04/04/2014 - 15:30
Já se pode comprar maconha legalmente no Colorado, nos Estados Unidos, desde o início do ano. O Estado americano foi o primeiro lugar do mundo a colocar em ação a liberação do cultivo e do consumo da Cannabis sativa e será acompanhado, em junho, pelo Estado de Washington. Em agosto, a venda do produto em farmácias será iniciada no vizinho Uruguai, o primeiro país a tornar a maconha 100% legal. Toda essa movimentação está reacendendo a discussão sobre a descriminalização da maconha no Brasil. Mas quem deseja ver a erva encarada como um produto trivial, tipo uma lata de cerveja, ainda vai ter que esperar.
As experiências norte-americana e uruguaia consolidam uma tendência global nas políticas antidrogas. Com modelos diferentes, Portugal e Holanda conseguiram minimizar os danos relacionados ao uso de entorpecentes ao descriminalizar o consumo. O porte de drogas deixou de ser crime no Brasil desde 2006. Atualmente, o senador Cristóvão Buarque (PDT-DF) e o deputado federal Jean Wyllys (PSOLRJ) lideram iniciativas de projetos de lei para legalizar e regulamentar o uso da erva. Mas aprová-los no Congresso será uma batalha.
O que os Estados do Colorado e Washington e o Uruguai propõem vai além: aí foi liberado não só o consumo recreativo, mas a cadeia produtiva inteira será regulamentada. No primeiro caso, o processo ficará nas mãos de empresas licenciadas. No outro, caberá ao Estado controlar a produção, distribuição e venda – a legalização da maconha implica a sua estatização.
Trata-se de modelos distintos, mas os objetivos são os mesmos: reduzir os impactos associados à guerra ao tráfico e abordar de maneira tolerante o consumo. Por trás da evolução há um consenso: a constatação de que a guerra ao tráfico não pode ser ganha provoca mudanças legislativas mundiais.
Embora seja proibida, a maconha é considerada uma das drogas menos perigosas do mundo, atrás do álcool e do tabaco, ambas lícitas. Entre as ilícitas, é de longe a mais popular. O Relatório Mundial sobre Drogas de 2013, divulgado pelo Escritório das Nações
Unidas sobre Drogas e Crimes, mostra que 180 milhões de pessoas entre 15 e 64 anos, quase 3,9% da população mundial, consomem cannabis. Estima-se que 10% dos usuários desenvolvam dependência, com incidência menor que a do álcool (por volta de 15%).
Os usos medicinais, religiosos e culturais da maconha remontam a pelo menos 2.000 anos. Os primeiros registros de proibição são do século 18, mas foi no século 20 que a restrição ganhou força e atingiu seu ponto crítico. “O alto custo de vidas do narcotráfico induz às políticas de prevenção”, explica à PLANETA Pablo Anzalone, coordenador do Conselho de Drogas de Montevidéu. “As limitações do paradigma proibicionista, suas derrotas, a violência decorrente, a estigmatização e a exclusão dos usuários estão na base das transformações. É necessário se atrever a mudar as estratégias predominantes”, diz Anzalone.
Além dos hippies
No fim da década de 1930, os EUA promulgaram a primeira lei que proibia a maconha. Hoje, além de Washington e Colorado, outros 19 Estados permitem o uso medicinal da droga. Ex-presidentes como Bill Clinton e Jimmy Carter passaram a defender o fim da estratégia rece estar disposto a bancar o projeto-piloto, proibicionista e uma abordagem mais tolerante do tema quando deixaram os respectivos cargos. Barack Obama pamas com cautela. Apesar da lei federal que proíbe a maconha, o atual presidente americano decidiu não interferir nas decisões e garantiu autonomia às unidades federativas do país.
Em 2011, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso protagonizou o documentário Quebrando o Tabu, uma defesa da regulamentação da droga. Desde 2009, FHC tem se dedicado ao assunto e participado de comissões e conferências no Brasil e no Exterior. “Os recursos estão todos concentrados em destruir a produção e combater o tráfico. Mas nada é feito para lidar com os efeitos na sociedade e em quem usa”, declarou em entrevista à época do lançamento do filme.
O discurso regulamentador não é exatamente uma novidade. Desde a década de 1960, diferentes setores da sociedade confrontam os argumentos que levaram à proibição da cannabis, intensificada por um acordo global proposto pela Organização das Nações Unidas, em 1961, fortalecido pelos governos de Richard Nixon (1969-1974) e Ronald Reagan (1981-1989).
Em 1967, quando fervilhava a contracultura nos EUA, o médico recém-formado Lester Grinspoon, hoje professor emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Harvard (EUA), decidiu estudar os efeitos da maconha para provar os malefícios da droga aos amigos. Quatro anos depois, lançou o livro Marijuana Reconsidered (Maconha Reconsiderada, em tradução livre), com um resultado inverso.
“Depois de mergulhar na biblioteca e revisar toda a literatura médica a respeito da maconha, percebi que tínhamos sofrido uma grande lavagem cerebral”, disse Grinspoon para a PLANETA. “Tudo o que sabíamos sobre a cannabis era baseado em mitos. Havia uma verdadeira inquisição cultural movida pelo governo.”
O endurecimento mundial da política contra as drogas, que teve os EUA como principal protagonista, gerou efeitos contrários: as pessoas não pararam de se drogar, os cartéis do narcotráfico enriqueceram e a violência e o número de prisões e de mortes aumentaram. Na Colômbia, o número de regiões que plantam coca saltou de oito para 24. “Desde 1971, 26 milhões de pessoas nos EUA foram presas. Dessas, 89% por posse de droga, a maioria jovens, que podem ter tido o futuro arruinado por portar maconha”, afirma Grinspoon.
Efeitos imprevistos
Experiências legalizadoras tiveram resultados diversos nos países onde foram implantadas. Desde 2001, a posse de qualquer entorpecente em Portugal não é considerada crime, sendo passível apenas de multa. Um estudo conduzido pelo Cato Institute, uma organização liberal norte-americana, revelou que depois da liberação portuguesa o consumo geral de drogas baixou, assim como o número de presidiários. Também os usuários passaram a recorrer mais aos tratamentos oferecidos pelo governo.
Na Holanda, a situação é controversa. Nos anos 1970 o consumo de heroína aumentou preocupantemente. Na época, acreditava-se que o traficante empurrava a droga mais pesada ao jovem consumidor de maconha. Criaram- se, então, os Koffeshops, que proporcionavam a venda e o uso da cannabis. Mas fora desse ambiente a droga continua ilegal. O número de pessoas que já provaram a erva no país praticamente dobrou e a capital, Amsterdã, virou uma espécie de Disneylândia maconheira. Por outro lado, o uso de heroína, alvo principal da política, deixou de ser um problema e o consumo geral de drogas, comparado a outros países, não é alto. Ainda não se chegou a uma conclusão definitiva se a regulamentação vale a pena.
Erva estatal
Há muitos anos fumar maconha no Uruguai não é crime. Tolera-se o ato inclusive em lugares públicos. Mas a simples descriminalização não resolveu a questão das drogas no país. O poder do tráfico aumentou, o consumo e a criminalidade também e jovens estão
entrando em contato com entorpecentes cada vez mais cedo.
A decisão arrojada do governo de José Mujica, da Frente Ampla, pretende diminuir o poder do crime organizado, tirando de seu controle o mercado da maconha. “O que a nova lei faz é regular o mercado”, explica Pablo Anzalone, do Conselho de Drogas. “Em vez de ficar concentrado na mão do narcotráfi co, ele vai ser regulado pelo Estado. Haverá mais garantias e controle. Eu diria que o sistema anterior era muito mais liberal, já que o mercado estava nas mãos do capital privado, que lucra e promove o consumo da droga.”
A maconha uruguaia será vendida em farmácias só para cidadãos uruguaios maiores de 18 anos, que serão registrados em um banco de dados. A quantidade máxima é 40 gramas por mês. Também será permitido o plantio individual de até seis pés de cannabis e
a associação em clubes de fumo. Esses grupos devem ter entre 15 e 45 membros e poderão cultivar por ano até 99 plantas.
O governo acredita que dessa forma terá um contato mais direto com o usuário, fundamental para traçar políticas de saúde mais efi cazes, e poderá oferecer uma droga de melhor qualidade do que a comercializada atualmente. Mais importante, pretende quebrar o vínculo entre o consumidor de maconha e o trafi cante, que costuma ser o elo entre drogas mais pesadas.
Diferentemente do que aconteceu nos EUA, onde 55% da população manifestou apoio à regulamentação em um plebiscito realizado em janeiro, no Uruguai 58% da sociedade não aprova a lei. Mas isso não abala a crença do atual presidente e seus aliados. Não há como prever se o projeto dará certo, mas para o governo uruguaio não faz mais sentido continuar trilhando o caminho da repressão.
Nova economia
O modelo de mercado livre adotado pelos Estados de Washington e do Colorado traz um desafio inédito. Lá, o processo de produção, distribuição e venda de maconha precisa ser licenciado pelo governo estadual, mas ficará na mão da iniciativa privada. Os empresários da cannabis terão de pagar impostos altos que serão revertidos para programas de prevenção e tratamento de drogas.
Os críticos temem que, na prática, a livre concorrência possa estimular o consumo. “É melhor do que a proibição, mas haverá sofrimentos desnecessários”, alerta Mark Kleiman, professor de políticas públicas da Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Kleiman coordenou uma consultoria para mapear o uso da droga no Estado, e não vê vantagem em substituir um mercado ilegal por um mercado privado. “Os interesses que você cria estabelecendo um modelo de comércio livre são contrários aos interesses do sistema de saúde. É melhor ter esse tipo de produção controlado pelo Estado, que pode estabelecer um preço alto o sufi ciente para afastar menores de idade e usuários crônicos. Também pode proibir a publicidade”, diz.
A lei de Washington não permite a veiculação de anúncios voltados ao público menor de 21 anos, porém a garantia constitucional de liberdade de expressão comercial cria uma brecha para as lojas licenciadas fazerem propaganda.
Brian Smith, porta-voz do departamento de controle de bebidas do Estado de Washington, responsável pelo cumprimento da Lei I-502 que estabeleceu as regras da regulamentação, confia no bom funcionamento do modelo. “O sistema vai ser estritamente regulado e haverá controle em tudo, desde o plantio até a venda”, garante.
A proibição da cannabis em nível federal faz a possibilidade do surgimento de uma economia da maconha ser vista com descrença por muitos. Por enquanto, há certa insegurança entre os investidores. As empresas com negócios no setor têm contas bancárias frequentemente bloqueadas. Mas já é possível falar em uma indústria da cannabis. “Nos EUA, considerando o mercado ilegal, o medicinal e o emergente, a fatia da cannabis está crescendo. Já está a caminho de ser maior que a do milho”, diz Christian Groh, chefe de operações da Privateer, um guia de serviços e produtos da erva no país.