A versão digital da boa e velha vaquinha promete uma revolução colaborativa.

Primeiro, Thiago Mundano pediu autorização a um morador de rua para grafitar a ponte debaixo da qual ele tinha se instalado. Terminado o trabalho, perguntou se podia pintar também a sua “carroça”, usada para recolher material reciclável pela cidade. “Vi que mexi com a autoestima daquele catador de lixo”, conta. A experiência, vivida em 2007, levou o grafiteiro a pintar outras 120 carroças nos cinco anos seguintes. Hoje, os contemplados pelo projeto “Pimp my carroça” contam que são mais respeitados nas ruas.

Diante dos primeiros resultados, o artista decidiu difundir a ideia, mas sabia que não ia conseguir patrocínio de empresas ou apoio do governo. A solução encontrada foi usar uma plataforma de financiamento coletivo (o crowdfunding). A versão digital da velha e boa “vaquinha” permite a qualquer um com uma ideia na cabeça e um mouse na mão captar recursos, por meio de doações via internet, para concretizar um projeto. O sistema de micromecenato, que possui enorme potencial transformador quando possibilita a realização de projetos autorais – como lançamentos de CDs, produção de peças teatrais, viagens de estudo, etc. –, é mais poderoso quando aplicado para fins sociais. Por meio da campanha, além de captar dinheiro, Mundano consegue engajar as pessoas numa causa. “Isso tem um valor inestimável”, afirma.

Com os R$ 100 mil levantados, em 2012 e 2013 foram realizadas três edições do “Pimp my carroça”, no Rio de Janeiro, em São Paulo e Curitiba. Nesse evento de um dia, os catadores recebem um reforma geral no veículo e na autoestima. “Não estamos maquiando. Estamos escancarando o problema e dando voz à categoria”, argumenta Mundano. A partir de julho, um canal especial foi aberto dentro do Catarse, a maior plataforma de crowdfunding do Brasil, para pulverizar novas ações por todo o país. Será possível financiar “miniedições” ou “adotar” um catador. Para o grafiteiro, agora o Pimp já não é mais um projeto, é um movimento. “O crowdfunding empodera as comunidades a financiar projetos que atendam suas necessidades. Cria um valor coletivo”, define o catalão Albert Cañigueral, fundador do portal ConsumoColaborativo.com, uma referência no assunto. A crise financeira mundial de 2008 foi um catalisador da adoção da economia colaborativa, segundo Cañigueral, porque fez as pessoas repensarem a vida. Mas a mudança cultural dos últimos 15 anos, com as tecnologias digitais, foi potencializada pela conexão móvel. 

Segundo o levantamento e Crowdfunding Industry Report, publicado em 2013, as plataformas de financiamento colaborativo arrecadaram US$ 5,1 bilhões no mundo em 2012. O que significou um aumento de 81% em relação ao ano anterior, que movimentou US$ 2,7 bilhões. Os Estados Unidos representaram cerca de 60% desse total, a Europa contribuiu com 35% e a América do Sul por módicos 3%.

Na visão de Tomás de Lara, empreendedor social e “netweaver” (articulador de redes de negócios), no Brasil uma das principais travas para o crowdfunding ainda é a desconfiança em usar o cartão de crédito na internet, principalmente, entre pessoas de renda mais alta e não nativos digitais. “Além disso, não existe uma cultura de filantropia no Brasil, como nos Estados Unidos”, complementa.

Microfilantropia

Quem já tentou se locomover de ônibus pelas cidades brasileiras sabe a dificuldade que é descobrir quais linhas passam por onde. Como a administração pública não dá conta do recado, o coletivo Shoot the Shit, de Porto Alegre, criou o adesivo interativo “Que ônibus passa aqui?”. A campanha, aberta em 2012, visava arrecadar R$ 600 para imprimir o material. 

“Antes mesmo de conseguir esse valor, a prefeitura entrou em contato com a gente, perguntando se queríamos fazer juntos”, conta Luciano Braga, um dos líderes da campanha, que chegou a se reunir com a Secretaria de Transporte do município. Cerca de 50 adesivos depois, ao ver que a maioria tinha sido vandalizado, a prefeitura desembarcou do projeto. Mas o coletivo não desistiu. Neste ano, abriu uma nova campanha: quem doou ganhou um pacote de adesivos para espalhar pelo país afora. Participaram 92 pessoas e foram recolhidos R$ 2.165, muito além dos R$ 600 pedidos.

Outro exemplo de iniciativa vitoriosa é a campanha pela conscientização do uso da maconha medicinal. As recompensas oferecidas aos doadores também foram pensadas para ajudar a multiplicar a  ação. Folhetos, pôsteres, cartilhas, xícaras e camisetas da campanha foram enviados a quem contribuiu para a criação do site Repense, peça principal da divulgação sobre os benefícios dos derivados da Cannabis sativa para a saúde. “Queremos tirar o assunto do tabu, por isso não pensamos em financiamento, pensamos em engajamento”, explica Tarso Araujo, jornalista e autor do livro Almanaque das Drogas, que lidera o projeto. 

Uma série de ações foi planejada para colocar o tema na pauta nacional. Primeiro foi lançado o curta Ilegal, que conta a história de Anny Fischer, de 5 anos, que sofria com convulsões diárias por conta de uma síndrome rara, a CDKL5. Na busca por tratamento, Katiele e Norberto, pais da menina, descobriram que o uso do canabidiol (CBD) dava ótimos resultados e passaram a importar o produto ilegalmente. Logo que o curta foi lançado, em maio, a história virou capa na revista ISTO É e reportagem no Fantástico. Na sequência, a campanha do Repense entrou no ar e o advogado da família Fischer apresentou à justiça pedido de liberação da importação da substância 

Tudo isso fez com que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) debatesse a questão. Na sua próxima reunião, em agosto, o órgão vai decidir se o canabidiol será tirado da lista negra e poderá ser prescrito por médicos. “Diante de uma situação de injustiça, as pessoas se indignam, e desejam ajudar e mudar aquilo”, descreve Araujo. 

Macrotransformação

Embora tenham cunho social, as iniciativas descritas acima foram realizadas em uma plataforma que comporta todo tipo de campanha, o Catarse. Assim como ele, Startando, Benfeitoria, Vakinha, Kickante e Mobilize atuam em todas as frentes. Mas já surgiram plataformas especializadas no mercado nacional, como o SalveSport, dedicado ao esporte, o Juntos.com.vc, exclusivo para projetos com impacto no coletivo, e O Formigueiro, voltado à educação.  

Este último inspira-se no fenômeno do DonorsChoose.com nos Estados Unidos, que nos últimos 13 anos movimentou US$ 225 milhões que financiaram mais de 400 mil projetos criados por professores da rede pública de ensino norteamericana. Sem a mesma pretensão, com os fundos levantados por meio d’O Formigueiro, as crianças e jovens da comunidade carente do Meio da Serra (Petrópoobter lis, RJ) começaram, este ano, aulas de robótica. “Escolhemos a robótica porque abrange várias matérias da grade escolar, mas envolve também criatividade e mexe com os sonhos das novas gerações”, explica Anderson de Carvalho Lima, um dos coordenadores dos projetos da Associação Solidariedade em Marcha (Somar). 

Lima comemora a agilidade da vaquinha virtual, que em 60 dias já dá resultado. “É ótimo para projetos pontuais, mas não serve para tudo.” A entidade trabalha com diferentes fontes de financiamento. Os gastos fixos com salários, por exemplo, são cobertos por doação de empresas e grandes volumes de recursos são obtidos por meio do Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (Funcria). Essas formas tradicionais, por sua vez, demandam tempo – às vezes anos – com questões burocráticas prévias e muito mais prestação de contas.

“Por ser voltado para projetos pontuais, o crowdfunding mostra com maior transparência onde o dinheiro será gasto”, nota Ariel Tomaspolski, cofundador do Juntos.com.vc, que não cobra taxa sobre o que é arrecadado e oferece consultoria para quem busca financiamento. Outro fator de transparência é que a sociedade acompanha em tempo real como a arrecadação está evoluindo. “E o prazo fi xo gera urgência e apelo”, emenda. Os 75 projetos bem-sucedidos no site já arrecadaram mais de R$ 1,2 milhão e representam uma taxa de sucesso de 85%, bem acima da média nacional. O Juntos.com.vc recebeu recentemente o Prêmio Desafi o de Impacto Social, do Google, R$ 500 mil e uma consultoria de negócios.

Microbanqueiros

Essencialmente, há quatro modelos de crowdfunding: de recompensa, de donativos, de empréstimo (entre pessoas ou entre pessoas e empresas) e o equity. Nos primeiros modelos, financia-se o projeto sem receber nada em troca (por doações), ou recebendo um produto fruto do projeto ou relacionado a ele (como recompensa). Cada plataforma define se a arrecadação precisa alcançar um valor mínimo ou se qualquer quantia reunida é transferida à iniciativa. 

Os dois primeiros modelos são os mais conhecidos e praticados no Brasil. Mas os outros dois prometem uma revolução na economia como conhecemos hoje. No empréstimo P2P (peer-to-peer, ou pessoa a pessoa) um negócio pede crédito e a recompensa daquele que quiser investir no negócio será o lucro obtido, o que permite a qualquer um virar quase um microbanqueiro. O Banco Central barrou esse tipo de plataforma, por motivos de regulação. 

Já o equity se aproxima mais de uma bolsa de valores. O empreendedor que precisa de dinheiro lança ações do seu negócio na plataforma e os interessados dão cotas para se tornarem acionistas. A recémformada Associação Nacional dos Administradores de Plataformas de Investimento Colaborativo (Anapic) se propõe a autorregular esse mercado. Para Adolfo Melito, líder da entidade, o Brasil seria um dos lugares mais acertados para isso funcionar. “Não existe país no mundo onde seja mais difícil ter acesso ao mercado financeiro, com custos tão altos e tão poucos investidores em negócios nascentes, micro e pequenas empresas”, analisa Melito.

“Se pensarmos que as empresas de negócios sociais são as que têm mais dificuldade de obter empréstimo em banco e de captar investimentos financeiros, por terem uma natureza mais inovadora e de maior risco, estes modelos prometem uma inovação e tanto”, amarra Tomás de Lara.