01/08/2008 - 0:00
O dia 21 de junho marca o Ano-Novo aimará. Nas últimas duas décadas, sítios arqueológicos que serviam como centros cerimoniais voltaram a receber um grande número de visitantes para celebrar o Willka Kuti, o Retorno do Sol.
Próximo ao lago Titicaca, Tiwanaku é um desses pontos magnéticos que atraem peregrinos de todos os cantos do mundo. Os eventos acontecem algumas vezes por ano, principalmente nos dois solstícios e dois equinócios. Por isso, na minha jornada para produzir um documentário na Bolívia, não hesitei em incluir Tiwanaku no roteiro.
Para poder filmar e fotografar os festejos sagrados, uma amiga colombiana, Raquel Gomez, me colocou em contato com Lucas Choque Apaza, presidente do Conselho de Amautas (sábios) de Tiwanaku. Uma semana antes do evento, almoçamos em La Paz. Dom Lucas explica que vem de uma família de amautas. Seu avô foi um renomado sábio andino, numa época em que os ritos não podiam ser públicos e deviam ser ocultos e mascarados pela religião católica.
Segundo a tradição andina, em 2008 entramos no ano 5516. Perguntei a Dom Lucas como chegaram ao número. “São 516 anos desde a chegada dos espanhóis no continente, que aconteceu em 1492.
Consideramos que nossa cultura existia, naquele momento, havia cinco mil anos. Isso dá um total de 5516.” Mas alguns arqueólogos não concordam com os números arredondados.
O dia 21 de junho, solstício de inverno no Hemisfério Sul, equivale ao 21 de dezembro, solstício de inverno no Hemisfério Norte. “Os habitantes do norte festejam o nascimento de Jesus e o ano-novo do calendário gregoriano”, diz Dom Lucas. “O início do ano sempre coincide com o começo do inverno, quando a terra está descansando, preparando- se para um novo ciclo. Por isso, aqui no sul, celebramos o Willka Kuti no final de junho.” Os incas de Cuzco também marcavam essa data com a Festa do Sol, o Inti Raymi. O festival Inti Raymi moderno recomeçou em 1944 e vinculou a efeméride natural com o dia de São João, 24 de junho.
“Outra data importante é o equinócio da primavera, em 23 de setembro. O solo começa a esquentar e está pronto para receber as sementes. É o momento que plantamos quinua, trigo, cevada e batata”, conta o amauta. “Pedimos à Pacha Mama, a Mãe-Terra, para proteger nossos campos e nos dar farta colheita.”
No altiplano boliviano, o solstício de verão – 21 de dezembro – é simbolizado pela floração da batata. “Pacha Mama e os Ápus, as montanhas sagradas, abençoam os campos com água. Precisamos de chuva na medida certa para que a safra seja abundante”, explica o sábio. “Terminamos o ciclo com o equinócio de outono, em 21 de março. É a época da colheita e agradecemos o que recebemos da natureza.”
A tradição andina é uma religião da terra. As forças reverenciadas têm sempre uma relação intrínseca com a natureza. As divindades principais – Pacha Mama, Tata Inti (o Pai-Sol), os Ápus ou a Lua – estão intimamente conectadas com o ciclo da agricultura e da pecuária.
Minha conversa com Dom Lucas aborda a Bolívia atual. “Nos governos anteriores, nossa tradição espiritual foi perseguida. Agora, somos reconhecidos e a medicina indígena é aceita”, afirma o amauta. Evo Morales, presidente desde março de 2006, é de descendência aimará. Foi eleito pela massa indígena e por parte da classe média que quis promover uma mudança radical no sistema político boliviano. Dom Lucas confirma que o chefe de Estado participará do Retorno do Sol.
Na tarde de 20 de junho, chego a Tiwanaku. Dom Lucas está na sede do Sindicato Agrário. Entro no imenso salão repleto de nativos: sou o único que não veste um colorido poncho ou um lluchu, o gorro andino. Reconheço o amauta – ele está com o microfone na mão e fala para uma centena de líderes indígenas. Seu discurso é em aimará, mas – para surpresa minha – escuto a palavra “Brasil” e meu nome.
1. O entardecer na Porta do Sol, o principal símbolo de Tiwanaku. A estrutura de 44 toneladas está dentro do Kalasasaya e foi esculpida em apenas um bloco de andesita, uma rocha vulcânica.
2. O monolito Ponce, também conhecido como Estela 8, representaria um sacerdote da cultura Tiwanaku. Ele é repleto de baixos-relevos e decorado com motivos animais.
3. Depois do nascer do sol, todos os que haviam feito uma oferenda foram ao altar para depositá-la no fogo sagrado.
Com mais confiança, me aproximo da mesa onde estão as autoridades. Sou apresentado a Eulogia Quispe, a prefeita da cidade. Ela tem apenas 24 anos e está no cargo desde abril de 2008, substituindo seu antecessor, que saiu após um escândalo de corrupção.
A prefeita pede que eu sente a seu lado. Ela explica que devo ir imediatamente à prefeitura falar com um de seus conselheiros. Como o presidente Evo Morales estará presente, é indispensável que eu tenha a credencial de imprensa emitida pela prefeitura. “Retorne o mais rápido possível, pois partiremos dentro de uma hora ao monte Lloko Lloko para a primeira cerimônia da noite”, avisa Dom Lucas.
Lloko Lloko está a 16 quilômetros na estrada de regresso a La Paz. É uma pequena serra em pleno altiplano, a quase 4.200 metros de altitude. Duas dezenas de pessoas rodeiam a fogueira preparada com esterco seco e alimentada com álcool. Uma oferenda, a meza (misa em aimará), é colocada sobre o fogo. Cânticos consagram o momento. Depois de terminar o ritual, Dom Lucas explica que essa cerimônia é um pedido para que o Willka Kuti do dia seguinte ocorra com sucesso. Quando pergunto como foi montada a meza e qual é sua composição, o amauta esclarece. “Voltaremos à sede do sindicato e lá realizaremos uma outra oferenda. Você poderá acompanhar, desde o início, como uma meza é montada”, afirma Dom Lucas.
No sindicato, o corre-corre é intenso. Vários líderes chegam das comunidades vizinhas, trazendo colchões e cobertas. Não há dúvida de que o salão servirá, à noite, como um imenso dormitório. Dom Lucas abre algumas folhas de papel branco e as estende sobre uma manta andina esticada sobre a mesa das autoridades. Um dos amautas prepara um círculo com fios coloridos de lã de lhama, símbolo de boa sorte. São longas tranças amarelas, rosas, vermelhas e violetas. Um companheiro coloca flores brancas sobre a roda de lã. Outro amauta espalha folhas de coca. Montar uma meza é uma tarefa comunitária e cada mão contribui com um detalhe artístico para que a oferenda seja de todos.
Os últimos ingredientes são os doces, considerados como a sobremesa para Pacha Mama. Diversas mãos depositam guloseimas coloridas sobre a oferenda. Dom Lucas estende um pacote de doces em minha direção. “Coloque também seu presente para Pacha Mama”, diz. Eu sigo as instruções e deposito algumas balas no centro.
Com cuidado, um amauta segura a meza por baixo e coloca dentro de uma cesta de palha. Chega o momento de sair do salão e levar a oferenda ao fogo aceso lá fora no pátio. Na hora de colocar o embrulho na fogueira, a presença de uma mulher é requisitada e a meza é depositada entre as chamas por um casal. Os participantes oram em honra a Pacha Mama e Dom Lucas soa o pututu, a corneta tradicional feita com chifre de boi. Os líderes dão uma volta completa ao redor do fogo e depois se abraçam, para marcar o fim do ritual. Eles desejam um feliz Ano-Novo a seus companheiros. Em poucos minutos, todos se dispersam. A noite será curta, pois antes de o sol nascer todos deverão se encontrar para o Willka Kuti.
Às 5 horas, já estou no interior das ruínas de Tiwanaku. Faz muito frio: a noite do solstício de inverno é a mais longa do ano. À medida que o dia clareia, a temperatura parece diminuir. Chega a cinco graus negativos! Estou agasalhado com muitas camadas de roupas, mas os dedos de meus pés congelam!
Um pouco antes das 7 horas, aterriza o helicóptero do presidente Evo Morales. Como ele está em campanha para sua reeleição, não pode deixar de participar da importante festa. Se em alguns dos departamentos do país Evo é persona non grata, no altiplano de La Paz ele é muito querido.
1. Dom Lucas, presidente do Conselho de Amautas.
2. Na foto acima,no momento em que o sol aparece, o presidente da Bolívia, Evo Morales (centro), a prefeita de Tiwanaku, Eulogia Quispe (esquerda), e o ministro das Relações Exteriores, David Choquehuanca, levantam as mãos em direção ao leste para receber as boas energias do Willka Kuti, o Retorno do Sol; e Dom Lucas e outros dois amautas fazem os primeiros votos para o Ano-Novo aimará.
Milhares de participantes estão reunidos no templo Kalasasaya, a esplanada principal de Tiwanaku. Às 7h15, 35 mil pessoas (segundo os jornais que apóiam o governo) ou 10 mil (por cálculos da bilheteria) elevam as mãos para o alto a fim de receber a energia dos primeiros raios solares. O momento é de concentração e silêncio. Quando o sol nasce, Dom Lucas, que preside o ritual, pede paz para os nove departamentos do país e para o mundo. O sábio recebe Evo Morales no altar de adobe construído para a cerimônia e o presidente deposita na fogueira uma generosa oferenda a Tata Inti e Pacha Mama. Como na noite anterior, amigos e desconhecidos se abraçam para saudar a entrada do novo ano 5516.
A mensagem do Conselho de Amautas, lida por Dom Lucas, adverte que “a cordilheira sagrada dos Andes corre perigo de desaparecer” devido às mudanças climáticas. Invocando Pacha Mama e a sabedoria milenar, o sábio conclui: “Chegou a hora de regressar às nossas raízes e buscar a harmonia com a natureza.” O novo ciclo parece ser positivo para a Bolívia. “A Pacha Mama recebeu o Pai-Sol com neblina, o que é um bom sinal. E o sol saiu suave, como se estivesse acariciando os humanos”, explica Dom Lucas. “Isso significa que devemos ser amáveis uns com os outros.” Em um momento de grande instabilidade política, quando o país está fortemente polarizado e rumores de conflitos abundam, a esperança é que os votos do amauta se tornem realidade.
Tiwanaku é um dos 150 lances do Teste de Viajologia Mundial
Jornalista, fotógrafo e conservacionista, Haroldo Castro viajou à Bolívia para produzir e apresentar um documentário para o SBT Realidade. O programa vai ao ar na rede SBT, no dia 18 de agosto, às 23h30.