14/07/2021 - 6:41
Ex-presidente dos EUA não tem mais dado entrevistas. Às vésperas da última visita da líder alemã a Washington, abriu uma exceção para a DW – por sua “querida Angela”. Para ele, alguém “com princípios e grande coração”.A propriedade dos Bush fica de frente para o Atlântico, próximo a Kennebunkport, pouco menos de duas horas de carro ao norte de Boston. Enquanto nossa equipe de filmagem prepara a sala banhada de luz para a entrevista, com biombos de pano preto, de repente lá está George W. Bush, quase uma hora antes do combinado.
De shorts e camiseta verde-claro, salpicada de manchas coloridas, com uma ponta de charuto no canto da boca e iPad na mão, ele comenta: “Faço isso com prazer, para a minha querida Angela.”
E aí fala, de forma absolutamente cativante e carinhosa, primeiro sobre a chanceler federal alemã, Angela Merkel, depois sobre sua atividade de pintor, mostra seus quadros no iPad, explica que o trabalho ao cavalete estrutura seu dia, e que o pincel se transformou num meio de expressão política, desde que deixou a Casa Branca.
Enquanto Bush troca de roupa para a entrevista televisiva, eu fico pensando que não sobrou nem a mais fina camada de gelo que ainda precisasse ser quebrada.
Merkel: o sonho americano em pessoa
Hoje, o 43º presidente dos Estados Unidos se mantém longe do palco da política, e quando dá entrevistas, é só para falar da sua arte. No entanto, faz uma exceção para o documentário da DW sobre Merkel, nos recebe em casa e nos dedica bastante tempo.
“Merkel levou classe e dignidade a seu importante cargo, tomou decisões muito duras, e no sentido do melhor para a Alemanha, sempre se mantendo fiel aos seus princípios. Ela é uma figura de liderança cheia de empatia, uma mulher que não tem medo de liderar.”
Assim como para muitos americanos, também para George W. Bush Merkel é um “sonho americano” personificado: uma mulher que cresceu na repressão comunista e conseguiu chegar ao topo do mundo livre. E isso, não em qualquer lugar, mas na Alemanha, no país que, aos olhos americanos, os Estados Unidos salvaram duas vezes de uma ditadura: primeiro o país todo, do regime nacional-socialista, e depois a parte leste, das garras do Kremlin.
Em especial nos quatro anos da presidência de Donald Trump, Merkel foi vista pela América liberal como “the leader of the free world”, a líder do mundo livre, uma posição que até então só coubera ao próprio presidente dos EUA.
Em meio aos percalços e tropeços tanto dentro da União Europeia quanto em diversos Estados europeus, ela era vista como porto seguro na tempestade, uma constante confiável num mundo que parecia girar cada vez mais veloz e no qual os problemas pareciam sempre maiores, e suas possíveis soluções, cada vez mais complicadas.
“Merkel sobreviveu mais de oito anos num ambiente duro. Isso é espantoso mesmo, quando se pensa a respeito”, observa Bush – também numa alusão ao fato de que, após os oito anos de seus mandatos (2001-2009), os americanos estavam fartos dele. “E isso mostra a confiança do eleitorado alemão nela”, completa o ex-chefe de Estado.
Entendendo os motivos de Merkel
Quando, em 2006, a chanceler federal recém-eleita apertou pela primeira vez a mão de Bush, as relações teuto-americanas haviam esfriado consideravelmente, depois de, ao fim de seu mandato, o antecessor de Merkel, Gerhard Schröder, criticar severamente a guerra de Bush no Iraque.
Muitos farejaram aí uma tática eleitoral. A relação melhorou rapidamente devido, em grande parte, ao fato de, desde o início, a democrata-cristã e o republicano terem se dado muito bem, também do ponto de vista pessoal, conta George W. Bush.
Assim como o atual presidente dos EUA, o democrata Joe Biden, também o ex-mandatário critica a construção do gasoduto Nord Stream 2, pois ele não só aumentará a dependência da Alemanha em relação à Rússia, mas também complica ainda mais a situação da Ucrânia. Contudo Bush compreende que Merkel persiga uma política para Vladimir Putin e a Rússia diferente da dos EUA: cada país precisa encontrar seu próprio caminho, diz.
Também em relação à política migratória da chefe de governo alemã, ele demonstra compreensão: “Minha primeira reação foi que ela era uma mulher de grande coração. E tenho certeza de que foi motivada pela compaixão humana. E, sabe, para ela foi sem dúvida uma decisão política dura, mas ela assumiu a responsabilidade de liderança.”
Estando, ele próprio, insatisfeito com a a política de imigração linha-dura de Trump, Bush acabou por publicar um livro ilustrado com retratos de imigrantes: foi a sua maneira de se inserir no discurso político.
Com a palavra, a posteridade
Pai de duas filhas, o político conservador vê na chanceler federal em fim de mandato também um modelo, sobretudo para as meninas: “Tem muitas garotas que veem Angela Merkel e dizem: 'Também eu posso ter, um dia, uma posição de responsabilidade e poder.'”
Agora, Merkel irá a Washington pela última vez, na qualidade de premiê. Desse modo, o primeiro encontro com o novo presidente Biden será, ao mesmo tempo, visita de posse e de despedida. No âmbito político americano, pouco a pouco se difunde a consciência de que chega ao fim uma era muito maior do que Angela Merkel.
A indiscutibilidade da relação transatlântica precisa ser redefinida – não só porque outras potências, como a China e a Índia, assumem um papel cada vez mais importante no palco mundial. Merkel foi a última chanceler federal alemã a ter a ver com Estados Unidos para os quais manter uma relação estreita com a Alemanha e a Europa era um fato óbvio.
Quando a democrata-cristã tomou posse, 16 anos atrás, em praticamente toda família americana havia ainda uma relação pessoal muito viva com a Alemanha: ainda havia veteranos, incluindo políticos de alto gabarito, que haviam combatido a Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial, ou que estiveram estacionados na Alemanha Ocidental durante os muitos anos até a queda do Muro de Berlim.
Faz parte das surpreendentes guinadas da história o fato de centenas de milhares de “ocupadores”, que viveram na Alemanha como jovens soldados, terem se transformado em verdadeiros embaixadores da amizade teuto-americana.
Quem quer que suceda a Merkel na chefia de governo, tem a grande tarefa de entusiasmar por uma relação transatlântica próxima a geração jovem, para quem os horrores da Segunda Guerra e da Cortina de Ferro estão muito distantes. E o passado não serve mais como argumento.
“Angela Merkel fez um bom trabalho?”, quero saber, para encerrar. “Acho que sim”, acena George W. Bush. “Mas nem ela nem eu devemos nos preocupar com a historiografia de curto prazo. Só muito depois da nossa morte, ficará claro onde o mundo nos situa.”