01/11/2008 - 0:00
Quando sofremos pequenos cortes, em geral basta lavar o ferimento com água e sabão – as defesas do corpo cuidam do resto. Com a natureza costuma ocorrer um processo parecido: sua extraordinária capacidade de re- Qgeneração faz com que, mais cedo ou mais tarde, seus machucados cicatrizem e tudo volte ao normal.
Será que o princípio também funciona para as agressões provocadas pelo homem? Apesar da capacidade adquirida por nossa raça de poder destruir o planeta que a abriga e do uso irresponsável que ela faz dos recursos naturais, os exemplos disponíveis nos mostram que a Terra resiste a ataques pesadíssimos dos seus filhos mais ingratos. Esses exemplos estão em lugares dos quais o homem, depois de destruir, se afastou por completo, ou quase isso. Uma visita a eles revela santuários ecológicos de impressionante riqueza.
Um deles está numa das regiões mais perigosas do globo – a zona desmilitarizada que desde 1953 foi implantada entre as duas Coréias. É um cenário e tanto: 1 milhão de soldados norte-coreanos e 600 mil militares sul-coreanos (estes últimos ao lado de 28 mil capacetes-azuis das Nações Unidas) vigiam-se separados por uma faixa de terra de quase 4 quilômetros de largura e 250 quilômetros de comprimento. Essa área, repleta de minas terrestres e armadilhas antitanques, é o símbolo vivo da guerra entre os dois países (1950-1953), na qual se estima que 4 milhões de homens tenham sido mortos ou feridos. Como as hostilidades entre os inimigos diminuíram muito nos últimos tempos, uma pequena (e segura) parte do território do lado sul-coreano, em Panmunjon, foi aberta à visitação de turistas estrangeiros.
A área hoje desmilitarizada foi cultivada por agricultores ao longo de aproximadamente 5 mil anos. Mais de cinco décadas depois de ser isolada, porém, ela já não mostra sinais de interferência humana. Com isso, fauna e flora prosperaram de forma exuberante. Densas florestas ocupam as encostas das montanhas a leste, enquanto arbustos e grossas gramíneas cobrem as áreas a oeste. Animais em risco de extinção, como o ursotibetano, o leopardo-asiático e o tigre-deamur, passeiam por aquelas terras. Vários pássaros migratórios, como o grou-denuca- branca, o grou-de-coroa-vermelha e o colhereiro-de-cara-vermelha, têm bases na zona desmilitarizada. Segundo ambientalistas, a região abriga hoje mais de 1.100 espécies de plantas e mamíferos.
Curiosamente, esse espetáculo está ameaçado pela paz. A aproximação diplomática entre as Coréias do Norte e do Sul pode intensificar o aproveitamento econômico da área, com as conseqüências imagináveis. O desflorestamento ao norte da zona desmilitarizada, por exemplo, já causa inundações. Um complexo industrial foi construído em 2004 em Gaeseong, nove quilômetros ao norte, e nada impede que outras iniciativas do gênero sejam erguidas nas proximidades.
Depois de mais de 50 anos de isolamento, a zona desmilitarizada entre as duas Coréias abriga hoje mais de 1.100
espécies de plantas e mamíferos
Revoada de patos selvagens no céu da Coréia do Sul. Essas aves migratórias estão entre as que voltaram a formar colônias na zona desmilitarizada depois que a área deixou de ter presença humana.
A saída pode estar nos esforços de Ke Chung Kim, curador e diretor do centro de pesquisa da biodiversidade da Universidade Estadual da Pensilvânia (Estados Unidos) e fundador do DMZ (sigla em inglês de zona desmilitarizada) Forum. Ele busca convencer os governos das duas Coréias a preservar – com o apoio da Unesco – a zona desmilitarizada como um dos sítios do Patrimônio Mundial. A empreitada não é fácil, disse Kim ao jornal inglês The Guardian, mas seu êxito ainda não pode ser descartado.
A POLÍTICA não representa empecilho no caso da Ilha Christmas (também conhecida como Kirimati), cujas agressões humanas foram bem maiores do que as sofridas pela zona desmilitarizada coreana. Maior ilha de coral do mundo, esse pedaço de terra de 321 km2 no Oceano Pacífico – antiga possessão do Reino Unido que em 1979 passou a integrar um novo país, Kiribati – e a vizinha Ilha Malden foram palco, entre 1957 e 1962, de 30 testes nucleares conduzidos por militares britânicos e norte-americanos. As experiências variaram da detonação, sobre a ilha, de uma bomba de 24 quilotons colocada num balão, à explosão de um artefato de 3 mil quilotons a 2.700 metros acima do mar (como referência, a bomba jogada sobre Hiroshima era de 15 quilotons). Levados para um navio militar ao largo da costa, os moradores locais foram espectadores privilegiados desses ensaios de Juízo Final.
A ilha poderia ter sofrido ainda mais, não fosse o Tratado de Interdição Parcial de Testes, assinado por todas as potências nucleares (e vários países não-nucleares) em 1963. Na primeira metade da década seguinte, o governo britânico decidiu investigar se havia indícios de radiatividade no local e, em caso afirmativo, o que deveria ser feito – um estudo que os norte-americanos refizeram em 1975. Os resultados foram sempre negativos. O que as pesquisas flagraram foi um enorme volume de lixo, desde veículos abandonados até tambores estragados pela umidade. Numa operação de limpeza concluída em maio, o governo britânico enviou quase 23 mil metros cúbicos de detritos para seu território.
As condições meteorológicas da região favoreceram Christmas em termos de radiação – os ventos carregam as partículas radiativas para o oceano, no qual elas se diluem rapidamente. O passado nuclear e a ausência dos atrativos cênicos de um Taiti, porém, ajudaram a manter sua economia frágil, baseada em ajuda internacional, exportação de peixes tropicais e um escasso movimento turístico.
Mas a maior parte desse fluxo de turistas vai até lá por uma evidência de riqueza ambiental, assinala David Wolman na revista eletrônica Salon: Christmas atrai pescadores esportivos por abrigar o maior reduto mundial do ubarana-rato, um peixe furtivo e velocíssimo que gosta das águas rasas da sua laguna. Além deles, visitantes com interesses distantes das varas de pesca têm se impressionado com a variedade de pássaros, como os raros petrel-fênix e mergulhão-de-patavermelha, a bela fauna marinha e o excelente estado dos recifes.
OUTROS PONTOS do Pacífico que abrigaram testes nucleares não tiveram a mesma sorte de Christmas e permaneceram por décadas contaminados pela radiatividade, mas os prejuízos estão diminuindo a olhos vistos. O atol de Bikini – palco de explosões a cargo dos norteamericanos nos anos 1940 e 1950, com direito a chuva radiativa e desaparecimento de três ilhotas – voltou a receber turistas na década passada, e uma pesquisa feita recentemente por biólogos marinhos numa cratera (aberta pela explosão de uma bomba mil vezes mais potente que a jogada em Hiroshima) revelou que a laguna já está 80% coberta por corais em visível processo de crescimento.
Mergulhadora desfruta das maravilhas submarinas do atol de Bikini, palco de explosões nucleares nas décadas de 1940 e 1950.
Removidos de sua terra, assim como os moradores de Bikini, habitantes de um atol da mesma região, Rongelap – também sede de testes nucleares –, e seus descendentes já convivem com a expectativa de voltar: há um plano de reassentamento de US$ 45 milhões em execução, assinado em 1996 pelo Departamento do Interior norte-americano e pelo governo da República das Ilhas Marshall, que hoje administra a região. Ainda existe uma pendência considerável entre os líderes marshalenses e os norte-americanos. Os primeiros querem que os EUA dêem mais dinheiro e assistência médica para os casos de câncer e os danos derivados dos anos de testes nucleares. Os EUA, por seu lado, afirmam que a quantia já ressarcida às Ilhas Marshall daria conta de todos esses gastos e avaliações feitas por cientistas do governo e independentes não registram sinais de radiatividade no atol. Discussões à parte, os rongelapenses já prevêem seu retorno à terra natal para um “futuro próximo” – quando, enfim, o pesadelo ambiental provocado pelo homem na região será apenas mais uma página da história.