13/03/2014 - 11:29
Na foz do Rio Piranhas, no litoral potiguar de Macau, a 180 quilômetros a oeste de Natal, emerge uma paisagem de morros piramidais de um branco que chega a cegar. O grafismo se estende por uma vasta área, tendo à frente um mar azul que varia de matiz conforme a incidência da luz. Toda a região é constituída por salinas que, ao lado daquelas de Mossoró, respondem por 95% da produção de sal marinho do Brasil. Só em Macau são 1.000 toneladas de cristais de sal de alta pureza, que fazem do Brasil, com um total de 2.500 toneladas, o quinto maior produtor do mundo, numa lista encabeçada por Estados Unidos e Chile.
O mar do Rio Grande do Norte é mais salgado? Por que nosso sal é iodado? Quantos tipos de sal existem? Por que o mineral guarda mitologias de todos os povos? Ninguém imagina tais perguntas diante de um saleiro. Começando pela geografia de Macau, entre 65 e 23 milhões de anos atrás, grandes movimentos tectônicos sob a América do Sul constituíram a Cordilheira dos Andes, alteraram o curso dos rios amazônicos, interferiram no clima e mudaram a composição do solo. As turbulências moldaram o desenho litorâneo do Brasil e, no Rio Grande do Norte, criaram um cenário perfeito para a exploração do sal: planícies costeiras, baixa profundidade do mar, solo semi-impermeável, pouca chuva, calor intenso e, principalmente, ventos constantes para facilitar a evaporação.
Não haveria sal em Macau sem os ventos alísios, correntes de ar de alta pressão que se deslocam regularmente de ambos os polos rumo ao Equador, e constituem a zona de convergência intertropical, um sistema meteorológico que avança rumo ao norte ou ao sul, dependendo das estações. Quando os dois ciclos colidem, geram eventos cataclísmicos: no sudeste da Ásia, na Índia, em Bangladesh e no Camboja, violentas tempestades geram inundações gigantescas durante meses; na África, assustadoras tormentas atravessam o Atlântico e viram furacões nas Américas; porém, no privilegiado litoral potiguar os ventos alísios são menos intensos e perfeitamente complementares para a ocorrência das salinas. Muito bons para a energia eólica.
As salinas da região, que recebeu o nome de Macau em referência à ex-colônia portuguesa homônima na China, já eram exploradas pelos colonizadores desde o início do século XVI. Mas, na verdade, a cidade brasileira tem uma única semelhança com a cidade do Sudeste Asiático: está situada na foz de um rio. Lá, é o Rio Xi. Aqui, é o Piranhas.
Espelhos salgados
A salinidade dos mares é praticamente igual em todos os oceanos. Na média é de 33 gramas de sal por litro de água, ou seja, 3,3%. As exceções são o Mar Vermelho, com 4,4%, e o Báltico, com 1,1%. No entanto, o sal não é extraído só a partir da evaporação da água do mar. Existem grandes jazidas em estado cristalino, em depósitos sobre ou sob o solo. Há muitas nos Andes, dentre as quais a de Uyuni, na Bolívia, considerada a maior salina do mundo, com uma área de 10.580 km2. Sua refulgência é tanta que serve para calibrar equipamentos lá em cima, no espaço. Há grandes salinas também no Himalaia, comprovando que essas grandes cordilheiras se projetaram do fundo dos oceanos.
Há poucas diferenças entre o sal marinho e o de jazidas minerais. A cor é uma delas. No altiplano andino, por exemplo, predomina a cor branca, enquanto a do sal marinho é acobreada. Isso se deve à presença da Dunaliella salina, um tipo de alga encontrada em campos de sal marinho. Conhecida por sua ação antioxidante, devido à capacidade de criar grande quantidade de betacaroteno, essa alga, além de servir como filtro biológico natural para proteção da qualidade do sal, é muito utilizada na indústria de cosméticos.
Em um mundo industrial cada vez mais poluidor, a produção de sal só precisa de sol e vento como fontes de energia. Nas salinas de Macau não existe mais a realidade aviltante do trabalho brutal explorado pelos proprietários. A imagem-clichê do trabalhador esquálido, com pés descalços, corroído pelo sal e pelo sol, ao lado de um moinho de vento, povoa o senso comum. Hoje, porém, essa impressão não encontra reflexo nas salinas brasileiras: os cataventos e os carrinhos de mão foram substituídos por geradores, escavadeiras, esteiras transportadoras e carteiras de trabalho assinadas.
Passe-me o sal
O universo do sal vai muito além de uma pitada especial para temperar e conservar alimentos. Como uma das mais cobiçadas especiarias da antiguidade, o mineral gerou conflitos militares entre nações, e suas rotas eram da maior importância comercial. Em Roma, o sal era utilizado como moeda, e dele se originaram as palavras soldado e salário. Na Polônia do século XIV, as minas de sal de Wieliczka, perto de Cracóvia, com 280 quilômetros de extensão e 300 metros de profundidade, forneciam 70% da renda do reino. Em Novi Ligure, Itália, existe uma “Fonte do Sal” em homenagem aos genoveses que em 1814 defenderam sua reserva de sal contra franceses e ingleses.
Mais intimamente, nas residências brasileiras do período colonial, e mesmo depois, o “quarto do sal” era um pequeno aposento, em geral em andar superior, próximo ao teto, protegido como um verdadeiro cofre.
Na mitologia e na superstição popular o sal ocupa espaço valioso. Na Bíblia, a esposa de Ló se transformou em uma estátua de sal. Leonardo da Vinci pôs um sal entornado diante de Judas, na tela da Santa Ceia. O sal era e ainda é utilizado em muitos países para afastar o mauolhado, purificar pessoas, casas, objetos e renovar as energias em um banho de imersão. É indispensável no soro caseiro contra a desidratação.
Nos tempos modernos, o sal, produzido em larga escala, é comercializado em três formas: sal grosso para indústrias químicas e têxteis; sal moído para a pecuária e degelo; e sal refinado como condimento. No Brasil, a partir da década de 1960, foi adicionado iodo obrigatoriamente ao sal comestível, na proporção de 20 a 60 miligramas por quilo, para prevenir o bócio na população (o aumento patológico da glândula tiroide, mais conhecida como “papo”). Por que o sal? Porque é um alimento consumido por todos os brasileiros.
Hoje, as disputas pelo sal se concentram na qualidade do produto usado na cozinha. Na linha de frente destaca-se o sal marinho de Guérande, do litoral da Bretanha, França. A evaporação da água em tanques faz ínfimas partículas de sal virem à tona. Ao anoitecer, elas formam crostas brilhantes, com bordas rendadas, parecidas com gelo. É a “fleur de sel” (flor de sal) o “crème de la crème”, tão delicada que precisa ser colhida imediatamente. A umidade noturna ou um vento pode destruí-la.
Outros sais famosos são: o sal de Maldon, originário de Essex, no sul da Inglaterra, retirado manualmente das águas do Atlântico; o sal rosa do Himalaia, no Paquistão, de coloração salmonada; os sais do Havaí, o negro, que deve a cor à presença do carvão, originário da Ilha de Molokai, e o vermelho, o consagrado “Alea Sea Salt”. O Brasil não fica atrás: segundo o engenheiro químico Geraldo Alves Diniz, responsável pela Salina de Lagamar, em Macau, ali já se produz a “Flor de Sal”.