena, foi despertar a consciência ecológica nos urbanistas e intelectuais da capital.

Vinte anos depois, não faltam iniciativas sustentáveis na cidade vanguardista. No tratamento do lixo e dos resíduos, por exemplo, Viena dá um banho. A prefeitura começou a desenvolver a coleta seletiva ainda nos anos 70 e hoje disponibiliza aos moradores sete tipos de latões para a separação de papel, metal, vidro transparente, vidro colorido, garrafas plásticas, material orgânico e um recipiente para resíduos em geral, que são enviados aos três incineradores da cidade, entre os quais o extravagante Spittelau de Hundertwasser. Esses resíduos são transformados em energia elétrica e vapor e usados para aquecer as residências nos arredores das usinas.

Viena também inova no tratamento de materiais orgânicos. Desde 1991, o que antes eram restos de frutas e legumes, borra de café e saches de chá, galhos e folhas secas é transformado em composto de alta qualidade, ou em energia. O material orgânico coletado nos latões com maior concentração de restos de plantas das áreas verdes da cidade vai diretamente para o centro de compostagem Lobau. Lá, o adubo composto obtido no fim do processo é vendido a agricultores e empresas privadas, aproveitado por outras agências da prefeitura e distribuído gratuitamente aos moradores. “É importante que a população tenha acesso ao resultado final, pois ela também participa do processo ao separar o lixo em casa”, explica Ulrike Volk, chefe de relações públicas do departamento de Gestão de Resíduos de Viena. Já o material orgânico coletado nos latões do centro da cidade, mais úmido e que apresenta maior quantidade de impurezas, é enviado à usina de biogás Simmering, onde é transformado em energia para aquecer mil residências.

Modelo urbano

 

Converter lixo em matéria-prima é apenas uma das iniciativas desenvolvidas na capital austríaca, que trabalha para consolidar uma gestão verde e tornar-se modelo de cidade sustentável. “Queremos ser líderes em proteção ambiental”, diz Eva Persy, coordenadora do departamento de Desenvolvimento Sustentável.

Um dos maiores projetos urbanísticos sustentáveis da Europa está sendo construído na cidade, o Aspern Urban Lakeside. Trata-se de um terreno de terra batida equivalente a 340 campos de futebol que deve se tornar, até 2028, o que os urbanistas chamam de “cidade do século21”, um lugar onde a vida em família estaria em harmonia com o trabalho e o meio ambiente. A ideia é criar uma zona mista com residências para 20 mil pessoas, comércios, áreas empresariais, escolas, centros de pesquisa e desenvolvimento e espaços verdes. A prioridade será dada ao deslocamento a pé e em bicicleta por trajetos curtos. No centro do bairro, um lago artificial e um parque serão construídos.

“Diversos projetos sobre a eficiência energética dos edifícios estão em curso”, afirmou Rainer Holzer, gerente da Wien 3420, empresa responsável pelo desenvolvimento de Aspern. De acordo com o projeto, uma usina geotérmica deve fornecer energia para o bairro a partir do aproveitamento do calor existente a cinco mil metros sob o solo.

Alguns intelectuais ligados ao planejamento urbano continuam céticos em relação ao caráter sustentável de Aspern. É o caso do professor Gerhard Hatz, que acredita ser ainda cedo para saber se o projeto responderá aos critérios de sustentabilidade. Segundo ele, as incertezas atuais do cenário econômico internacional poderiam comprometer o seu futuro. “A crise econômica impediu que a construção dos primeiros prédios residenciais fosse iniciada há dois anos, como o previsto no plano original”, afirma Hatz.

Aspern não é o único projeto urbanístico com características sustentáveis em Viena. Perto do centro, uma antiga estação ferroviária de onde prisioneiros judeus eram enviados aos campos de concentração na Segunda Guerra Mundial está sendo transformada no maior projeto de habitação da Europa, o Aspanggründe Eurogate. Além de os apartamentos consumirem pouca energia graças ao sistema de isolação e ventilação, o preço do aluguel é inferior ao de mercado. Isso é possível porque a prefeitura subsidia os aluguéis e parte da construção dos edifícios.

Diferentes classes sociais habitam os prédios já concluídos, mas a maioria dos apartamentos é reservada a pessoas de baixa renda. O projeto faz parte da política de moradia social da cidade, que tem origem no movimento conhecido como Red Vienna. Nos anos 20, a capital austríaca era governada pelo Partido Socialista, que mandou construir dezenas de milhares de residências de qualidade para os mais pobres. Um resultado dessa tradição é o fato de a prefeitura ser hoje proprietária de 30% dos apartamentos de Viena, cidade de 1,7 milhão de habitantes.

Atualmente, a prefeitura entrega os projetos de moradia social a associações de habitação sem fins lucrativos, que constroem e mantêm os edifícios. “Desde 2010 todos os projetos de moradia subsidiados devem apresentar consumo de energia baixo ou zero”, nota Wolfgang Dvorak, chefe do setor de relações públicas do departamento de Desenvolvimento Urbano.

No caso de Aspanggründe, quem já mora nos apartamentos concluídos parece satisfeito com o custo reduzido do aluguel em área próxima do centro com fácil acesso ao transporte público. Deslocar-se sem depender de automóvel é um critério importante na vida de um vienense.

Vilão automóvel

Diferentemente da época em que era símbolo de liberdade e status, hoje o carro é visto como vilão em grandes cidades europeias, onde para muitos se tornou sinônimo de poluição, gastos desnecessários e lentidão. Como os automóveis não combinam com as cidades sustentáveis, a administração de Viena tem feito esforços para incentivar o uso do transporte público e de bicicletas.

Enquanto medidas de austeridade são aplicadas em vários países da Europa, a capital austríaca se dá ao luxo de baratear o preço anual do bilhete do transporte público de 449 para 365 euros, o que equivale a 1 euro para cada dia do ano. Desde que a iniciativa foi implementada, em maio do ano passado, 70 mil bilhetes adicionais já foram vendidos. “No momento, perdemos dinheiro com a medida, mas se considerarmos o longo prazo, Viena só tem a ganhar com a redução dos carros nas ruas e da poluição”, afirma Dvorak.

Os deslocamentos feitos em transporte público (37%) já ultrapassam os realizados em veículos privados (29%), mas as autoridades querem diminuir ainda mais a circulação de automóveis. Para isso, a prefeitura criou uma zona pedagiada que cobre 30% da cidade onde estacionar custa caro. O preço diário para deixar um automóvel na rua das 9h às 22h é de 20 euros (R$ 50) nessas áreas, que deverão cobrir 60% da cidade nos próximos anos.

Contra o vilão do transporte, a mocinha é a bicicleta. Desde que a prefeitura iniciou a expansão da rede de ciclovias, seu uso subiu 32% durante a semana e 42% nos domingos e feriados. Até 2015, a administração pretende aumentar de 6% para 10% os deslocamentos diários em bicicleta. Para atingir a meta, investe na expansão das ciclovias e na criação de vagas para bicicletas. Os investimentos se intensificaram nos últimos tempos, pois a cidade deseja estar à altura da Velo-City 2013, a maior conferência mundial em planejamento e promoção do uso da bicicleta, que ocorrerá ali em junho de 2013.

Priorizar o uso de um meio de transporte com emissão zero de carbono é positivo, mas o professor Hatz lembra que o fenômeno da bicicleta em Viena ainda é restrito à elite que partilha um estilo de vida “verde”. “Pedalar no centro, onde moram as pessoas que podem pagar por apartamentos mais caros, é possível, pois os trajetos são curtos e há muitas ciclovias. Mas quem mora na periferia e trabalha no centro não pode se deslocar em bicicleta”, explica o professor.

Aqueles que não têm bicicleta podem usar o sistema público de locação automatizado, já existente em bairros de São Paulo e do Rio de Janeiro. A diferença é que se a bicicleta for devolvida em qualquer uma das estações da cidade em até uma hora, o uso é gratuito; paga-se apenas o valor da inscrição anual, equivalente a 1 euro. O sistema é interessante, mas exige o uso de cartão de crédito e um mínimo de conhecimento prévio sobre a localização das estações, que podem ser difíceis de encontrar em alguns bairros da cidade.

Andar de bicicleta em Viena é agradável e seguro, se comparado a outras capitais europeias. Sem contar a paisagem da cidade, onde imponentes prédios históricos e palácios da época da dinastia Habsburgo se misturam a grandes jardins e parques variados. Os espaços verdes correspondem a pouco mais de 50% da área da capital, o que equivale a 120 metros quadrados para cada habitante, dez vezes mais do que o recomendado pela Organização Mundial da Saúde.

Banho de rio

A Ilha do Danúbio é uma das áreas de lazer mais frequentadas pelos vienenses. O parque que atualmente abriga um dos maiores festivais de música da Europa, o Danube Island Festival, foi construído para resolver o problema das enchentes do rio. Até a década de 70, quando o projeto foi iniciado, chuvas fortes causavam o transbordamento das águas, inundando bairros da capital. Um canal, hoje chamado de “Novo Danúbio”, foi escavado ao lado do rio e a terra retirada dessa área foi utilizada para construir a longa ilha que separa as duas extensões de água. Em épocas de cheia, três portões são abertos a fi m de que o excesso de água escoe para o novo canal, de modo a evitar enchentes.

Nos fins de semana quentes do verão, a ilha de 21 quilômetros de comprimento chega a acolher até 500 mil pessoas, segundo Dvorak. Várias praias do Novo e do Velho Danúbio são próprias para o banho – com água natural limpa. O acesso é gratuito e algumas delas enchem-se de nudistas. Embora a ilha artificial esteja próxima ao centro da cidade via metrô, a paisagem bucólica em alguns cantos do parque é tão natural que quase se esquece de que estamos em uma grande capital. A mais famosa praia da ilha ganhou um nome evocativo: Copa Cagrana, mistura de Copacabana com Kagran, o bairro próximo da ilha.

Transformando problemas em soluções, Viena busca uma gestão verde com resultados. Entre os seus instrumentos estão 5 milhões de euros gastos com compras públicas pela prefeitura. Em 1998, surgiu o projeto EcoCompra, definindo critérios ambientais para a compra de produtos e serviços públicos, como materiais de construção, alimentos, artigos de limpeza e de escritório, eventos e eletrodomésticos. No caso dos alimentos, a regra estipula que 51% dos produtos comprados sejam orgânicos.

A capital coleciona os prêmios de “Melhor Prática” da ONU e já foi considerada três vezes a cidade com a melhor qualidade de vida do mundo, segundo a consultora Mercer. Nada menos do que 221 cidades participaram da pesquisa, muito citada pela imprensa internacional, mas criticada por urbanistas por basear-se na opinião de expatriados que trabalham para grandes empresas internacionais. “Muitas das questões colocadas não estão ligadas diretamente à performance da cidade, tais como liberdade de imprensa, perigo de riscos naturais e estabilidade da moeda”, afirma o professor Hatz. Os vienenses, como se vê, não se contentam com pouco. Com ou sem títulos, querem viver melhor.