Meio século após a sua morte, o escritor Hermann Hesse (1877-1962) continua presente nas ideias de liberdade e de busca por autoconhecimento, atraindo legiões de leitores. Uma das maiores autoridades sobre o artista, a diretora da Fundação Herman Hesse, em Montagnola, Suíça, Regine Bucher, considera que “a literatura de Hesse é mais do que atual, pois é liberadora, sem escorregar para a implosão familiar. É muito difícil ser jovem hoje; eles podem tudo, fazem o que lhes dá na veneta, mas não sabem onde começar a busca pessoal, nem como assumir suas inquietudes. Ainda se acreditam os eternos incompreendidos. Hesse encarna traços de um buda, até mesmo de um Jesus. Talvez seja essa a sabedoria que todos precisamos conhecer”.

Essa também é uma das razões pelas quais os livros de Hesse estão sendo reeditados em várias partes do mundo, incluindo o Brasil. Prêmio Nobel de Literatura de 1946, ímã intelectual da juventude pós-guerra, referência incontestável da contracultura, ponte entre o Ocidente e o Oriente, Hesse firmou-se como sinônimo de outsider. Seus livros carregados de energia libertária e coragem existencial inspiraram a geração beatnik, no final da década de 1950, e “fizeram a cabeça” dos escritores on the road, como William Burroughs, Jack Kerouac, Allen Ginsberg e John Fante.

As narrativas desse escritor alemão, que abraçou a Suíça como pátria, se equilibram no fio da navalha entre o que pode e o que não pode, mostrando o limite da incessante procura entre a escolha de ser si mesmo ou de submeter-se à manada. Esses desafios nunca se esgotam. Seus personagens mergulham em um universo de ambivalências que sempre entrelaçam o real e o sonho, o sagrado e o profano, o catolicismo e o paganismo, a lucidez e a loucura.

No limite obscuro entre o vivido e o imaginado, a literatura de Hesse encontra figuras marginalizadas que se elevam de misturas confusas e são transportadas a uma viagem pela alma. “Você não pode ser diferente do que é”, aferra-se o autor, sem rodeios. A cada nova geração, o escritor suíço-alemão apresenta o movimento que traz a literatura para as ruas e injeta nelas um novo sopro de vida, como diz um verso do poeta turco Nazim Hiskmet: “O livro deve ser vento abrindo tendas.”

A hora do lobo

A disciplina aprendida por Hesse nas escolas alemãs da Suábia, na Baviera, no final do século 19, fundamentada na educação pelo “quebrantamento da vontade”, causa repulsa nos dias de hoje. Se, além disso, o aluno tivesse pais severos, criados sob dogmas protestantes pietistas numa região encravada em vales e desfiladeiros como a cidade de Calw, cujo eco se sentia nas mentes estreitas dos habitantes, o estrago alcançaria dimensões gigantescas. Mas sempre há exceções. Essa quebra de desejo e de alteridade não foi obtida por Hesse, que saiu da escola mais insensível, duro e orgulhoso, porém mais espiritual. “Sua rebeldia nasceu dessa circunstância constrangida”, anota a suíça Armgard Sasse, guia cultural especializada no autor.

Contraposto à vida austera daquele tempo, Hesse fez o que seu herói, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, gostaria de realizar: viver intensamente, mesmo à custa do eu. “O caminho de Hesse foi de sucessivas autolibertações por meio de revoltas contra o jugo e os tabus da escola, da família, da religião, da sociedade e do Estado”, define o escritor Otto Maria Carpeaux. Ele procurava a sua “hora do lobo”, como os antigos chamavam o momento em que as pessoas encontram o verdadeiro espírito da liberdade e renascem para outro sentido da vida.

A obra de Hesse sempre emerge quando o mundo precisa se renovar. Assim foi após as duas Guerras Mundiais. Na década de 1960, seus romances não esquentavam nas prateleiras das livrarias. Eram os anos em que as feministas queimavam sutiãs, o Vietnã era queimado em napalm e os estudantes incendiavam carros, exigindo reformas. Serão uma coincidência as reedições de seus livros quando assistimos à coragem dos que lutam contra regimes opressivos, como no caso da Primavera Árabe?

Nas décadas de 1920 e 1930, porém, sua literatura defensora da paz e do antimilitarismo das nações foi severamente criticada e punida por editores e escritores por seu não alinhamento político. Mas Hesse ganhou o Nobel de 1946 exatamente por essas obras. Coerente consigo, não foi a Estocolmo buscar o prêmio. “Hipócritas! Agora não me interessa”, teria dito naquele ano, diante de uma Europa destruída. Manteve-se antibelicista durante a guerra, depois da contenda incitou os homens à solidariedade e ao humanitarismo. Seus livros não perderam força nem vitalidade e ensinam os adultos em épocas tumultuosas que geram descrédito pela sociedade.

Retiro espiritual

Foi à procura de iluminações interiores que Hesse se mudou para a vila rural de Montagnola, a 4 quilômetros de Lugano, Suíça. Ali, durante os últimos 40 anos de sua vida, encontrou a paz e o silêncio para escrever seus principais romances, dentre os quais Sidarta (inspirado na história de Siddharta Gautama, o buda hindu), Narciso e Goldmund, Klingsor e as obras-primas O Lobo da Estepe e O Jogo das Pérolas de Vidro. Ali encontrou a maioria das respostas sobre seus questionamentos filosóficos e sobre a liberdade de amar.

“Solidão é independência”, disse uma vez a um editor. Regine Bucher esclarece que Hesse não era antissocial: “Ele era um tremendo caxias que queria aprofundar-se no trabalho.” Não concedia entrevistas e não era dado a conversas. Chegou ao extremo de colocar na entrada de sua Casa Rossa a placa: “Por favor, sem visitas.” Casou três vezes, a última em 1931, com a francesa Ninon Dolbin. Morreu durante o sono, em Montagnola, com 85 anos.

Na casa da Suíça nasceu um Hesse pouco conhecido, com um lado menos sombrio, o aquarelista. Aconselhado por um terapeuta a desenhar seus sonhos, o escritor, estudioso da psicanálise jungiana e correspondente de Carl Jung, descobriu a arte da pintura, retratando paisagens suíças. “Minhas casas riem e choram; mas minhas árvores cantam”, disse. “No final de um dia de trabalho, não tenho as mãos sujas do negro da tinta de escrever, mas de azuis, verdes e rosas.” Regine afirma que as aquarelas o livraram de grandes períodos de depressão: “A pintura o salvou quando tinha perdido sua confiança como escritor.”

Hermann Hesse permaneceu fiel a si mesmo em todos os seus escritos. Na Fundação Herman Hesse, ao lado das quatro mil cartas que escreveu, de 100 aquarelas, de seus objetos pessoais, de áudios gravados com suas declarações em alemão e italiano, e de todos os seus livros, podemos vislumbrar sua modernidade. Ela reside no desejo de viver, de explorar, de se aventurar, de pôr o pé na estrada e, mais importante, de não recusar o momento, o aqui agora. Até hoje, o autor é um dos escritores em alemão que mais vendem livros no mundo.

A vida não vem com manual de instrução, mas Hesse compôs o prefácio para muitos de seus leitores verem o mundo por si mesmo sem temer a experiência nem a imaginação. Em uma entrevista rara, pouco antes de morrer, declarou: “Para se autoconhecer não é preciso ir à Índia ou ao Nepal. Tenham sua própria experiência, sem medo. Enriqueçam-se com sua cultura. Hoje os jovens precisam que alguém diga: não tenham medo.”