Uma manção de dois andares, rodeada rodeada por um jardim impecável, a 35 minutos de Londres, guarda a história de um dos mais febris centros da Segunda Guerra Mundial, onde 10 mil pessoas chegaram a trabalhar em três turnos, sem descanso, para quebrar o código da “Enigma”, a máquina de codificar mensagens dos alemães.

Mais de 70 anos depois, a mansão de Bletchley Park chama a atenção e conquista fãs no cinema com o filme O Jogo da Imitação, por ter encurtado a guerra mundial em pelo menos dois anos e ter sido o cenário da tragédia de um cientista injustiçado: o pioneiro da computação Alan Turing, morto no rastro de uma investigação preconceituosa sobre conduta homossexual.

Em 1938, antes mesmo da guerra começar, Bletchley Park virou o cérebro da inteligência britânica. O governo estava convencido de que o confronto era inevitável e decidiu se preparar. Sob a liderança do comandante Alastair Denniston, chefe da Escola Governamental de Código e Criptograma, também conhecida como Estação X, de 1919 até 1942, as autoridades começaram a recrutar uma elite de intelectuais e professores das universidades de Oxford e Cambridge – criptoanalistas, linguistas, matemáticos e campeões de xadrez – para interceptar e decodificar as mensagens alemãs. Denniston foi um dos três  oficiais britânicos a participar de um encontro secreto na floresta de Kabaty, perto de Varsóvia, semanas antes do início da guerra, quando os poloneses passaram aos britânicos e aos franceses as primeiras pistas da decifração da Enigma. 

Com o começo das operações de guerra, milhares de mensagens alemãs cifradas em código Morse passaram a ser enviadas diariamente a Bletchley Park. Em 1939, Alan Turing tinha 27 anos quando foi recrutado para quebrar o código da Enigma, protegido por milhões de permutações realizadas diariamente. Matemático famoso, aos 24 anos criara uma máquina formal capaz de realizar operações computacionais. Desenvolvera o  “Turing Test” para definir se um operador era capaz de diferenciar respostas a perguntas formuladas por um computador – uma das primeiras ferramentas de “inteligência artificial”.

Super temperamental, o jovem gênio mal conseguia tolerar seus colegas de trabalho, que incluíam o campeão de xadrez Hugh Alexander e o matemático Gordon Welchman. Por um bom tempo, nenhum progresso foi feito. Turing chegou a ser demitido pelos superiores, mas voltou a Bletchley Park com motivação redobrada depois que o próprio primeiro-ministro Winston Churchill decidiu dar seu apoio à construção da Bombe, uma complexa máquina eletromecânica, do tamanho de uma sala, capaz de acelerar a decifração das mensagens da Enigma. 

No início da guerra, 200 pessoas trabalhavam em Bletchley Park, mas as descobertas criptográficas gradualmente atraíram 10 mil funcionários, trabalhando em três turnos. Na década de 1940, sofisticados cálculos estatísticos e de probabilidade eram feitos à mão. Acelerar a decifração, reduzindo o número de possibilidades para cada letra de mensagem, era o desafio de Turing num momento em que a rapidez das informações significava ganhar batalhas e salvar vidas.

Os alemães confiavam que a Enigma jamais poderia ser decifrada, graças a seus três diferentes rotores de substituição polialfabética, cujas configurações, alteradas diariamente, permitiam 159 trilhões de combinações. A solução de Turing, aperfeiçoada por Welchman, foi construir uma máquina de 108 tambores, em que cada conjunto vertical de três tambores representava uma Enigma gerando o mesmo efeito de cifras do equipamento alemão. Cada tambor era configurado para alterações correspondentes a um menu escolhido, baseado em cálculos hipotéticos, estabelecendo 17.576 posições em 12 minutos. 

Assim, palavras constantes nas interceptações, como “mensagem nº X”, ajudavam os criptógrafos a descobrir qual era a cifra do Enigma naquele dia e a estabelecer o menu, alterando inúmeras vezes a posição dos tambores. Bastava que uma ou mais de milhares de posições se mostrasse dentro da lógica para que as configurações fossem consideradas. Os analistas, então, transcreviam a mensagem criptografada e a enviavam para a decodificadora Typex. Se estivessem corretos, aparecia um texto em alemão, imediatamente remetido para tradução e análise. 

A Bombe podia executar duas ou três tarefas simultaneamente, o que era crucial dada a pressa e as centenas de mensagens que chegavam a Bletchley Park. Boa parte da dedução requeria muito esforço intelectual. Sob sigilo e confinamento militar, a equipe trabalhava combinando lógica, matemática, linguística e intuição. 

Em 23 de janeiro de 1940, a primeira quebra do código da Enigma aconteceu, realizada por Turing e pelos matemáticos John Jeffreys e Peter Twinn. Em 1942, muitas Bombes já funcionavam na mansão para atender ao volume crescente de mensagens interceptadas.

A Enigma não foi a única máquina a ter seu código quebrado no centro. Ainda mais complexa, a codificadora Lorenz, usada pelo próprio Hitler e pelo Alto Comando nazista, também foi decodificada ali, em 1941, assim como a máquina Hagelin C-38, sueca, usada pela marinha italiana. 

Também foi em Bletchley Park que nasceu, pelas mãos de Tommy Flowers, em 1943, o Colossus, o primeiro computador inglês, que usava símbolos perfurados em fitas de papel, processadas à velocidade de  5 mil caracteres por segundo. Graças às mensagens decifradas e à localização de navios inimigos, os aliados venceram a Batalha do Atlântico, afundando muitos submarinos alemães. Posteriormente, Turing chegou a viajar aos Estados Unidos para participar de um projeto de transmissão segura de dados transatlânticos. 

Maçã envenenada

Homossexual assumido, em 1950 o cientista foi dolorosamente humilhado, acusado por “vícios impróprios”, e impedido de acompanhar estudos sobre computadores. Seu relacionamento com um jovem de 19 anos foi considerado atentado violento ao pudor e “crime de homossexualidade”, definido pela Seção 11 do Criminal Law Amendment Act de 1885 (revogado apenas em 1967). Para piorar, o namorado ajudara um cúmplice a assaltar a casa do próprio Turing. 

Para evitar a prisão, o pesquisador aceitou um acordo judicial e submeteu-se a um tratamento de castração química, ingerindo, durante um ano, pílulas de estrógeno para “suprimir a libido”. Um dos efeitos secundários da terapia foi o de lhe fazer crescer seios (ginecomastia). As conseqüências do tratamento foram devastadoras para Turing, tanto física quanto mentalmente. 

Em 8 de junho de 1954, um criado encontrou o cientista morto em sua casa em Wilmslow, em Cheshire. Tinha 42 anos. Uma maçã mordida jazia ao lado do corpo. Um exame post-mortem estabeleceu morte por envenenamento por cianeto. O veredito indicou suicídio, mas a conclusão nunca foi aceita pela mãe de Turing, que sempre acreditou num descuido do filho. Na época, ele estava interessado em experiências químicas na Universidade de Manchester, onde trabalhou nos últimos seis anos de vida. 

Na verdade, a maçã nunca foi examinada. Biógrafos do cientista sugeriram que o último ato do cientista sarcástico foi reproduzir uma cena do filme Branca de Neve, de 1937, seu conto de fadas favorito. “Ele sentia um prazer especialmente mordaz na cena em que a bruxa malvada mergulha a maçã na poção envenenada”, escreveu o jornalista inglês Roland Please. 

A cidade de Manchester foi a primeira a reparar a injustiça e a proclamar a importância da contribuição de Turing para a vitória aliada, ressaltando que a decodificação da Enigma encurtou a guerra com a Alemanha pelo menos em dois anos. Em 2012, no centenário do nascimento do cientista, a cidade lhe dedicou um memorial, instalado no Sackville Park, onde aparece representado em uma estátua, sentado num banco junto à Canal Street, com uma maçã na mão – não por acaso, a área gay de Manchester. 

Um ano depois dessa homenagem, no rastro de um abaixoassinado feito por 34 mil intelectuais e um pedido de desculpas oficiais do exprimeiro- ministro Gordon Brown, a rainha Elizabeth assinou, em 24 de dezembro de 2013, um “Perdão Real” póstumo. 

Legalmente, o perdão não tem valor. Mas honra o gênio da matemática que, com seu trabalho patriótico, ajudou a vencer a guerra e evitou milhares de mortes. 

 

Alan Turing no cinema

Durante o inverno de 1952, autoridades britânicas irrompem na casa de Alan Turing para investigar um assalto. Acabam prendendo o cientista sob a acusação de “atentado violento ao pudor”, o que levaria à sua condenação por crime de homossexualidade. Os funcionários mal sabem que acabaram de prender um herói de guerra, pioneiro da computação moderna. Assim começa O Jogo da Imitação, filme dirigido por Morten Tyldum, e estrelado pelo ator britânico Benedict Cumberbatch no papel de Turing, estreou no Brasil em fevereiro. A obra é um retrato intenso do gênio temperamental que ajudou a encurtar a guerra e a salvar vidas trabalhando sob intensa pressão. A máquina Bombe, recriada para o filme, assim como os figurinos usados na produção, integram a mostra Imitation Game – The Exhibition, em exibição no Bletchley Park até 1º de novembro de 2015. O título do filme é também uma referência ao chamado “Turing Test”, que determina se um computador é capaz de pensar graças à sua inteligência artificial.