Foram longos e sombrios 74 anos. Entre 1922 e 1996, em nome de um ideal católico-nacionalista de família “apropriada”, mais de 10 mil mulheres irlandesas, cujo comportamento era considerado imoral pelos padrões da sociedade à época, foram internadas à força e trabalharam gratuitamente nas “Lavanderias de Maria Madalena”, controladas e exploradas comercialmente por conventos católicos.

Enviadas pelas famílias ou por orfanatos, as moças não tinham autorização para sair do convento e eram obrigadas a trabalhar, sem qualquer tipo de remuneração, para expiar os pecados de ser mãe solteira, ser muito bonita, muito feia ou ter sofrido violação. Algumas eram detidas e enviadas para as lavanderias pelos Tribunais de Pequenos Delitos, como uma alternativa à pena de prisão, porém sem data de término. Por vezes, passavam fome e eram vítimas de castigos físicos, humilhações e violência física e mental.

As grávidas solteiras eram encaminhadas às chamadas Casas de Mãe e Bebê, sob a administração igualmente dura das ordens religiosas. Diferentemente das lavanderias, que eram um negócio lucrativo para os conventos, essas instituições eram reguladas e fi nanciadas pelo Estado irlandês. Lá, pelas mãos das freiras, as moças davam à luz fi lhos de parto natural, sem alternativas em caso de complicações. Muitas morriam no parto, com os seus bebês.

As sobreviventes eram obrigadas a assinar um termo no qual concordavam em colocar os filhos para adoção quando completassem 2 anos de idade. Muitas mulheres que perderam os filhos nas Casas de Mãe e Bebê foram posteriormente enviadas às lavanderias para prosseguir em penitência, especialmente se suas famílias, motivadas pela vergonha, não as quisessem de volta, ou se fossem consideradas “reincidentes”. 

O livro The Lost Child of Philomena Lee, de Martin Sixsmith (2009), relata o drama real de uma dessas mães solteiras que perdeu o filho para um casal norte-americano e sua busca, anos depois. O livro foi posteriormente transformado no filme Philomena (2013), com a atriz Judi Dench no papel principal. Assim como o filho de Philomena, muitas crianças foram enviadas para os EUA, cerca de 2 mil, entre as décadas de 1940 e 1970. Esse êxodo infantil foi sancionado pelo Estado, mas as adoções foram deliberadamente omitidas do Registro das Crianças Adotadas e isentas de supervisão. “O Estado usou a Igreja para prestar um serviço social em seu nome”, resume o jornalista Conall Ó Fátharta, do jornal Irish Examiner, que investigou o assunto. 

Alta mortalidade

Em junho de 2014, após uma longa pesquisa nos arquivos da instituição, a historiadora Catherine Corless descobriu 796 bebês mortos no convento em Tuam, das irmãs Bon Secours. A alta taxa de mortalidade era uma constante em todas as Casas de Mãe e Bebê e também na Irlanda. Relatórios do governo mostram que a estatística entre as crianças “ilegítimas” chegou a ser cinco vezes maior do que a taxa de mortalidade de recémnascidos dentro do casamento.

Na Casa de Mãe e Bebê de Pelletstown, em Dublin, dirigida pelas Irmãs da Caridade de São Vicente de Paulo, 119 das 240 crianças abrigadas morreram em 1925, oficialmente devido a uma epidemia de sarampo. Dois anos depois, das 263 crianças na instituição, 111 morreram. Nenhuma justifi cativa foi dada para essas mortes. Em dados gerais, entre 1924 e 1930, 662 crianças morreram no abrigo de Pelletstown, uma média de 94 mortes por ano. Esse é, de longe, um dado mais grave do que o das mortes acontecidas em Tuam entre 1925 e 1960 (cuja média anual foi de 22). 

Entre 1932 e 1941, também foi registrado um considerável número de mortes de bebês e crianças nas três casas regidas pelas Irmãs do Sagrado Coração de Jesus e Maria. Em Sean Ross Abbey, em Roscrea, foram 419 mortes, na Sacred Heart Home, em Bessborough, foram 238 e na Manor House, em Castlepollard, 69 mortes. Conforme investigação da Comissão de Inquérito sobre Abuso de Criança (Cica), testes de vacinas experimentais podem ter sido uma das causas de tão alta mortalidade. 

Aliança indesejável

Numa sociedade conservadora, pobre e fervorosamente católica, onde até recentemente havia escolas separadas para meninos e meninas, é preciso voltar no tempo e aos anos 1920 para entender como uma instituição religiosa foi capaz de ganhar poder a ponto de deliberar sobre a vida das pessoas. A propósito, o filósofo irlandês Edmund Burke disse uma frase famosa: “Quanto maior o poder, mais perigoso é o abuso.” 

No final do século XIX, o cenário era de dominação inglesa. O irlandês cumpria o papel de trabalhador do campo mal remunerado e o inglês, o de dono de grandes propriedades rurais, cujo lucro era remetido para a Inglaterra. Restavam aos camponeses pequenas porções de terra para plantio de um produto que garantiria o sustento de toda a família: a batata. Então, entre 1845 e 1849, veio a praga da batata, a Phytophthora infestans, que arrasou plantações em larga escala e forçou 1 milhão de irlandeses a abandonar o país, matando outro milhão de fome. Esse episódio, conhecido como “A Grande Fome”, é um marco na história da Irlanda. 

No livro Ireland’s Magdalen Laundries and the Nation’s Architecture of Containment, o professor James M. Smith contextualizou o episódio. “A crescente força da Igreja Católica alcançou novos níveis de autoridade cultural nas décadas pós-Grande Fome, assim como o pároco assumiu uma infl uência dominante na vida social irlandesa. A Igreja começou a defi nir novos padrões morais e práticas domésticas que, por sua vez, resultaram em uma nova ênfase sobre o valor da modéstia e da respeitabilidade das mulheres.” 

Na prática, diz Smith, a Igreja não apenas ganhou o controle das mulheres, mas o isolamento delas dentro da esfera doméstica, especialmente das mães, obrigando- as a se render ao controle do sacerdote e aliar-se à Igreja. Para obter e manter poder moral, as mulheres precisavam reter sua virtude e castidade. “Essa foi a mensagem que as mães começaram a passar para suas filhas. Dentro da diferenciação racional das esferas de responsabilidade moral, a castidade e a modéstia se tornaram objetivos específi cos para as mulheres”, afirma o professor. 

Outro autor que escreveu sobre o assunto, e um dos sobreviventes do drama, é John Pascal Rodgers, autor do livro For the Love of My Mother. Sua mãe, Bridget Rodgers, foi presa por mendicância na capital irlandesa, Dublin, em 1924, com apenas 2 anos. Passou 30 anos em orfanatos, escolas industriais (onde foi violentada) e conventos. John nasceu em Tuam, em 1947, fruto de uma relação ilegítima, e foi separado da mãe quando ainda tinha 1 ano. Em 1948, Bridget fugiu do convento para a Inglaterra, onde acabaria se casando de novo e, mais tarde, reencontrando o fi lho. Morreu em 2002, com 73 anos. “Minha mãe sempre dizia que sua vida daria um grande livro, mas me fez prometer que não escreveria nada enquanto vivesse”, conta o escritor. “Ela tinha muita vergonha do seu passado.” 

Hoje, as sobreviventes das Lavanderias de Maria Madalena e seus descendentes lutam por retratação e por algum tipo de compensação dos maiores responsáveis, o Estado e a Igreja Católica. Um regime de compensação está sendo desenvolvido, mas, apesar de três pedidos formais do governo irlandês, as quatro ordens religiosas envolvidas até agora se recusaram tanto a retratar-se como a participar da compensação proposta pelo governo. 

“Fiquei muito chocado ao saber do número de crianças enterradas no cemitério em Tuam”, disse o arcebispo da cidade, Michael Neary. “Mas posso assegurar que as irmãs Bon Secours sempre agiram no interesse do bem comum.” “Desculpas pelo quê?”, perguntou uma freira anônima e emocionada ao jornal WeNews. “Muitas dessas mulheres passavam por necessidades terríveis. Elas estavam na rua, sem assistência social e morrendo de fome. Olhamos com os olhos de hoje uma época totalmente diferente, a do Estado de Não Providência. As ordens religiosas envolvidas tentaram responder a uma necessidade social. Nós prestamos um serviço ao país!” 

Por sua vez, as mães procedentes das Casas de Mãe e Bebê buscam cada vez mais trazer à luz o que se passava nos conventos. Em jogo, estão as mortes de recémnascidos, os testes médicos com vacinas em crianças e as adoções forçadas e ilegais. Em julho passado, após o escândalo de Tuam, o recém-nomeado ministro da Infância, Charlie Flanagan, falou com entusiasmo sobre a necessidade de um inquérito amplo, com um plano de ação a ser anunciado imediatamente. 

Entretanto, Flanagan foi transferido para o Ministério dos Negócios Estrangeiros e houve um atraso no anúncio do plano, coincidindo com o relatório interdepartamental das Casas de Mãe e Bebê. Ativistas apontam para a fraqueza do relatório, juntamente com o atraso no plano de ação, como um sinal de que o governo irlandês pretende limitar o âmbito do inquérito. Essa é uma história que está só começando a vir à tona. 

 

Mãe e filha

mary Steed nasceu na casa de mãe e Bebê em Bessborough, cork, regida pelas irmãs do Sagrado coração de Jesus e maria. Ela conta a história da mãe, Josephine, que, nascida fora do casamento, foi enviada a uma escola industrial, também dirigida por freiras. aos 14 anos, assim como outras meninas da mesma idade e situação, ela foi transferida para a lavanderia em Bessborough e lá permaneceu por dez anos. Então, obteve a permissão das freiras para trabalhar num hospital em dublin, administrado por outra congregação, as irmãs Bon Secours. no hospital, Josephine conheceu o pai de mary, se apaixonou, fi cou grávida e foi devolvida a cork, onde deu à luz mary, em 1960. dois anos depois, no momento em que mary era adotada por um casal de americanos, a mãe se viu obrigada a voltar à avanderia. Só se reencontraram em 2002. 

 

A sobrevivente

aos 83 anos de idade, mary merritt é uma sobrevivente das casas de mãe e Bebê e das lavanderias. nascida de mãe solteira, acabou em uma lavanderia depois de anos em uma escola industrial, ambas dirigidas por freiras. “Eu estava em um dos orfanatos que eles chamavam de ‘escolas industriais’. Estava com tanta fome que roubei algumas maçãs do pomar. as freiras, então, disseram que tinham uma ‘solução’ para mim e me mandaram para a lavanderia em High Park, em dublin. Eu teria de fi car lá até “aprender a não roubar”. fui mantida como trabalhadora não remunerada por 14 anos, uma pena que hoje não se recebe nem por assassinato.” Segundo mary, o trabalho era difícil e o regime tão cruel que ela acabou quebrando uma janela e fugindo para a cidade, onde pediu ajuda a um padre, que a stuprou. as freiras não acreditaram quando ela foi presa pela polícia e devolvida à lavanderia. colocaram-na numa cela de dois metros quadrados sem janelas. “uma das freiras desceu lá e tosou meu cabelo. depois, fui levada para cima e obrigada a ajoelhar-me diante das mulheres presentes, beijar o chão e dizer que estava arrependida.”