01/12/2010 - 0:00
O kabang, como é chamada a casa flutuante dos moken, navegou 270 milhas náuticas no Mar do Norte, percorrendo a rota Stavanger-Oslo em duas semanas.
Em Risor, na costa leste da Noruega, aportou um kabang, uma “casa flutuante” da Ásia, vinda para se apresentar no festival nacional de barcos de madeira. Os dois marinheiros a bordo eram homens do povo moken, nômades do mar oriundos do arquipélago de Megúria, na Tailândia. Convidados pelo Museu Naval de Oslo, os irmãos marinheiros Hook e Ngui Gatale viajaram para compartilhar suas habilidades em construir naves e navegar. Sua presença propunha a possível existência de conexões interessantes entre a cultura dos antigos navegantes nórdicos e a dos asiáticos.
As cordas de fibra são usadas para amarrar os materiais empregados na construção do barco e também sustentam a vela feita com folhas de palmeiras.
Para começar, as embarcações dos moken possuem várias similaridades com as dos noruegueses da Idade do Bronze. Comparando-se os beirais de barcos antigos com o kabang de hoje, percebe-se que o homem começou a navegar muito cedo, cruzando o alto-mar e indo em todas as direções, de norte a sul, muito antes dos grandes “descobrimentos” de Colombo, Vasco da Gama e Américo Vespúcio.
Hook e Ngui poderiam ter navegado em seu kabang desde as águas da Tailândia até a Noruega, mas, para não chegar atrasados ao festival de barcos de Risor, mandaram seu kabang em um contêiner. Eles próprios voaram da Ásia para a Europa para receber seu barco no porto de Stavanger, na costa leste da Noruega. Ali, eram esperados por arqueólogos e por especialistas em todos os tipos de barcos.
Com provisões a bordo e alguns novos membros que se juntaram à tripulação, foram provar as capacidades do kabang em alto-mar, confiando a um intérprete a indispensável comunicação entre os participantes da aventura.
As ondas do Mar do Norte não estavam calmas, o vento era bastante forte, a temperatura apenas razoável. A distância entre Stavanger e o porto de Risor foi coberta em duas semanas, navegando a 4 nós, numa média de 7,5 km por hora. O barquinho, no entanto, dançou tranquilamente sobre as ondas, enquanto a vela de 3 x 3 metros se deixava enfunar pelo vento.
A maior parte do povo moken ainda pratica os ritos e costumes da sua antiga cultura. São, desde sempre, nômades que navegam em águas
calmas e, até recentemente, cheias de peixes e mariscos – a base da sua dieta. Eles trocam as sobras de suas pescarias por outros produtos que lhes são necessários, à medida que passam de ilha em ilha percorrendo o arquipélago de Megúria. Durante seis meses, o vento os leva ao sul; durante os outros seis, ao norte. E assim os moken sobrevivem há mais de 3.500 anos.
Na Noruega, os irmãos moken Hook (centro) e Ngui Gatale (direita) participaram do festival nacional de barcos de madeira, compartilhando suas habilidades em construir barcos e navegar. À esquerda, Tanit, o intérprete dos irmãos nessa jornada.
Seu kabang é construído com a madeira dura de uma árvore que cresce na Ilha Surin. O tronco deve ter um diâmetro específico, nem mais nem menos. Dois homens abraçam a árvore escolhida. Se suas quatro mãos se juntam, significa que o tronco tem o tamanho ideal para a construção de um casco de kabang. Muito forte, essa madeira resiste a séculos de navegação nos mares tropicais. Dezessete tipos diferentes de madeira, além do bambu, fornecem os materiais principais para a construção do convés, do mastro e do timão, tudo sustentado por cordas de fibras vegetais.
Na proa, o barco possui uma espécie de carranca de madeira – como um focinho de golfinho – que lhe serve de estabilizador. A única vela é feita de folhas trançadas de palmeira. Duas vezes ao ano, as embarcações são levadas para a terra firme e limpas com fogo, que queima tudo que se grudou ao casco, moluscos e algas.
O kabang é a casa e a identidade dos moken. Segundo documentos históricos e lendas dos nômades do mar, há milhares de anos vê-se esse barco velejar nas águas asiáticas até o litoral da Austrália, sugerindo que o povo moken é, na verdade, originário da China. Sua língua atual possui palavras e expressões similares às dos indígenas australianos. Apesar da sua vida nômade, os moken têm pouco contato com os habitantes do litoral da Tailândia ou da Birmânia (a atual Mianmar). São, no entanto, bem conhecidos como nômades do mar, que passam suas vidas em seus kabangs e só desembarcam para enterrar seus mortos em santuários situados sobre as colinas ou para cuidar da manutenção de seus barcos. A Ilha Surin, aonde vão para conseguir madeira, foi recentemente incorporada a um parque nacional tailandês. O regulamento do parque proíbe o corte de árvores e, assim sendo, não se sabe como os moken farão para substituir seus barcos quando isso se fizer necessário. Por outro lado, uma ameaça ainda maior compromete o futuro desses nômades do mar: frotas pesqueiras modernas estão destruindo a fauna aquática local.
Hook e Ngui esperam que em seu regresso a Surin, quando estarão acompanhados por pesquisadores noruegueses, o governo tailandês lhes conceda um tronco para a construção de um barco. Na página ao lado, uma pintura rupestre encontrada no sul da Noruega de uma antiga embarcação. As similaridades desse desenho com o barco dos moken, o kabang, despertou o interesse dos pesquisadores, incentivando a criação de um projeto científico de navegação mundial antiga.
Os irmãos Hook e Ngui voltarão a Surin, em companhia de alguns cientistas noruegueses, na esperança de que os tailandeses lhes concedam um tronco para que possam construir um kabang novo. Eles se lamentam pelo fato de que, no arquipélago, apenas o pai deles conhece todos os segredos da construção tradicional do kabang. Seu povo desaparece rapidamente, a nova geração já não vive sem celulares e internet e outras comodidades da vida moderna.
Origem
O kabang é a casa e a identidade dos moken. Segundo documentos históricos e lendas dos nômades do mar, há milhares de anos vê-se o kabang velejar nas águas asiáticas até o litoral da Austrália, sugerindo que o povo moken é, na verdade, originário da China
O kabang despertou grande interesse internacional não apenas por seus próprios méritos, mas também por representar nosso passado na cultura do presente. A hipótese de que todos os continentes do planeta foram alcançados e explorados pelo homem muito antes do que se imaginava, abre novos caminhos para se comprender algumas impressionantes similaridades culturais entre povos muito distantes.
O kabang dos moken está agora incluído num projeto científico de navegação mundial antiga. E irá, a partir de agora, aportar de forma definitiva no Museu Kon-Tiki, em Oslo.