Damião Alves entra uniformizado nas galerias ensombrecidas da floresta da Cikel Brasil Verde Madeiras, a 300 quilômetros de Paragominas, no Pará, empunhando um GPS. Com ele avançam três auxiliares e um técnico florestal encarregados de marcar as coordenadas de cada árvore exuberante. A seleção é rigorosa: primeiro, a equipe identifica se há mercado para aquele tipo de madeira, que pode ser ipê, angelim, cedro, cumaru, curupixá, freijó, louro, maçaranduba, roxinho, sapucaia ou outra das 59 espécies presentes na região. Depois, verifica se o diâmetro do tronco é superior a 50 centímetros, se ele é reto e se apresenta conicidade perfeita. Exemplares excepcionais, como um ipê de 2,5 metros de diâmetro, são poupados para a conservação. A seguir, os técnicos examinam se a árvore não é o habitat de uma ave importante, como o gavião-real, que constrói o ninho sempre na mesma espécie. Se for, ela é excluída. Por último, confirmam se há pelo menos três árvores intactas da mesma espécie em cada módulo de 100 hectares de floresta, salvaguarda destinada a permitir que, após o corte, o ciclo natural de regeneração produza um novo exemplar na área que deverá ser mantida intocada por um período de 23 a 35 anos.

“O manejo sustentável é muito diferente da exploração tradicional, em que você não tem futuro. Vale até para mim. Antes eu era mateiro, agora sou um parataxonomista, tenho profissão e salário”, explica Alves. O técnico florestal Iran Pires, gerente do Instituto Floresta Tropical, ONG de Belém dedicada às boas práticas florestais, oferece uma definição detalhada: “Manejo sustentável significa reduzir impactos da exploração florestal assegurando a sustentabilidade da produção no futuro por meio de planejamento e de monitoramento da colheita, respeitando-se os limites do ecossistema, com danos mínimos à floresta. Serve para produtos madeireiros e não madeireiros, como cascas, resinas, óleos e frutos.”

Sustentável ou não, a economia da madeira tropical abarca 60% do território brasileiro, cerca de 4,2 milhões de quilômetros quadrados, área equivalente à da Europa Ocidental. Sustenta 200 mil empregos e 2.226 empresas na Região Norte e consome 14 milhões de metros cúbicos (m3) de madeira em tora, ou seja, 3,5 milhões de árvores por ano. Se fosse manejada racionalmente, a atividade madeireira poderia ser um recurso renovável capaz de contribuir para a manutenção da floresta em pé, garantindo renda e conservação, afirmam os defensores do manejo. Mas para os críticos a técnica não é viável e danifica a floresta.

Enquanto a controvérsia perdura, a ilegalidade na extração de madeira, associada a décadas de desmatamento que já destruiu 18% da Floresta Amazônica, induz o Brasil a consumir quase duas vezes mais madeira de matas nativas do que madeira plantada. Segundo dados da Sociedade Brasileira de Silvicultura, em 2005 o país consumiu 300 milhões de m3 de madeira, dos quais 110 milhões provenientes de florestas plantadas e 190 milhões de florestas nativas.

O triunfo da ilegalidade tem só uma razão: baixo custo. Segundo o Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), de Belém, apenas 14% das madeireiras da Amazônia trabalham com planos de manejo legais. Dois terços das 86% restantes extraem madeira de forma predatória em áreas ilegais. “A madeira produzida ilegalmente tem custo operacional 60% menor”, afirma Roberto Waack, presidente da empresa florestal certificada Amata, que rema contra a corrente, a favor do manejo. “A economia da floresta nativa brasileira se assenta em dois pilares: madeira ilegal e comercialização de documentos para ‘esquentá-la’. Infelizmente, os produtos sustentáveis não dispõem de escala transformadora para vingar. No setor, imperam três ‘is’: informalidade, ilegalidade e impunidade.”

Para a Amazônia há poucas controvérsias tão importantes. Embora a Malásia e a Indonésia produzam mais madeira tropical do que o Brasil, as reservas amazônicas são muito maiores. Além disso, aqui há massa cinzenta, tecnologia e empreendedorismo suficientes para encarar o desafio e virar o jogo. No polo de desmatamento de Paragominas, uma aliança entre empresas, cientistas, governo federal e a prefeitura já permitiu à cidade conquistar o título de Município Verde e se tornar o maior laboratório de manejo sustentável de floresta tropical úmida do mundo.

Atraso tropical

 

Só em 1993 foi detalhada uma metodologia de manejo sustentável dentro da floresta tropical. Antes disso, nenhum dos métodos praticados possuía respaldo ecológico, embora o Brasil domine há décadas a silvicultura das florestas plantadas no Sudeste, com indústrias modernas de papel, celulose e móveis. Na Amazônia, o excesso de oferta gerou uma exploração sem limites. O geógrafo Aziz Ab’Saber, da USP, falecido em 2012, um dos maiores críticos dos fazendeiros que recorriam às queimadas para abrir pastos, sempre condenou o modelo de expansão econômica da região. “Eles dizem ‘a propriedade é minha; faço com ela o que eu quiser, como quiser e quando quiser’; mas nenhum conta como conquistou imensos espaços inicialmente florestados”, escreveu. Ab’Saber mostrou que a extração descontrolada de madeira destrói o habitat de animais, extingue espécies, causa erosão e contribui para a mudança climática, além de privar as futuras gerações da riqueza dos bens e serviços que a floresta tem a oferecer.

“É possível explorar a floresta economicamente e, ao mesmo tempo, contribuir para seu desenvolvimento sustentável”, afirma categoricamente Iran Pires, aludindo aos 17 anos de experiência do Instituto Floresta Tropical (IFT) em extensão florestal, pesquisa, manejo e capacitação de profissionais. Na década de 1980, ecólogos e biólogos de instituições como IFT, Imazon e   e Nature Conservancy implantaram os primeiros projetos de preservação da biodiversidade em Paragominas. Nos anos 1990, surgiram madeireiras dispostas a mudar a cultura hostil ao ambiente, como a Cikel, certificada pelo Conselho de Manejo Florestal (FSC), a Florapac, primeira fábrica de aglomerados de MDF (painel e fibras de madeira) da região, e a Damaso, produtora de casas e móveis com madeira descartada.

Nada, entretanto, deteve o frenesi de queimadas que levou a cidade, em 2007, a ser enquadrada na lista negra do Ministério do Meio Ambiente como um dos 36 municípios com maior índice de desmatamento do país. Em consequência, o Ministério Público Federal apertou o torniquete e o crédito e a comercialização dos produtos gerados na cidade foram travados. Em 23 de Fevereiro de 2008 uma multidão de desempregados tentou atear fogo no hotel que hospedava os técnicos do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama). Dian te da crise, 51 associações de classe se aliaram e firmaram um pacto por desmatamento zero e a favor de produtos sustentáveis. A virada consolidou-se em 2010, quando o município atingiu indicadores superiores aos padrões do Código Rural Ambiental, criado em 2009. “A cidade criou uma onda exitosa e deu a volta por cima”, disse o prefeito Adnan Demarchi à PLANETA.

De fato, a evolução foi marcante, lembra Pires: “Nos primeiros projetos de manejo, nos anos 1980, o plano se resumia a uma carta de intenção. Quem decidia que toras iam para a serraria era o motorista do caminhão. Mas, quando demonstramos que um bom plano gerava lucro, as coisas mudaram. Provamos que os danos à madeira caem, que os desperdícios são reduzidos em dois terços e que os impactos na floresta diminuem. Os madeireiros despertaram para o fato de que o impacto reduzido gera lucro. Hoje, muitas madeireiras contribuem para a manutenção da floresta.”

Atualmente, o Pará responde por 47% da extração da madeira na Amazônia Legal, enquanto Mato Grosso produz 28% e Rondônia vem em terceiro, com 16%.

Operação cuidadosa

 

O planejamento do baixo impacto começa no escritório. Pires coordena o levantamento da área a ser manejada, definindo mapas de exploração em faixas de 50 metros de largura, com bússola e balizamento. A partir desse plano os parataxonomistas entram na floresta para selecionar as árvores a serem abatidas. O inventário que realizam é enviado para o órgão ambiental, que analisa e autoriza o corte. A seguir, elabora-se o mapa final dos exemplares que serão cortados.

A equipe de “derruba” trabalha com técnicas de corte direcional, planejamento de arraste, transporte, armazenamento e tratamento silvicultural pós-colheita, para evitar agressões e possibilitar novos ciclos a longo prazo. Cada árvore comercial é classificada segundo a espécie, a altura, o diâmetro e a qualidade de fuste (a porção do tronco entre o solo e as primeiras ramificações). Todas recebem uma etiqueta que permite a localização por georreferenciamento, capaz de identificar qualquer produto originado daquela madeira. Qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo, que adquirir uma peça de madeira oriunda de uma cadeia de custódia certificada pode localizar o ponto exato onde a árvore foi cortada.

Após semanas de corte e derrubada, outra equipe planeja o arraste das árvores abatidas, procurando as trilhas de menor resistência na floresta, por onde as toras são levadas até o pátio de estocagem.

Diante da ação dos tratores de esteira, com lâminas levantadas, rebocando toras por caminhos sinalizados por fitas, é impossível não sentir que, mesmo com todos os cuidados, a floresta está sendo agredida. O cheiro do óleo combustível, a fumaça e o barulho incomodam. Mas basta atentar para o trabalho das equipes para ter certeza de que os danos são controlados, muito menores do que na extração tradicional. Na Cikel, o engenheiro florestal Josué Evandro Ferreira calcula que o manejo sustentável implica impacto em 6% da área florestal.

Concluído o envio das toras para as serrarias de Paragominas, inicia-se o trabalho de manutenção da infraestrutura, com beneficiamento das clareiras, garantia de insolação e melhorias silviculturais para potencializar um novo ciclo.

Evolução às avessas

 

“Derrubam árvores de 600 anos e, em troca, beneficiam mudinhas”, ironizava Aziz Ab’Saber. O geógrafo da USP também foi um dos maiores críticos da Lei de Gestão de Florestas Públicas, aprovada pelo Congresso em 2006, que abriu as Florestas Nacionais à exploração de planos de manejo sustentável privados, aprovados pelo Serviço Florestal Brasileiro, em regime de concessão por 40 anos.

Ambientalistas como o professor Rogério Griebel, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, e o almirante Ibsen Gusmão Câmara, ex-presidente da Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza, também criticaram a lei, argumentando que o corte seletivo gera uma “evolução às avessas”, sacrificando as árvores mais fortes e deixando a regeneração da floresta aos exemplares mais fracos.

Em 2011, o professor Edson Vidal, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da USP, divulgou uma pesquisa realizada em Paragominas que indica que o manejo sustentável não é viável economicamente. Segundo o estudo, o intervalo de 30 anos para a regeneração não permite a recuperação das espécies com maior interesse comercial e o processo tende à perda da rentabilidade após o primeiro corte. Em Brasília, o diretorgeral do Serviço Florestal Brasileiro, Antonio Hummel, discorda. Na sua visão, o manejo é crucial para a Amazônia e as demais florestas equatoriais do mundo, situadas em países com pouco desenvolvimento tecnológico. Para ele, a controvérsia é salutar e a afirmação de que algumas espécies de árvores não se recomporão pode até ser certeira. “Mas isso não deve ser motivo de alarme. O importante é que o manejo é um bom negócio e que a reserva de biodiversidade seja mantida. O importante é dar valor à floresta em pé. Ninguém passa o trator em cima da soja porque ela tem valor”, afirma Hummel. Iran Pires afirma que a tecnologia ainda está sendo aperfeiçoada e desenvolvida. “O IFT trabalha para validar o manejo”, reitera.

Manter a floresta em pé é uma tarefa árdua, sobretudo onde ela é vista como excessiva. Apesar do aumento da fiscalização e da queda no desmatamento, de 20 mil km2 por ano em 1998 para sete mil km2 em 2012, nada mudará se a política de fiscalização não for mais efetiva, com monitoramento de desmatamento, multas e punição aos compradores de produtos e serviços ilegais, associada a incentivos económicos aos produtores sustentáveis. Em 2006, por exemplo, o governo substituiu a Autorização de Transporte de Produtos Florestais (ATPF) pelo Documento de Origem Florestal (DOF), eletrônico, mais difícil de falsificar. Mas a contravenção já “capturou” o novo mecanismo, criando, segundo Roberto Waack, um regime de falsa legalidade.  “Entre as inúmeras fragilidades atuais encontram-se planos de manejo falsos ou fantasmas, créditos fictícios, inserções ilícitas de créditos madeireiros no sistema, transferências fraudulentas de créditos e superexploração de planos já aprovados.” Há planos de manejo sustentável que são pura fachada.

Não é possível proteger a Floresta Amazônica numa redoma. O manejo de baixo impacto busca preservá-la mudando a atividade econômica. Para tanto, deve deve ser aprimorado e ganhar escala. “A mudança de paradigma florestal requer altos investimentos e perspectivas de retorno de prazos longos, bem diferentes do sistema vigente de hiperexploração, exaustão florestal e migração contínua para novas áreas a serem degradadas”, diz Waack. Marco Lenti, também do IFT, cobra incentivo econômico não apenas às grandes fazendas, “mas ao fomento do manejo florestal dos produtores de pequeno e médio porte, que representam 90% das propriedades da Amazônia”.

A aliança entre o poder público e o privado, governo federal, prefeituras e sindicatos faz a diferença, afirma Bruno Valente, procurador da República no Pará. “Quando conseguimos coordenar ações obtivemos redução de até 80% no desmatamento, como em Paragominas e outras cidades”, afirma. Na sua opinião, o governo deveria fiscalizar o crédito rural dado a empresas “fantasmas” que repassam o dinheiro para serrarias clandestinas e alimentam o desmatamento. E criar mecanismos para cobrar rapidamente as multas aplicadas, que mal chegam a 1% do total. “Na Amazônia, só política forte funciona”, conclui Valente.