15/03/2013 - 15:24
Novas estimativas da ONU apontam para um futuro árido: até 2025, dois terços da população mundial poderá sofrer com a falta de água doce. Com 9 bilhões de pessoas no planeta, 2 bilhões a mais do que os 7 bilhões atuais, o consumo do recurso subirá 30%. Preocupada com a crise iminente, a ONU definiu 2013 como o Ano Internacional da Cooperação pela Água. Dia 22 de março é o Dia Mundial da Água.
Os novos alertas são endossados enfaticamente pelo presidente do Conselho Mundial da Água (World Water Council), Benedito Braga, uma das maiores autoridades em recursos hídricos. Preocupado com a situação dos rios urbanos brasileiros, Braga desconfia das promessas demagógicas de salvação dos políticos e adverte: “É praticamente impossível limpar o Tietê.”
Benedito Braga foi um dos principais defensores da criação da Lei das Águas (1997), que consagrou o líquido como um bem de domínio público e um recurso de valor econômico, abrindo o caminho, entre outras coisas, para a cobrança pelo seu uso. Engenheiro civil, integrou a Diretoria da Agência Nacional de Águas (ANA) desde a sua criação até 2009. Em 2012, foi eleito presidente do Conselho Mundial da Água, organização que representa governos de 60 países, a ONU, o Banco Mundial e entidades ambientais globais. Seu objetivo é desenvolver políticas para os recursos hídricos e conscientizar os políticos e o público da importância da conservação das águas para o futuro da sociedade. Braga está bem no centro da crise.
Qual é o maior problema que enfrentamos nos recursos hídricos?
Temos uma situação no Nordeste muito preocupante. Um estudo da ANA mostra que em dez anos, se não forem tomadas ações efetivas, 50% dos municípios da região sofrerão crise no suprimento de água. Nosso primeiro problema é que os açudes estão sofrendo um sério desafio de eutrofização (proliferação de algas que consomem o oxigênio da água). Sem oxigênio, a água fica imprópria para o consumo e também falta peixe. Com o desenvolvimento econômico, aumenta o uso da água para a irrigação de culturas, que consomem fertilizantes, os quais contêm nitrogênio, fósforo e potássio. O escoamento superficial leva esses produtos para os lagos e eutrofiza a água. Podemos acabar sem fontes de água para as cidades.
Esse é um problema global?
Sem dúvida. No sudeste da Ásia e na África Equatorial é igualzinho. O segundo maior problema é a escassez. Com o aumento da população e a mudança nos padrões de vida, o consumo aumenta. Em áreas de grande escassez, como o Oriente Médio, o norte da África, regiões do Brasil e da América do Sul, a falta de providências nos encaminha para uma situação insustentável. Na Grande São Paulo, se não começar a fazer obra “ontem”, vai ter rodízio no abastecimento, de novo. A situação é realmente crítica e muitos alertas já foram dados.
Além de faltar água, a que existe está contaminada?
É paradoxal, mas é verdade. O maior problema de Manaus é a poluição dos igarapés, que força a cidade a procurar água subterrânea. Imagine: Manaus, na margem do Rio Negro! Ela tem os mesmos problemas de São Paulo: poluição dos riachos, dificuldade de suprimento de água, inundação…
O que poderia ser feito para lidar com a poluição e a escassez?
Investir em saneamento. À medida que isso estiver sob controle, a probabilidade de contaminar a água cai. O grande problema da poluição nos nossos riachos urbanos não é a indústria, que já reutiliza água; são os municípios, que não tratam dela. A solução é forçar os prefeitos a providenciar tratamento de esgoto. Custa caro, mas também custa caro não ter água para beber. Para lidar com a escassez é preciso “reservar” água a fim de fazê-la chegar às pessoas. Há trinta anos, o Nordeste tinha açudes que enchiam quando chovia. A água ficava parada, evaporando e salinizando, a ponto de ficar imprópria para o gado. Felizmente, foram feitas adutoras que ligam um açude ao outro e chegam às cidades e aos povoados. A situação melhorou muito, a região tem água armazenada e pode-se fazer com que ela circule até onde precisa chegar.
O Brasil é um país muito rico em recursos hídricos, com 12% da água doce de superfície no mundo. Como o sr. avalia as políticas públicas no setor?
O Brasil tem 12% da água doce, mas 70% dela está na Amazônia, onde há 7% da população. E cerca de 30% da população está no Nordeste, que tem 3% dessa água. O Brasil tem água onde não tem gente, e onde tem gente não tem água. Em lugares com chuvas razoáveis, a água está contaminada, como no Sudeste. Em 1997 aprovaram-se a Lei das Águas e a criação da ANA, para implementar um sistema participativo e descentralizado de gestão do recurso, por meio dos Comitês de Bacia. O país evoluiu do ponto de vista legal e institucional, mas os problemas de falta de saneamento e poluição crescente são sérios.Também poderíamos utilizar melhor os rios para a navegação. O custo é mais baixo e aumenta a segurança nas estradas, com menos caminhões.
Dá para despoluir os rios metropolitanos de São Paulo?
A chance de termos rios urbanos limpos de novo, mesmo usando a tecnologia mais sofisticada do mundo, é quase zero. São Paulo começou a crescer em meados dos anos 1920 e virou uma potência. Em virtude dos processos industriais, os rios foram poluídos. A cidade se expandiu na cabeceira de uma bacia hidrográfica, nas nascentes, onde há pouca água. Nos anos 1970, criou-se um sistema que trazia água da Serra da Cantareira para a cidade. Metade da água servida à população de São Paulo vem de lá. Essa água depois vira esgoto e é jogada no Tietê, no Tamanduateí e no Pinheiros. Joga-se nesses rios uma quantidade de poluentes 50% maior do que a vazão média dos rios. Portanto, é quase impossível limpar o Tietê. Não se consegue tratar 100% do esgoto. Trata-se 98%, mas os 2% restantes, em termos absolutos, significam uma demanda bioquímica e de oxigênio da água enormes. Os modelos de análise mostram que, mesmo com todos os esgotos tratados, em algumas partes do rio ainda continuará faltando oxigênio. É um problema sem solução? Talvez não. Talvez a tecnologia evolua e o empreendimento se justifique financeiramente.
Por que a Inglaterra, a França e a Coreia do Sul conseguiram despoluir os rios urbanos e nós não podemos?
Podemos, mas Paris está quase na foz do Sena e Londres, na foz do Tâmisa. A questão determinante é a quantidade de água disponível, o fluxo, a vazão do rio. Em São Paulo, ao contrário, estamos na cabeceira do Tietê, que tem muito menos água.
Quais são os prejuízos da poluição dos rios urbanos?
A cidade mal planejada vive com problemas que afetam seu crescimento. Do ponto de vista estético é ruim. Quando chove, baixa a pressão atmosférica, o gás sulfídrico retido no rio é liberado e sente-se fedor. Também há os vetores de doenças, como pernilongos, conhecidos de quem mora na beira do Rio Pinheiros, em São Paulo, e precisa ter telas na casa. Além disso, há inundações e a questão do abastecimento. São Paulo, tal como Los Angeles, é uma cidade enorme desprovida de água para oferecer à população. Por isso vamos buscar água na Serra da Cantareira, no Rio São Lourenço, no Juquiá e, no futuro, no Rio Ribeira de Iguape. Cada vez vai ficando mais complicado.
Por que há tantas inundações em cidades mal planejadas?
O principal problema é ocupar o espaço que é do rio e não deixar espaço para a água se infiltrar na terra. Em São Paulo, ao redor do Tietê, havia várzea, onde acontecia o “futebol de várzea”. Vinha a enchente e inundava o campo e não havia problema: a água era absorvida. Hoje, a Avenida Marginal está dentro do rio! O fundo do vale deveria ter sido deixado para o rio. A velocidade com que a água chega da sarjeta ao rio, que está canalizado, e de lá para outro rio, é alta e muito superior à capacidade de vazão do rio. Em São Paulo, a água que escorre para o rio não tem mais para onde escoar e não é absorvida.
No livro Nordeste, escrito em 1936, Gilberto Freyre já dizia que os brasileiros não respeitam os rios.
Construímos nossas casas de costas para os rios, ao contrário dos europeus. Isso quer dizer que vemos os rios como um meio de transporte de lixo. Criou-se uma cultura de uso do rio como receptáculo de lixo, e depois de esgotos.
A má gestão de recursos hídricos gera prejuízos econômicos?
Em alguns países da África existe uma correlação entre o aumento de chuva e o crescimento da economia. Se não chove, o Produto Interno Bruto (PIB) cai, pois os países não têm capacidade de “reservar” água. Os EUA e a Austrália armazenam o equivalente a cinco mil metros cúbicos por habitante por ano. Eles têm água até se não chover durante um ano. Enquanto isso, a Etiópia tem 45 m3 por habitante por ano. Ou seja, não armazena nada. Do ponto de vista dos prejuízos com as enchentes, 14% do PIB é perdido nas inundações. A infraestrutura é fundamental, tanto para segurar a enchente quanto para armazenar água para o futuro. Quando olhamos o cenário para os próximos anos, com as mudanças climáticas e previsões de impactos sensíveis, percebe-se o imperativo de desenvolver a infraestrutura para enfrentar o desafio. Mas só infraestrutura não basta. Precisamos de gerenciamento e de boa governança: temos de conservar e usar a água com eficiência.