06/01/2015 - 15:20
Vitor Pordeus é ator, psiquiatra e discípulo da médica Nise da Silveira, que revolucionou a psiquiatria brasileira na década de 1940, no Rio de Janeiro, utilizando a arte como forma de tratamento de doentes mentais. Também é um dos criadores do “Hotel da Loucura”, um centro cultural composto por pacientes, médicos, artistas, educadores e profi ssionais da área da saúde que busca fortalecer a luta antimanicomial, além de fundador da Universidade Popular de Arte e Ciência (Upac), que, desde 2010, se dedica a articular iniciativas ligadas às duas áreas. Em setembro de 2014, mais de 500 pessoas participaram do IV Congresso da Upac, durante sete dias, no Rio.
Instalado em dois andares desativados do Instituto Nise da Silveira, ex-Centro Psiquiátrico Pedro II, no bairro da Urca, no Rio de Janeiro, o Hotel da Loucura funciona cada vez mais como um polo irradiador de ideias que desafi am os paradigmas da psiquiatria tradicional pautada pela indústria farmacêutica. “Inventa-se a doença para vender remédios”, diz o médico visionário de 34 anos que aposta na arte como instrumento para sanar um dos grandes enigmas da humanidade – as doenças mentais.
Qual a origem do movimento que une arte, psiquiatria, medicina e teatro?
Estamos continuando o que foi iniciado por uma das maiores psiquiatras da historia, a doutora Nise da Silveira, que em 1946 inaugurou o Museu do Inconsciente e iniciou a maior experiência da psiquiatria brasileira, na qual se buscava a cura através da arte. O Museu reuniu um acervo técnico de cerca de 350 mil obras, entre pinturas, desenhos, esculturas. No nosso caso, o ponto de partida foi o teatro, no ano de 2007, quando se formou um grupo chamado Laboratório Tupinagô, no Rio de Janeiro, que já se articulava em torno da conexão arte-saúde. Sou formado em medicina, mas vinha acumulando uma série de decepções em minha área, com a forma como ela é exercida, sempre calcada na indústria farmacêutica e na venda de remédios. Isso me levou a estudar teatro e a buscar alternativas. Já tinha feito teatro no bairro de Realengo, no Rio, onde nasci. Em 2007, nosso grupo faz sua primeira ação, num curso de pós-graduação da Fundação Oswaldo Cruz, que se chamou Visita à Imunologia, organizado pelo médico imunologista Nelson Vaz, meu grande mestre e outra grande inspiração do meu trabalho. Em 2008, o então secretário municipal de Saúde do Rio de Janeiro, Hans Fernando Dohmann, que havia acompanhado minha conversão de médico para ator, me convidou para criar o Núcleo de Cultura, Ciência e Saúde da secretaria. A partir da necessidade de articular diversas iniciativas ligadas à arte e à ciência, no Brasil, surgiu a Universidade Popular de Arte e Cultura e, mais tarde, o Hotel da Loucura, além de outras ações.
Como surgiu o Hotel da Loucura?
Em 2011, realizamos o primeiro congresso da Upac, no Teatro Carlos Gomes, com 650 participantes, incluindo atores e atrizes do Brasil inteiro. Nelson Vaz veio e deu aula e o ator e diretor de teatro Amir Haddad também. Com o sucesso, resolvemos montar outro espetáculo e pensamos no próximo congresso, que aconteceria no ano seguinte. O local que nos pareceu mais interessante foi o Instituto Nise da Silveira, pois ali havia uma série de andares e ex-enfermarias que estavam vazias e havíamos conseguido autorização para ocupar, uma vez que o instituto é coordenado pela Secretaria Municipal de Saúde. Assim, no segundo Congresso, hospedamos 50 pesquisadores e atores no espaço que viria a ser o Hotel da Loucura, que virou um centro cultural e de hospedagem. Entramos no Nise, montamos o Hotel da Loucura e fizemos o espetáculo O Auto da Paixão da Doutora Nise da Silveira, que foi outro grande sucesso.
Como se consolidou a relação entre medicina e teatro?
Não é uma descoberta nossa. O teatro e a medicina são uma só coisa, parte da mesma tradição, em quase todas as sociedades do planeta. Se você olha para a cultura dos índios, teatro e medicina estão juntos. Se olha para a cultura tradicional africana ou para a cultura indiana, idem. A medicina é um ritual e o teatro é um ritual. Dionísio é o deus grego da loucura e do teatro. A associação do teatro com a medicina é inevitável, necessária e histórica. É claro que estamos falando do teatro público e não do teatro de palco, das celebridades.
No caso das peças montadas por vocês, o elenco é formado por pacientes e atores profissionais?
Sim. Queremos chegar ao entendimento de que todo ser humano é ator, e que o teatro verdadeiro trabalha sem estratificação, no espaço público, na perspectiva de que todo mundo pode atuar. As pessoas que estão passando na rua participam, o morador de rua participa e o curioso também. A peça interage com todos. É aí que os loucos institucionalizados entram com força total. Eles adoram o teatro. O psicótico, por exemplo, tem acesso facilitado ao teatro, tem uma manifestação teatral pura, limpa, claríssima, que libera as pessoas dessa ideia de tratamento. A ponto de já termos montado três peças, incluindo a última, uma adaptação de Hamlet, de Shakespeare, que intitulamos Loucura Sim, Mas Tem Seu Método.
Como surgiu a ideia dessa montagem?
Esse Hamlet fazia parte das performances que fazíamos dentro do Hotel da Loucura. A partir daí, fomos descobrindo que dava para desenrolar a discussão que Shakespeare propõe, que é o enlouquecimento de um príncipe que tem o pai assassinado, envolto em confl itos políticos e numa questão importante que é a poesia como a linguagem do delírio. O delírio tem linguagem poética, não linear, produtiva, criadora. Como disse, trabalhamos sem estratificação, em praça pública, pois a peça é apresentada toda quarta-feira no Arpoador, de graça, interpretada por atores e pacientes de todos os diagnósticos.
Você citou a doutora Nise da Silveira e o médico Nelson Vaz. Como um imunologista inspira a saúde mental?
O doutor Vaz trabalha com uma concepção revolucionária da imunologia, com um paradigma alternativo ao hegemônico, não só na imunologia, mas também na biologia. Ele abandona esse modelo competitivo que nos dá a ideia de que somos atacados por bactérias e por vírus o tempo todo. Ele nos coloca diante de uma transformação do conhecimento, indo além das práticas estabelecidas nos últimos 400 anos, com a introdução do pensamento científico cartesiano, que propõem o organismo como uma máquina, uma máquina cujas maiores ameaças são os vírus e outros organismos. Quando olhamos a biologia, vemos que há mais de 700 espécies de bactérias na nossa boca, mais de 2 milhões de bactérias por centímetro quadrado de pele, cerca de 100 trilhões de bactérias no nosso intestino, tudo incorporado ao nosso próprio funcionamento. Vamos perceber que essa história de que o mundo é agressivo é mentira. Estamos muito mais perto do conceito de ecossistema do que de uma luta entre seres vivos. Para o Vaz, o organismo é cooperativo, dependemos uns dos outros.
Você tem apresentado o Hotel da Loucura no exterior. Como é visto lá fora?
Como algo revolucionário, tal como as teses do Nelson Vaz. Apresentei nossas experiências na Universidade de Malta, na VI Conferência Internacional de Educação Popular, em Valeta, com grande aceitação. Apresentei na Universidade de Londres e na Universidade de Oxford, num seminário de estudos avançados de estética em psiquiatria, sempre bem recebido. Apresentei as narrativas, imagens e filmes. Temos um documentário em longa-metragem e mais de 100 curtasmetragens sobre o trabalho e as evoluções de cada paciente.
Você pode citar casos concretos de melhorias no quadro mental?
Sim, claro. Temos um bom exemplo que é o Reginaldo Terra, uma pessoa que viveu internada desde os 11 anos de idade, abandonado pela família, que passou a vida inteira em hospício, foi ao infernoe voltou. Hoje, ele ama o teatro e está envolvido totalmente. Ele talvez seja um dos nossos maiores exemplos de superação, pois sobreviveu a tudo isso e se tornou um grande ator. Está prestes a sair da residência terapêutica e se desvencilhar da medicação excessiva a que estava fadado, porque parte dos psiquiatras só sabe medicar e não acredita que o processo terapêutico seja psicossocial. As pessoas ficam dependendo apenas de curas farmacológicas, algo que só interessa à indústria farmacêutica. Nós temos casos de pacientes com doenças mentais graves, que você não via resultado em lugar nenhum, gente que estava abandonada dentro de hospício, que passou a trabalhar no teatro e melhorou sensivelmente, pois passou a controlar suas emoções de forma mais eficiente.
Quais são os próximos passos?
Vamos continuar trabalhando, formando pessoas e dando vazão às ideias e às lutas. Acreditamos que toda medicina tem que ser comunitária, assim como a cura. Ninguém adoece sozinho e ninguém secura sozinho. O processo tem que envolver a família, os vizinhos, a sociedade, trabalhar o organismo comunitário, o grupo. Também é preciso recuperar a ancestralidade, a memória da comunidade. Um dos problemas que enfrentamos é o poder da mídia, que esvazia o discurso coletivo. Uma parte do problema são vocês, jornalistas, que muitas vezes ajudam a vender a doença para que as pessoas comprem remédio, sempre cotados pela indústria farmacêutica. Nesse sentido, a luta parece ainda mais quixotesca por causa do aparelho de comunicação, que é poderoso. A surpresa é que, se você for olhar mais a fundo, vai ver que tem muita gente trabalhando com o coletivo, com a ancestralidade. Em 2014, o Congresso da Upac ocorreu durante sete dias, com 450 pessoas em média por dia, gente do Brasil inteiro, com 220 hóspedes no Hotel da Loucura. Além disso, fizemos espetáculo na Cinelândia, com 450 atores, contamos com a participação do José Pacheco, um dos maiores educadores vivos da atualidade. Paralelamente, ocorreu o 15o Encontro da Rede Brasileira de Teatro de Rua, entre muitas outras iniciativas. Isso nos faz perceber que há mais gente engajada nessa luta, que é uma luta política e científica, contra a medicina dominada pelo mercado, pela indústria farmacêutica e pelo lucro. É essa forma de opressão que tem enlouquecido o homem. Quem não cria está doente.