01/08/2008 - 0:00
Para Magnoli, a ONU, apesar das ressalvas que se pode fazer à sua atuação, está cumprindo seu papel.
Desde sua origem o homem convive com guerras, sonhando com uma paz universal e verdadeira. A paz total parece ainda utópica, mas a história registra períodos de tranqüilidade, garantidos por acordos diplomáticos entre as grandes potências. Bem ou mal, esses acordos estão evitando o surgimento de conflitos de proporções mundiais que, devido ao avanço tecnológico, poderiam significar a própria destruição da humanidade e do planeta.
Organismos internacionais como a ONU também têm um importante papel na manutenção da paz mundial. A Declaração Mundial dos Direitos Humanos, adotada em assembléiageral da ONU, em 10 de dezembro de 1948, foi um acontecimento histórico de grande relevância. Ao afirmar pela primeira vez, em escala planetária, o papel dos direitos humanos na convivência coletiva, ela pode ser considerada um fator que inaugurou uma nova concepção da vida internacional.
Outro evento de fundamental importância para os destinos do planeta é o Protocolo de Kyoto, firmado no Japão em dezembro de 1997. Nesse documento, os países industrializados signatários se comprometeram a reduzir as emissões de dióxido de carbono (CO2) e, com isso, contribuir para reduzir o aquecimento global.
Os tratados e acordos que asseguram a paz e garantem os direitos e o bem-estar dos cidadãos são o tema do livro História da Paz, recém-lançado pela Editora Contexto. Trata-se de uma coletânea de artigos de especialistas organizada pelo sociólogo Demétrio Magnoli, integrante do Grupo de Análises de Conjuntura Internacional, da USP. O livro faz um contraponto a outra obra organizada por ele, História da Guerra, publicada pela mesma editora. Em entrevista a PLANETA, Magnoli discute as principais questões abordadas nesse livro.
Por que a idéia de se lançar uma coletânea de estudos sobre tratados de paz?
Partimos do conceito de que guerra e paz são parte do mesmo fluxo das relações internacionais. As grandes guerras produzem tratados de paz, com uma nova ordem geral. Temos três grandes exemplos disso. O primeiro é o Tratado de Westfália, de 1648, feito após a Guerra dos Trinta Anos, cujo resultado foi a organização do sistema internacional da Idade Moderna.
Já o Congresso de Viena, que se seguiu às guerras napoleônicas, teve como mérito reorganizar a ordem internacional do século 19. O Tratado de Versalhes, estabelecido depois da Primeira Guerra Mundial, pretendia restaurar a ordem, mas não conseguiu e o resultado foi a Segunda Guerra Mundial. Ou seja, esse processo em que guerras gerais destroem uma ordem existente e são seguidas por um tratado que recria a arquitetura da convivência internacional é uma das dimensões que o livro procura tratar.
“Os tratados de paz não têm a função de abolir todas as guerras de uma vez só, mas de criar uma ordem estável de paz, que não é eterna”
Mas o homem não é beligerante por natureza? Numa civilização tão heterogênea como a nossa, não é ilusório achar que tratados irão impedir conflitos causados por interesses econômicos, raciais, religiosos e de outros tipos?
Os tratados, de um modo geral, são extremamente eficientes. No entanto, nenhum vai abolir a guerra, pois esse tipo de conflito não pode ser evitado enquanto existirem estados soberanos defendendo seus interesses nacionais. Os tratados de paz não têm a função de abolir todas as guerras de uma vez só, mas de criar uma ordem estável de paz, que não é eterna.
Alguns grandes tratados foram muitos eficientes nesse sentido, como o de Westfália, que criou uma ordem de paz durante 150 anos. Isso não quer dizer que não houve guerras nesse período: o que não existiu foram guerras gerais, apenas as isoladas.
O tratado de Nanquim (que encerrou a chamada Guerra do Ópio, em 1842) estabeleceu condições políticas para a expansão ocidental na China, e a Conferência de Berlim (1884-85) visava evitar conflitos entre as potências européias no domínio da África. Já o acordo Sykes-Picot, de 1916, entre Inglaterra e França, deu origem a uma série de outros tratados assinados após a Primeira Guerra Mundial. Ele foi tão eficiente que criou um país chamado Iraque.
Qual é o papel da ONU na manutenção da paz mundial?
Após a Segunda Guerra, não houve um tratado geral entre as nações, mas acordos entre os países vencedores. Foi então que surgiu a ONU, exatamente para estabelecer as bases de uma paz geral. Também foi criada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, que alterou a clássica lógica de estados soberanos e independentes, a qual não atribuía peso a povos e indivíduos.
Além disso, muitos dos tratados internacionais atuais são negociados no âmbito da ONU ou das suas agências.
O Protocolo de Kyoto, por exemplo, resulta de uma conferência promovida pela ONU, patrocinadora de grande parte dos acordos atuais. Ou seja, até agora a ONU – apesar de todas as críticas que recebe e dos problemas e deficiências que tem – está cumprindo o seu papel. Basta ver que não houve um conflito mundial desde a Segunda Grande Guerra.
Os tratados cumprem seu papel. Mas como manter a paz num mundo cada vez mais dominado pela desigualdade social?
A igualdade social e o direito do cidadão a condições básicas que garantam uma vida digna somente passaram a ser vistos como fatores fundamentais para a manutenção da paz depois da Segunda Guerra Mundial.
“A globalização é uma novidade e trouxe como fruto tratados verdadeiramente mundiais, como o Protocolo de Kyoto, que se preocupa com o destino do planeta e da humanidade”
Hoje, isso nos parece óbvio, mas há 60 anos, antes da Declaração Universal dos Direitos do Homem, era absoluta novidade. Até então, a desigualdade social era considerada um problema de cada país, e não algo que devesse ser discutido em fórum internacional. E se alguém tocasse nesse assunto no século 19, simplesmente ninguém entenderia do que ele estaria falando.
Foi também a partir do surgimento da ONU que entidades como a Organização dos Estados Americanos (OEA) estabeleceram outras declarações relacionadas a direitos humanos, os quais devem ser respeitados acima das fronteiras dos Estados.
Hoje vivemos num mundo globalizado. As guerras vão continuar a existir, apenas com outra roupagem e motivadas por novos interesses?
A globalização é uma novidade e trouxe como fruto tratados verdadeiramente globais, como o Protocolo de Kyoto, que se preocupa com o destino do planeta e da humanidade. Isso porque o aquecimento global não pode ser definido como interesse particular de ninguém, mas algo que representa o interesse de todos. Outra novidade da globalização é que agora existem guerras declaradas não de um Estado contra outro Estado, mas contra uma organização global, como é o caso do terrorismo. Isso aconteceu em 11 de setembro de 2001, quando os Estados Unidos sofreram um ataque terrorista e declararam guerra ao terror.
Ou seja, os tratados vão continuar a ser feitos com outras características, conforme as necessidades. Posso até dizer, sem exagerar, que todo dia está sendo assinado um tratado internacional que procura garantir a paz.
Mas esses tratados são cumpridos integralmente? Ou eles só existem no papel?
Há tratados mais eficientes do que outros. Alguns são totalmente cumpridos, como o de Westfália. A ordem emanada do Congresso de Viena (1814-15) também foi amplamente aceita e acatada. Mas o Tratado de Versalhes foi um fracasso e descumprido de muitas formas, o que levou à Segunda Guerra Mundial.
Isso quer dizer que não há uma regra geral sobre o cumprimento ou não dos tratados. Cada um deles tem seu próprio contexto. O Protocolo de Kyoto não foi assinado pelos EUA, porque ele só precisa ser cumprido por quem o assina. Além disso, muitos países que assinaram o protocolo ainda não cumpriram o que ele determina, em níveis de emissão de gás carbônico, mas também não descumpriram as regras.
Quando se tornaram potências nucleares, a Índia e o Paquistão não descumpriram nenhum acordo, pois tinham ficado de fora do Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP), de 1968.
Qual é o papel da Igreja Católica na manutenção da paz mundial?
A Igreja Católica teve um papel muito grande nas relações internacionais até o final da Idade Média, quando os papas garantiam os tratados. Mesmo no Renascimento, a Igreja ainda garantia o cumprimento de tratados, como o de Tordesilhas. Depois, passou a se tornar um elemento secundário, e os próprios Estados assumiram o papel central nas relações internacionais.
A Igreja tem pesos diversos em lugares distintos, e quando a CNBB faz uma campanha pela paz no Brasil, trata-se de ato isolado. No entanto, pela própria tradição histórica da Igreja como mediadora de conflitos entre cristãos e judeus, a palavra do papa sempre é ouvida quando ele se pronuncia sobre questões no Oriente Médio.