O ano passado foi o último da Década Internacional da Cultura de Paz e Não Violência para as Crianças do Mundo, criada pela ONU e coordenada pela Unesco.

O ano passado foi o último da Década Internacional da Cultura de Paz e Não Violência para as Crianças do Mundo, criada pela ONU e coordenada pela Unesco. , dirigente da Unesco no Brasil, faz a seguir um resumo das conquistas desse período e dos passos que ainda devem ser dados para se chegar a uma cultura de paz

A noção de cultura de paz utilizada hoje pela Organização das Nações Unidas (ONU) – um conjunto de valores, atitudes, tradições, comportamentos e estilos de vida que rejeita a violência e previne conflitos (ver quadro à pág. 9) – surgiu em 1989 em Yamassoukro, na Costa do Marfim, durante o Congresso Internacional para a Paz na Mente dos Homens, e a partir daí tornou-se um movimento mundial. O primeiro fórum sobre o tema, realizado em El Salvador em 1994, discutiu o estabelecimento de um direito da paz, esboçado na Declaração de Viena (1993), na qual consta que direitos humanos, democracia e desenvolvimento são interdependentes.

Em 1997, a ONU declarou 2000 o Ano Internacional da Cultura de Paz, sob a coordenaçãogeral da Organização das Nações Unidas para a Ciência e a Cultura (Unesco), e no ano seguinte estabeleceu o período 2001-2010 como a Década Internacional da Cultura de Paz e Não Violência para as Crianças do Mundo. Na sequência, em Paris, ganhadores do Prêmio Nobel da Paz lançaram o Manifesto 2000, instrumento que conclama a participação individual no movimento.

A “década visionária” foi tema do 85° e último fórum do Comitê Paulista para a Década da Cultura de Paz, realizado em São Paulo, em novembro de 2010, pela Associação Palas Athena e conduzido pela gaúcha , coordenadora de Ciências Humanas e Sociais da Unesco no Brasil. Ainda jovem, Marlova ganhou uma bolsa de estudos da Fundação Birla House, em Nova Délhi, Índia, onde durante três meses aprendeu mais sobre a ahimsa (o princípio da não violência) e a filosofia do líder pacifista indiano Mahatma Gandhi. Entrou para as Nações Unidas como oficial de Políticas Públicas e Direitos do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e, mais tarde, para a Unesco, como coordenadora da área de Ciências Humanas e Sociais no Brasil. Também presidiu o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) e foi professora universitária na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Tem livros publicados sobre o terceiro setor, municipalização e direitos humanos e artigos em revistas especializadas. Nesta entrevista, Marlova faz um balanço das iniciativas da cultura de paz na década.

O que significa para a sra. uma cultura de paz?

Cultura de paz, para mim, não é um objeto profissional, é um meio de vida. Aprendi muito cedo em casa, com a família, que a paz é a coisa mais importante do mundo. Sua cultura é baseada em tolerância e solidariedade. Ela respeita os direitos individuais, assegura e sustenta a liberdade de opinião e se empenha em prevenir conflitos, resolvendo-os em suas fontes, que englobam novas ameaças não militares para a paz e a segurança, como a exclusão, a pobreza extrema e a degradação ambiental. Está intrinsecamente relacionada à prevenção e à resolução não violenta dos conflitos.

Por que a ONU dedicou uma década especificamente a esse tema?

A década foi promulgada para reforçar o trabalho desenvolvido no ano 2000, quando começou uma mobilização e uma aliança global de movimentos sociais para transformar os princípios norteadores da cultura de paz em ações concretas.

“Substituir a cultura de guerra por uma de paz requer um modelo de desenvolvimento que possa suprimir as causas de conflito”

Como começou concretamente esse período no Brasil?

Uma das primeiras ações a favor da cultura de paz no Brasil foi firmar termos de parceria com quatro entidades de atuação notável nessa área: a Associação Palas Athena, a Organização Brahma Kumaris, a Comunidade Bahá’í e a Fundação Peirópolis. Graças a essas parcerias, desenvolveram-se inúmeras atividades, desde a divulgação do Manifesto 2000 (com a coleta de 15 milhões de assinaturas), eventos, seminários, workshops e publicações até a confecção de camisetas, panfletos, calendários e banners.

 

O ano passado foi o último da Década Internacional da Cultura de Paz e Não Violência para as Crianças do Mundo, criada pela ONU e coordenada pela Unesco. , dirigente da Unesco no Brasil, faz a seguir um resumo das conquistas desse período e dos passos que ainda devem ser dados para se chegar a uma cultura de paz

A sra. abriu o último fórum do Comitê Paulista para a Década da Cultura de Paz fazendo inúmeros agradecimentos…

Comecei agradecendo porque um dos aprendizados mais significativos que tive a respeito da filosofia de Mahatma Gandhi foi exercitar o desapego, buscando alegrar cada vez mais o meu coração e menos o meu ego. Com isso, aprendi também como é importante ser generoso, reconhecer a importância, o papel dos outros. Sem os outros não teríamos feito essa década; a Unesco sabe que, sozinha, essa década não teria acontecido da forma como aconteceu.

O que é necessário para se implantar uma cultura de paz?

Substituir a secular cultura de guerra por uma cultura de paz requer um esforço educativo prolongado para modificar as reações à adversidade e construir um modelo de desenvolvimento que possa suprimir as causas de conflito. No campo do desenvolvimento econômico, é preciso passar da economia competitiva de mercado para um modelo de desenvolvimento mútuo e sustentável, sem o qual é impossível alcançar a paz duradoura. É preciso revisar o conceito de adotar modelos de desenvolvimento de outros países para respeitar cada país, suas tradições e diversidade, incorporando uma dimensão humana, social e de participação, que, necessariamente, deve significar democracia.

Desde 1991 a Somália está em guerra civil permanente. Vários grupos armados disputam o controle do território e da capital, Mogadíscio.

Quais projetos a sra. destaca nesses dez anos?

O programa Abrindo Espaços: Educação e Cultura para a Paz é um dos poucos da Unesco, se não o único do mundo, a se tornar política pública. A experiência foi publicada em uma coleção de oito livros, contendo referências metodológicas e conceituais e um guia para sua implantação, convidando professores a cultivar a paz em sala de aula. O Escola Aberta, que melhorou o clima interno da escola entre os alunos e entre estes e professores, foi implantado em vários Estados do Brasil e atravessou fronteiras. O Criança Esperança é outro modelo em termos de mobilização social em favor do desenvolvimento de milhares de crianças, adolescentes e jovens em situação de vulnerabilidade social. Os Espaços Criança Esperança são “ilhas de paz” nas quais é possível concretizar os princípios dessa cultura em regiões marcadas pela exclusão social e violência urbana.

Crianças praticando natação no Espaço Criança Esperança do Rio de Janeiro.

O ano passado foi o último da Década Internacional da Cultura de Paz e Não Violência para as Crianças do Mundo, criada pela ONU e coordenada pela Unesco. , dirigente da Unesco no Brasil, faz a seguir um resumo das conquistas desse período e dos passos que ainda devem ser dados para se chegar a uma cultura de paz

Como a sra. resume o período 2001- 2010?

Nesses dez anos, trabalhamos para que o movimento, não só no Brasil, mas em todo o mundo, fosse uma grande aliança entre os movimentos já existentes. Não buscamos reinventar a roda, porque isso não foi um exercício de egos, mas de corações que se alegraram juntos a cada conquista, buscando um processo que unificasse todos os que trabalhassem ou estivessem trabalhando em favor dessa transformação tão fundamental para a sociedade brasileira e a humanidade.

 

“O maior desafio do século 21 é encontrar meios de mudar atitudes e valores para de fato promover a paz”

Quais são os maiores desafios para este século?

Encontrar os meios de mudar atitudes e valores para que possamos de fato promover a paz. Porque isso não acontece de forma automática; temos profunda convicção de que a paz está intimamente ligada à justiça social e à democracia. O esforço da Unesco não pode cair no vazio nem correr o risco de ficar só no discurso. Sua dimensão filosófica é muito importante e precisamos nos esforçar cada vez mais para, numa ação “concertada”, atingir de fato nossos objetivos. Queremos repensar a educação e a cultura, mostrando que ambas podem dar respostas à inquietação pela universalização e pela democratização do conhecimento. A Comissão Internacional de Educação para o século 21, presidida por Jacques Delors (político francês que comandou a Comissão Europeia entre 1985 e 1995), ressalta que a educação deve ser organizada com base em quatro princípios do conhecimento: aprender a conhecer, aprender a viver juntos, aprender a fazer e aprender a ser.

É possível fazer da cultura de paz uma realidade concreta e duradoura?

A cultura de paz é uma iniciativa de longo prazo que leva em conta os contextos histórico, político, econômico, cultural e social de cada ser humano e sociedade. É necessário aprendê-la, desenvolvê-la e colocá-la em prática no dia a dia familiar, regional ou nacional. É um processo que tem um começo, mas nunca pode ter um fim. Sua elaboração e seu estabelecimento requerem uma profunda participação de todos, tendo como pano de fundo de qualquer mobilização a tolerância, a democracia e os direitos humanos. Em outras palavras, a observância desses direitos e o respeito pelo próximo, valores caros à cultura de paz. Cabe aos cidadãos organizar-se e assumir sua parcela de responsabilidade, participando inteiramente no desenvolvimento de suas sociedades; aos países cabe a cooperação multilateral; às organizações internacionais, a coordenação de suas diferentes ações.

A cultura de paz na definição da ONU

Uma cultura de paz é um conjunto de valores, atitudes, tradições, comportamentos e estilos de vida baseados:

No respeito à vida, no fim da violência e na promoção e prática da não violência por meio da educação, do diálogo e da cooperação;

No pleno respeito aos princípios de soberania, integridade territorial e independência política dos Estados e de não ingerência nos assuntos que são, essencialmente, de jurisdição interna dos Estados, em conformidade com a Carta das Nações Unidas e o direito internacional;

No pleno respeito e na promoção de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais; no compromisso com a solução pacífica dos conflitos;

Nos esforços para satisfazer as necessidades de desenvolvimento e proteção do meio ambiente para as gerações presentes e futuras;

No respeito e na promoção do direito ao desenvolvimento;

No respeito e no fomento à igualdade de direitos e oportunidades de mulheres e homens;

No respeito e no fomento ao direito de todas as pessoas à liberdade de expressão, opinião e informação;

Na adesão aos princípios de liberdade, justiça, democracia, tolerância, solidariedade, cooperação, pluralismo, diversidade cultural, diálogo e entendimento em todos os níveis da sociedade e entre as nações; e animados por uma atmosfera nacional e internacional que favoreça a paz.

 

O ano passado foi o último da Década Internacional da Cultura de Paz e Não Violência para as Crianças do Mundo, criada pela ONU e coordenada pela Unesco. , dirigente da Unesco no Brasil, faz a seguir um resumo das conquistas desse período e dos passos que ainda devem ser dados para se chegar a uma cultura de paz

Como será articulada a continuidade dessa política?

A cultura de paz está presente em tudo que a gente faz e continuará a fazer– essa continuidade já está incorporada. Temos um programa bem estruturado para trabalhar a cultura de paz de fato com os parceiros. A nova diretora-geral da Unesco, Irina Bokova, já fala nisso e o programa está muito presente no mandato dela.

Manifestação pela paz e pelo fim da violência contra imigrantes em Ciudad Juaréz, na fronteira do México com os Estados Unidos.

“Temos profunda convicção de que a paz está intimamente ligada à justiça social e à democracia”

O Conselho de Segurança da ONU poderia tornar-se Conselho de Segurança e Cultura de Paz?

Prefiro deixar essa questão com os políticos. A ONU é uma organização multilateral na qual quem manda são os países, não somos nós. Quem manda na Unesco também são os países, não os funcionários. Sugiro que se leve à nova presidente, Dilma Rousseff, esse desejo de que a Unesco comande um movimento junto às Nações Unidas pela criação de um conselho de cultura de paz. O Brasil é um país-membro importantíssimo, tem direito a voto, já teve assento no conselho executivo, já o presidiu e, desde janeiro, tem uma embaixadora lá, Maria Laura da Rocha; então, vejo aí uma excelente oportunidade.

 

Informações

Site da Cultura de Paz da Unesco: http://migre.me/3Iefo