01/03/2008 - 0:00
Chegar a Lhasa não é fácil. Uma permissão do Escritório de Turismo Tibetano é vital para qualquer estrangeiro alcançar a capital da Região Autônoma do Tibete, hoje parte da China. Mas sair de lá é ainda mais difícil. Para visitar o interior do Tibete, preciso de duas outras autorizações e, como viajo sozinho, arrumar essa papelada é complicado. As autoridades chinesas facilitam apenas para os que viajam em grupo, sobre os quais o governo tem mais controle.
Meu desejo de conhecer alguns dos monastérios no altiplano tibetano é tão grande que encontro um anjo da guarda budista. Tashi, um comerciante tibetano que trabalhou em turismo, simpatiza comigo. Almoçamos no jardim de um dos hotéis de Lhasa e explico minha aspiração. No dia seguinte, ele me informa ter conseguido o meio de transporte – seu próprio carro –, um excelente guia (a preço de custo) e a autorização gratuita. Bastava apenas desenhar o itinerário. Tashi recomenda que eu visite Shigatse e Gyantse, duas jóias da província Tsang.
A estrada que sai de Lhasa é excelente. Mingma, meu guia, confirma que o asfalto é novo, tem apenas dois anos. “O problema é que carros e ônibus trafegam em alta velocidade. Há alguns meses, uma van com 20 passageiros caiu na ribanceira do rio Brahmaputra”, diz. Depois disso, a polícia chinesa criou um sistema rígido de controle para obrigar os motoristas a não ultrapassar a velocidade de 40 km/h.
A estrada segue o grandioso rio Brahmaputra até perto de Shigatse, 270 quilômetros a oeste de Lhasa. Nesse trecho, o vale fica mais amplo e as plantações de trigo e cevada ganham mais espaço. “A cevada dessa região é a melhor do país”, conta Mingma. “A tsampa, a farinha de cevada tostada utilizada nos rituais budistas, é essencial também na nossa alimentação.”
CHEGO A GYANTSE, 90 quilômetros após Shigatse, para ver a estupa Gyantse Kumbum. “No budismo, a estupa representa a organização do universo e a mente iluminada de Buda. No seu interior, são guardadas relíquias de grandes mestres”, diz Mingma. Todas possuem uma base quadrada que se eleva em forma cônica. Gyantse Kumbum foi construída em 1427 por um príncipe da região e é a mais importante estupa do Tibete. Entro no monastério Pelkor Chöden e tomo um susto com a estrutura de 35 metros de altura. Seu topo é enfeitado com um cone dourado e quatro pares de olhos inquisidores de Buda.
Subo os primeiros degraus e penetro no templo. O movimento de fiéis é intenso, um constante entra-e-sai de famílias. As mulheres trazem uma garrafa térmica ou uma vasilha com manteiga de iaque. Uma colherada é oferecida ao templo e colocada numa pira onde as velas estão acesas. É a contribuição de cada devoto para que o fogo, usando a gordura como combustível, continue a arder.
Em sentido horário, a partir de cima: a estupa Gyantse Kumbum, a mais importante do Tibete, construída por um príncipe da região em 1427; duas fiéis fazem suas orações diante das divindades iradas, protetoras do templo; e a estátua de Buda em um dos andares mais elevados da estupa Gyantse Kumbum.
Gyantse Kumbum contém um precioso tesouro artístico no seu interior – a palavra kumbum significa “cem mil imagens”. Saio do templo e, seguindo o sentido horário tradicional – o centro da estupa sempre do meu lado direito –, entro na primeira capela. Meus olhos tardam três segundos para se adaptar à total escuridão.
Paulatinamente, descubro onde estou: uma estreita alcova com cerca de dois metros de largura e três de comprimento. Todas as paredes ao meu redor estão pintadas com figuras religiosas. Meus olhos avistam uma pintura de Buda com quatro pares de braços dourados e um rosto que transmite serenidade e paz. No fundo do cubículo, uma estátua de Tara está envolvida por uma redoma colorida.
Quando entro na segunda capela, sou envolvido por novas surpresas. A formosa deusa Tara é substituída por uma divindade irada, protetora do templo e dos devotos. Na parede, descubro mais um espírito furioso, de coloração azul-escura, ornado de caveiras e com oito pares de braços ameaçadores. Mas a delicadeza das obras é a mesma existente na primeira capela.
Impressiona-me o fato de que as pinturas sejam todas originais – datam de várias décadas antes que os portugueses chegassem ao Brasil! Algumas das esculturas foram golpeadas pela Revolução Cultural chinesa nos anos 50, mas hoje foram restauradas. Levo mais de uma hora para concluir a visita às capelas do primeiro andar. Subo ao segundo e decido, como se fosse um fiel budista, que devo entrar em cada uma das capelas. Encontro um monge e ele confirma que existem 77 capelas!
Um par de horas mais tarde, minha peregrinação me leva até a plataforma mais elevada, no sexto andar. Saio por uma das portas, dominada pelos olhos de Buda, que representam a sua onisciência e sabedoria. Lembram os devotos que eles devem ser vigilantes no caminho espiritual e ter compaixão com todos os seres vivos.
LÁ DE CIMA, a vista é magnífica. O tesouro natural do vale do rio Nyang Chu, com suas plantações de cevada e trigo, combina com a riqueza da estupa. O céu está nublado, mas um facho de luz ilumina a gigantesca estupa. Encontro meu celular e ligo para Tashi em Lhasa. Com um entusiasmo transbordante, conto que estou no topo de Gyantse Kumbum, fascinado pelo lugar. Agradeço efusivamente.
Shigatse é a segunda cidade do país. Como em Lhasa, os bairros construídos depois da década de 60 (após a invasão de Pequim) mostram uma influência chinesa bem marcante. Prédios, avenidas e lojas foram desenhados pelos novos colonialistas e faltalhes caráter. A arquitetura é quadrada e sem graça.
Já os bairros tibetanos são como anciões sábios e possuem alma. As linhas não são óbvias: os prédios têm uma ligeira forma trapezoidal – assim como as janelas, emolduradas de negro. Até os cheiros agregam mais personalidade, com a constante presença da manteiga de iaque.
Mingma me deixa na entrada do bairro tradicional de Shigatse, aos pés do dzong, pois ele pretende rever amigos. Minha intuição passa a ser agora meu guia. O dzong é uma fortaleza no topo de uma das colinas que dominam a cidade. Foi a residência dos reis da província de Tsang. Mas em 1959, quando os tibetanos se rebelaram contra os chineses, o palácio foi destruído.
O dzong de Shigatse está em processo de reconstrução e abrirá suas portas ao público em meados de 2008. Resolvo caminhar em direção à imensa edificação. Encontro uma casa com a porta aberta e uma menina sorridente na soleira. Explico, com mímica, que gostaria de subir no alto da casa dela para ver melhor o dzong. Ela ri, mostra a escada e subimos os dois.
Bem mais interessante do que a vista é encontrar uma chaleira solar. Os tibetanos montam dois painéis de alumínio côncavos, lado a lado, como se fossem uma antena parabólica. Colocam o grande espelho na direção do sol. O forte reflexo, em um ângulo certeiro, bate de volta na base da chaleira, estrategicamente colocada. O resultado é água quente para o chá a qualquer hora do dia, sem utilizar nenhum combustível.
Chego até o topo do morro ao lado do dzong e acompanho o ritual de um jovem casal: queimam incenso, oferecem tsampa e rezam. Estão rodeados por bandeiras de preces. “Acreditamos que nossas rezas são cumpridas cada vez que o vento bate nas bandeiras coloridas. Elas trazem felicidade, prosperidade e saúde àquele que as colocou”, explica o casal.
Um monge passa pelo saguão de um dos templos de Tashilhunpo, repleto de botas vermelhas deixadas pelos monges ao entrar para a sessão de cânticos. Na página oposta, o monastério Tashilhunpo é um vilarejo fortificado, antiga morada do Panchen Lama, a segunda autoridade espiritual do Tibete; e uma fiel budista gira sua roda de preces, à sombra de um dos templos de Tashilhunpo.
Lá de cima, avisto o monastério Tashilhunpo. No dia seguinte, visito o seu interior. Por ser um dos mais importantes do Tibete, o movimento é intenso. Mais do que um simples mosteiro, Tashilhunpo é um vilarejo fortificado, antiga morada do Panchen Lama, a segunda autoridade espiritual do Tibete, depois do Dalai Lama. É um local de peregrinação para tibetanos de todas regiões do país. Os prédios são imponentes. Comparados aos outros monastérios, sinto que tudo é maior. O número de monges parece também ser superior – encontro dezenas deles caminhando pelas ruelas.
Logo depois do meio-dia, noto uma movimentação no templo principal. Várias dezenas de lamas juntam-se na praça repleta de devotos. Os monges chegam com os seus tradicionais chapéus amarelos, símbolo dessa linhagem budista.
Às 12h30 em ponto, tem início uma correria e os monges atropelam-se para entrar no templo para a sessão de cânticos. Como devem ingressar sem sapatos, retiram as suas botas apressadamente e deixam todas elas jogadas no saguão de entrada. O lugar transforma-se em um mar de botas vermelhas.
O ELEMENTO MAIS forte da cultura tibetana é sua religião. Todos que passam por essa terra ficam encantados com os monastérios e templos budistas. Mesmo sem compreender a complexidade de divindades, ritos ou preceitos, o visitante emociona-se com a força da tradição. Acompanho a distribuição de chá aos lamas. O cheiro forte de manteiga de iaque e o de tsampa tomam conta do lugar.
Sento no solo e deixo o tempo passar, degustando cada cena e movimento. Sinto uma profunda alegria interior por estar em um dos lugares mais sagrados do planeta, uma verdadeira fábrica de boas vibrações. Ao fundo, ouço alguém proferir o poderoso mantra Om Mani Padme Hum. Fecho os olhos e agradeço os momentos mágicos vividos no Tibete.