01/01/2011 - 0:00
O que está acontecendo atualmente nos Estados Unidos sobre a prática de meditação? Na América do Norte, a meditação é aceita como cientificamente benéfica. Muitos médicos estão prescrevendo a prática para seus pacientes; há programas que já iniciaram o ensino nas escolas para jovens, em centros médicos; empresas e igrejas de várias crenças já a utilizam. O dalai lama resolveu apoiar os estudos dos benefícios da meditação no corpo e no cérebro que vêm sendo realizados no Instituto Nacional de Saúde e em outras fundações que subsidiaram recursos para essas investigações. E o que estão descobrindo é bem interessante. Uma simples prática de meditação altera as estruturas físicas do cérebro, fortalece o sistema imunológico e as partes associadas à felicidade que permitem a recuperação em certas situações de tragédia. Há uma lista longa de melhorias fisiológicas, como a redução da pressão sanguínea e da frequência cardíaca.
Como o sr. chegou até o presídio feminino Blue Ridge? O Blue Ridge Prison Project começou em 2003, quando o Centro de Correção para Mulheres convidou nossa comunidade, a Insight Meditation de Charlottesville, para ensinar meditação às mulheres da prisão Blue Ridge, de segurança máxima, na Virgínia. Havia 1.200 detentas, muitas com sentenças bem longas. Vários psicoterapeutas que trabalharam na ala de saúde mental da prisão, depois de assistirem a uma aula de meditação introdutória oferecida por nosso grupo, concluíram que os ensinamentos seriam perfeitos para as presas.
Primeiramente, fui submetido a uma espécie de verificação do meu passado pelo FBI; a aprovação levou sete meses. Nos EUA pós-11 de Setembro há uma preocupação muito grande com relação a atividades terroristas – “todos são terroristas até que se prove o contrário”. É bastante paranoico. Lembro-me claramente da noite em que me permitiram entrar na prisão para minha primeira aula. Eu estava bem nervoso e empolgado. A garoa úmida de novembro deu às luzes do prédio um brilho estranho, e especialmente o arame farpado cintilante e a arquitetura dos blocos lembravam imagens de campos de extermínio. Acabei meu caminho através do labirinto de prédios e seis portões fechados e me estabeleci no quarto que me deram para esperar a primeira turma de 25 mulheres. Boa parte havia cometido homicídios por ter sofrido abusos de parentes, amigos. Fizeram a chamada e as mulheres vieram. A partir daquele momento, essa tem sido minha experiência de ensino favorita.
“A meditação altera as estruturas físicas do cérebro”
Por que levar a meditação para mulheres e não para homens? Há 11 anos fiz um trabalho em uma prisão masculina, mas houve um motim e todas as atividades foram canceladas. Quando retomamos o projeto, vi que o local era muito longe e desanimei. Os problemas enfrentados são similares e os homens não são mais difíceis de lidar do que as mulheres.
“Muitos médicos norte-americanos estão prescrevendo a meditação para seus pacientes; empresas e igrejas a utilizam”
Como é a rotina dos encontros com as detentas? Cada sessão começa geralmente com o check-in, um tempo em que todos podem expressar o que é ouvir e responder; é uma espécie de festa em que rimos e derramamos uma boa dose de lágrimas quando ouvimos, falamos e sentamos com as mulheres. Nos reunimos na cidade, vamos juntos para a prisão nas noites de quarta-feira e conduzimos três grupos ao mesmo tempo. No caminho, curtimos um ao outro e estar nesse ambiente durante duas horas. Na volta, discutimos como foi, o que deu certo, o que poderia melhorar, outras alternativas que podem ser aproveitadas. À medida que vamos praticando com o grupo, aumentamos o tempo de meditação; as mulheres que estão há mais tempo na prática podem estendê-la para 30 minutos. Existem ainda 150 na lista de espera. Descobrimos que pequenos grupos funcionam melhor. Em grupos com mais de 15, elas não têm tempo suficiente para se expressar. Após cada meditação curta, pedimos que compartilhem a experiência e elas ficam felizes em fazer isso, daí a razão de um número grande não ser bom. Somos seis, além de alguns que atuam em tempo parcial. Estamos ampliando o número de grupos – se alguém quiser esse desafio de trabalhar em prisão… temos muita alegria em fazer isso. Ao sair, energizado e me sentindo banhado em amor e gratidão, ao olhar para trás, os edifícios austeros, luzes fortes, arame farpado e cercas, me pergunto: “Que loucura é essa? Como é que fizemos isso?”
“No presídio, fazemos meditações bem curtas. de início, oriento para que tragam a atenção para o momento presente. isso controla a ansiedade, sobretudo numa prisão”
Qual é o método que o sr. utiliza? Fazemos meditações bem curtas. Primeiramente, 15 minutos de meditação andando. Simplesmente oriento para que tragam a atenção para o momento presente. Quando estamos no momento presente, não estamos preocupados com o passado; isso controla a ansiedade, principalmente se você está numa prisão. Paramos a meditação andando e fazemos um balanço com o corpo que acalma bastante, serve para descarregar uma certa energia. Essa meditação funciona bem para presos que não podem ficar parados, pois todos os sentimentos se ampliam. Balançamo-nos por cinco minutos e sentamos. É importante permitir que elas não necessariamente fechem os olhos, porque a maioria, quando fecha, fica bem perturbada. Fazemos tudo para construir algo que dê certo, pequenos exercícios quando elas estão trabalhando em duplas, como o do espelhamento: as mulheres ficam de pé, uma de frente para a outra, uma move a mão, a outra faz o mesmo, como se seguisse seu reflexo no espelho. Elas têm de se concentrar para poder fazer isso e dão muitas risadas, mas estão construindo a plena atenção. Juntamos mais duas mulheres e cada uma pode se tornar líder das outras três.
Em outro exercício, elas ficam sentadas em cadeiras, uma de frente para a outra; uma medita de modo ruidoso e a outra em silêncio, mas irradiando amorosidade para a companheira. Para elas é bem rara essa situação de ter alguém prestando atenção ao que fazem. A meditadora está dizendo coisas como: “Estou atenta às minhas mãos, estou consciente de que estou ansiosa, estou consciente de que estou ruborizada, de que outras pessoas estão falando…” Elas acompanham sua experiência interior, uma característica importante da meditação. Depois fazemos a troca.
Outro exercício, chamado Repetindo Questões, ajuda a construir uma certa conexão, um certo relacionamento, para que aprofundem a experiência. Uma pessoa faz uma pergunta – por exemplo: “Se as pessoas realmente me conhecessem, elas saberiam…?” A pessoa responde e faz a mesma pergunta: “Se as pessoas realmente me conhecessem, elas saberiam…?” E assim vão vendo quem são, chegando mais fundo dentro delas, um pouco mais fundo no que pensam sobre si mesmas.
No que consiste a nomeação? É uma prática muito útil. Elas aprendem a nomear as emoções: isso é pesar, isso é medo, é tristeza, é alegria, é hipocrisia, qualquer emoção. Dar um nome ou rótulo ajuda a estabelecer uma compreensão das emoções que invadem a mente. É comum elas mergulharem nessas emoções; ao ensiná-las a notar que “isso é medo” e mostrar onde ele aparece no corpo, ensinamos o aspecto principal de toda a natureza, o fato de que tudo é impermanente.
Entre um encontro e outro elas recebem alguma instrução? Sim, damos tarefas, lições de casa, e na semana seguinte pedimos que relatem como foi. Por exemplo: ao escovar os dentes, você pode perceber tudo que está envolvido nesse ato – o toque das cerdas, o gosto da pasta, a água na boca, etc. A atenção ao gosto da comida, ao ato de comer, de tomar banho. Na prisão há um procedimento chamado contagem: algumas vezes ao dia elas são chamadas para ficar de pé nas celas, enquanto os guardas conferem se nenhuma escapou ou fugiu. Uma das instruções é elas meditarem no momento em que estão sentindo apenas o corpo, atentas a esse deslocamento de um lado para outro.
O sr. enfrentou problemas com alguma detenta? Como lidou com eles? Sim, e esse é o motivo pelo qual há duas pessoas com o grupo: para o caso de alguém ter flagrado algum trauma e precisar de atenção especial. O instrutor sai um pouco com ela, até que ela se regule. Houve casos de personalidade múltipla; durante as sessões eles são comuns. A detenta não queria participar; percebi e tive de lidar com isso – dissemos: “Tudo bem, pode deitar, só assistir.” Às vezes encontramos pessoas descontroladas, desafiadoras; na maioria das vezes, elas não se desenvolveram socialmente para saber quando parar de falar, por exemplo. Nesses casos, lidamos de modo gentil, como em qualquer grupo.
Na meditação, a emotividade gera um grau de ansiedade, sobretudo em quem tem traumas. O sr. já utilizou a música nesses casos? Em Blue Ridge não permitem esse recurso; espero mais adiante poder usá-lo, trazer a mente de volta e simplesmente ouvir a música. Se você realmente ouvir a música de que gosta, é uma grande experiência. A meditação faz o ordinário extraordinário, seja tomando banho, seja andando ou cantando; se estiver totalmente nisso, é maravilhoso.
“Dar um nome ou rótulo às emoções ajuda a estabelecer umA comp reensão desses conteúdos que invadem a mente”
O que o sr. considera mais importante nesse trabalho com meditação? Geralmente, toda mulher sofre de algum trauma: físico, sexual ou psicológico. Ao desenvolver qualquer programa que envolva essa população, tal fato deve estar sempre como pano de fundo nas nossas mentes. Também é importante perceber que a maioria delas faz alarde de quase tudo em sua vida. Então, a experiência que podemos oferecer deve ser uma experiência bem-sucedida.
Como, em seu treinamento, o sr. lida com a raiva, com o desejo de vingança das detentas? Lidar com emoções difíceis está no topo da lista das coisas com as quais trabalhamos: o controle dos impulsos. Achamos que o autoconhecimento delas está melhorando. No começo, é difícil dizer como estão, mas com a prática isso pode ir se sofisticando. De início elas sentem raiva, depois percebem que há tristeza. Seria algo como rastrear a radiância. Comece de onde você está, aceite isso gentilmente; se tiver paciência e plena atenção, tudo pode terminar com uma radiância. É o que estamos fazendo.
“Lidar com emoções difíceis está no topo da lista das coisas com as quais trabalhamos: o controle dos imp ulsos. o autoconhecimento das presas está melhorando visivelmente”
Que aspectos o sr. gostaria de ressaltar nesse trabalho? Minha experiência direta sobre esses anos me diz que a grande maioria dessas pessoas só precisa de um terapeuta qualificado, um bom amigo ou dois e um emprego… e estaria bem.
Algum caso o marcou nesse período? Há muitas histórias reconfortantes para compartilhar, muitas transformações pessoais ocorrem diante de nossos olhos. Algumas pessoas da nossa equipe visitam as mulheres quando é dia de visita – isso é muito importante, pois algumas têm sentença longa e às vezes a família esquece delas. Há mulheres que costumam escrever cartas e não exatamente sobre meditação – elas podem escrever sobre o que quiserem. Pedi a uma prisioneira que tem cerca de 40 anos e está na prisão há 20 anos que escrevesse alguma coisa sobre a experiência de aprender meditação. Ela é uma pessoa que convidamos para que lidere o grupo. O marido envolveu-se com drogas pesadas, era veterano da guerra entre Estados Unidos e Iraque e ela foi espancada várias vezes. Um dia, após ter sido surrada pela manhã, ela chamou os pais, pediu que ficassem com as crianças, de 2 e 3 anos e, quando o marido estava vendo tevê e usando cocaína, matou-o a tiros. Depois chamou a polícia e contou o que tinha feito. Foi presa, claro, e, pelo fato de ter atirado nele num momento em que não estava sendo espancada, foi condenada no primeiro julgamento à prisão perpétua. Havia evidências de espancamento anteriores, mas seu advogado era muito fraco. Na carta ela diz:
“Se vocês estiverem lendo isso, saibam que a plena atenção é uma alternativa, uma afirmação provavelmente com relação à vida que você leva. Eu e você partilhamos um planeta, é o que você pensa. Quando olho através da estreita fresta da janela, vejo as mesmas nuvens que você; então, compartilhamos também o mesmo céu. Nossa relação pode ter começado quando a maior diferença entre eu e você é onde nós vivemos, porque para onde meu passado me conduziu entrei com muita raiva, entrei na corrente subterrânea de culpa, lamentação. Aprendi simplesmente como estar e prestar atenção no que meu corpo sente. Susan (professora do grupo) me ensinou como respirar, de modo que sentisse que não iria me afogar; isso exigiu bastante esforço. Asha (outra professora) me ensinou a ficar bem quieta; assim aprendi onde mora a paz da mente. Quando pensei que não poderia ter algo melhor, Tereza me mostrou como me mover nessa quietude. A plena atenção funciona em qualquer lugar onde a pessoa vive; existe estresse em toda a vida, o segredo é ver a vida que está em volta do estresse. Então, olho pela estreita fresta da janela e vejo as mais belas estrelas que jamais vi e realmente agora posso vê-las. Por que tenho estado aqui há 15 anos sem perceber? Por que não pude perceber as flores amarelas debaixo dessa lâmpada de sódio no pátio? É porque nunca me preocupei em baixar minha agitação, estar plenamente atenta, de modo a dizer que está tudo bem, e que ainda estou bem, mesmo que meus melhores planos fracassem. É difícil não fazer planos para quando voltar para casa, difícil encarar o fato de que, quando voltar, talvez nunca mais venha aqui. Esses dias me fizeram ficar bem com o dia a dia; agora posso ver que esse céu é belo, esse gramado é verde. Se esse é o único caminho sobre o qual posso caminhar, estou num lugar onde talvez não seja sempre o pior caminho para andar. Sinto alegria em apontar Órion, o Caçador, quando vejo meu grupo de meditação nesta noite de quarta-feira.”
Mais informações
Imeditation – www.imeditation.org
Casa de Dharma – www.casadedharma.org
Sociedade Vipassana de Meditação –
www.sociedadevipassana.com.br