04/04/2013 - 11:50
Antigamente, ter até 12 anos equivalia a passar muito tempo brincando. Hoje em dia, porém, antes dessa idade meninos e meninas já aprendem idiomas, veem de tudo na televisão e mexem na internet e em aparelhos eletrônicos que dão nó na cabeça de muito adulto. Assim como os mais crescidos, os pequenos estão expostos a um dilúvio constante de informações fragmentadas, dividem sua atenção entre várias atividades simultâneas e são estimulados a se desenvolver o quanto antes para enfrentar o mercado de trabalho. Haja foco e concentração para atender a tanta demanda. Por outro lado, energia não falta. Fechadas em apartamentos, as crianças recebem uma alimentação rica em conservantes, corantes, cafeína e vitaminas que podem levar até as mais calminhas a condutas impulsivas, características dos hiperativos.
Ao contrário do que se possa pensar, essa dinâmica da sociedade atual não justifica o aumento de diagnósticos do transtorno do déficit de atenção com ou sem hiperatividade (TDAH) – o suposto mal da época. O contexto não é a causa, mas evidencia aqueles com o distúrbio neurobiológico (de predisposição genética), por exigir mais das pessoas.
Segundo a Organização Mundial da Saúde, de 3% a 5% das crianças e de 2% a 4% dos adultos têm TDAH. A diferença se dá porque a síndrome se inicia sempre na infância e, calcula-se, em quase metade dos portadores permanece durante a vida toda. Esse mesmo índice se repete em diferentes regiões e países, pobres e afluentes, indicando que o transtorno não é fruto de fatores culturais ou do modo como os pais educam os filhos.
De qualquer forma, incomoda o fato de o Brasil ter se tornado o segundo consumidor mundial do psicoestimulante Ritalina, fabricado pela Novartis, principal medicação usada no tratamento do TDAH. Corroborando esse lugar no ranking, o último levantamento da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) chama a atenção para um aumento de quase 75% no consumo de remédios à base de metilfenidato – Ritalina, Ritalina LA e Concerta – por crianças e adolescentes de 6 a 16 anos, entre 2009 e 2011. O dado abrange os registros de 47 mil farmácias e drogarias particulares, mas não conta o Sistema Único de Saúde (SUS).
Nos Estados Unidos, primeiro consumidor de Ritalina no mundo, a TDAH ganhou status de epidemia no fim da década de 90. Em 2002 o Congresso americano criou uma Comissão de Inquérito para averiguar se as crianças em idade escolar estavam sendo supermedicalizadas. Uma das porta-vozes foi Lisa Marie Presley (filha de Elvis Presley), da Comissão Civil de Direitos Humanos. Várias escolas se especializaram em tratamento do déficit. Em 2007, 19 de setembro se tornou o Dia Nacional da Conscientização do TDAH no país.
Diante desse quadro, surgem questionamentos de profissionais da saúde e da educação sobre a síndrome e a medicalização das crianças com substâncias de uso controlado, as chamadas “tarja preta”. Para acalmar os ânimos, o psiquiatra e psicanalista Mario Louzã explica que, embora isoladamente os números sejam assustadores, a medicação à base de metilfenidato está subutilizada no Brasil. “Esse aumento não dá conta nem de tratar 10% dos que têm TDAH no país”, afirma Louzã, que coordena o Projeto Déficit de Atenção e Hiperatividade no Adulto (Prodath), do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP.
Na melhor das hipóteses, tomando como base uma dose média mínima de 20 miligramas por dia, uma pessoa consumiria 4,4 mil mg por ano para manter um tratamento contínuo, garantindo foco durante seis a oito horas nos dias úteis, excluindo férias. Portanto, para atender 3,8 milhões de pessoas seriam necessários 16,72 bilhões de miligramas do remédio – quarenta vezes os 413 milhões de miligramas que, de acordo com a Anvisa, foram consumidos no Brasil, por todas as faixas etárias, em 2011.
Realidade ou ficção
Os dados matemáticos não têm muita lógica entre aqueles que discutem se o transtorno realmente existe. Para eles, o TDAH pode ser uma invenção da indústria farmacêutica, para gerar vendas, ou da sociedade, para “absolver” pais de crianças “mal-educadas” e rebeldes.
Embora pareça um tema relativamente novo, a síndrome foi descrita pela primeira vez em 1902, pelo renomado pediatra britânico George Frederick Still. Desde então, muitos estudos clínicos, neurológicos e genéticos comprovam alterações na região frontal e nas suas conexões com o resto do cérebro, causadas pelas substâncias químicas chamadas neurotransmissores (sobretudo dopamina e noradrenalina). Elas seriam responsáveis pela inibição de comportamento, capacidade de prestar atenção, organização, memória e planejamento. Por isso, a hiperatividade, a impulsividade e a dispersão são as marcas registradas dessas “mentes inquietas”, como definiu Ana Beatriz Barbosa Silva no título de seu livro sobre o transtorno.
Sergio Nolasco, presidente do Capítulo Paulista da Associação Brasileira de Neurologia e Psiquiatria Infantil (Abenepi), alerta que a sociedade brasileira está perdendo tempo com a discussão sobre a existência da doença. “Ela existe, sim, e a demanda estava reprimida no país, por isso houve tanto crescimento de vendas nos últimos tempos.” Ele lembra que no fim da década de 1990 e no início de 2000, eram poucas as farmácias em que a medicação podia ser encontrada e os médicos precisavam brigar com os laboratórios para tornarem o remédio acessível aos pacientes. Nolasco destaca, entretanto, uma preocupação com o diagnóstico equivocado do transtorno. “A formação de médicos para o diagnóstico de TDAH ainda é bastante precária. Não existem aulas sobre esse assunto nas faculdades e muitas vezes nem nas residências medicas.”
Mais uma vez os dados são inquietantes. Quase 75% das crianças e dos adolescentes brasileiros que tomam remédios para déficit de atenção foram diagnosticados incorretamente, segundo estudo apresentado no 3º Congresso Mundial de TDAH (Alemanha), realizado por psiquiatras e neurologistas da USP, Unicamp, Instituto Glia e do Albert Einstein College of Medicine (EUA). Pais e professores de 5.961 crianças, de 4 a 18 anos, de 16 Estados do Brasil e do Distrito Federal, responderam a questionários baseados no DSM-IV (manual americano de diagnóstico em psiquiatria). Depois, os resultados foram comparados aos diagnósticos que essas crianças e adolescentes tinham recebido antes de outros profissionais.
Para combater o falso diagnóstico, que seria o maior problema atual relativo ao TDAH, a Associação Nacional de Dificuldade de Ensino e Aprendizagem (Andea) realizará, em agosto, um congresso na Universidade Mackenzie, em São Paulo. Nívea Fabrício, psicóloga e psicopedagoga, diretora do colégio Graphein e da Andea, acredita que, como os professores se queixam mais do comportamento dos alunos para os pais, as crianças são mais levadas para os consultórios e mais diagnósticos de TDAH são dados. Mas nem sempre eles são acertados.
Passado, presente e futuro
“Há 20 anos, as crianças tinham hábitos e comportamentos de respeito pelo professor e pela educação”, diz Nívea. “O professor sabia mais do que os alunos. Mas hoje pode acontecer o contrário. A sociedade atual é mais agitada, os alunos mais inquietos e as salas de aula são mais heterogêneas.” Além do que, para o déficit de atenção existiria a “pílula mágica”, que encurta o tempo de solução dos problemas das crianças e de suas famílias. A “pílula da obediência”, como também é conhecida a Ritalina, evita que os pais tenham de pensar mais nos exemplos que dão aos filhos, na baixa valorização das escolas e na consequente falta de motivação para os estudos, na qualidade do sono das crianças, no espaço e tempo oferecidos para elas brincarem e, especialmente, nos seus hábitos alimentares.
Por sua eficácia incontestável no tratamento de casos reais de TDAH, a Ritalina acabou por ter seu uso desvirtuado. Passou a ser utilizada por estudantes para turbinar a mente às vésperas de provas importantes, como vestibulares e concursos públicos. Ganhou, com isso, o apelido de “droga dos concurseiros” ou “pílula da inteligência”. O último estudo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) sobre o tema, feito pela psicóloga Silmara Batistela, mostra, no entanto, que a Ritalina não gera melhora cognitiva em pessoas saudáveis.
No estudo, 36 jovens saudáveis de 18 a 30 anos foram divididos aleatoriamente em quatro grupos. Um deles tomou placebo e os outros três receberam uma dose única de 10 mg, 20 mg ou 40 mg da medicação. Depois da ingestão da pílula, uma série de testes avaliou atenção, memória operacional e de longo prazo e funções executivas dos participantes. O desempenho foi semelhante nos quatro grupos, desmentindo a ideia de que a droga possa ser usada para “doping mental”.
“O psicoestimulante não transforma ninguém em um gênio”, ressalta Louzã. Tomar a droga com essa ilusão geraria um efeito placebo mais forte que a medicação em si. O psiquiatra alerta que o remédio pode aumentar o foco da concentração e a retenção, mas não vai fazer com que a matéria seja aprendida sem que a pessoa se dedique a estudá-la. Mas, como qualquer outra medicação, seus efeitos colaterais podem ser maiores que os supostos benefícios, sobretudo para pessoas que não possuem alteração nos hormônios causadores do déficit. Taquicardia, irritabilidade, insônia, dependência física e psicológica, letargia, apatia, falta de apetite e até depressão estão entre os riscos mais comuns.
Nos casos realmente indicados, a droga pode fazer grande diferença no desenvolvimento da pessoa e poderá ser tomada por toda a vida, como a insulina para os diabéticos. “Sou totalmente favorável à medicação em caso real, porque o efeito é maravilhoso. Já quando o diagnóstico está errado, a Ritalina pode desorganizar a criança ou o adolescente, deixando-o mais inquieto, mais angustiado, com pensamentos confusos”, diz Nívea, com base na sua experiência de décadas de consultório e de escola. Sem dúvida, acertar e aceitar o diagnóstico são partes essenciais para o sucesso do tratamento.