14/07/2021 - 15:21
Ao se dizer “os alunos” ou “os arquitetos”, onde ficam as mulheres? No alemão experimenta-se diversas soluções para evitar o “masculino genérico”. Para uns, um problema linguístico, para outros, uma questão existencial.Como no português e em numerosas outras línguas, grande parte dos vocábulos alemães tem uma forma feminina e uma masculina. Ou seja: na escola há o Schüler (aluno) e a Schülerin (aluna), que têm aulas com um Lehrer (professor) ou uma Lehrerin (professora).
Até aí, tudo bem. Do momento que se trata de um grupo misto, contudo, a regra gramatical é que se utilize o plural masculino. Por exemplo: Politiker (políticos) fazem leis para Bürger (cidadãos) – mesmo que haja mulheres envolvidas. Também aqui, exatamente como no português.
Essa forma especial do plural, denominada “masculino genérico”, está no cerne de um debate na Alemanha. Embora, segundo a gramática, inclua ambos os sexos, seus críticos alegam que ele está associado sobretudo aos indivíduos masculinos, excluindo as pessoas femininas e não binárias.
Uma das formas não oficiais para contornar o problema no alemão é acrescentar a terminação feminina no plural “innen” antecedida por um asterisco (*): Lehrer*innen – o que seria equivalente à expressão “professores(as)” em português. Há alternativas, como LehrerInnen, Lehrer_innen ou Lehrer:innen, porém, segundo observadores, o Gendersternchen ou Genderstern (“asterisco de gênero”) é a variante dominante. (O termo gender, aliás, é um empréstimo do idioma inglês, já que Geschlecht é o termo alemão original para “gênero” ou “sexo”.)
A língua, sua estética e sua sociopolítica
A vida de Doris Mendlewitsch, de 64 anos, gira em torno de redigir textos, da língua e sua estética. Ao ler, no entanto, um detalhe muitas vezes a faz perder todo o prazer: é a estrelinha que lhe salta aos olhos, em cartazes de publicidade, artigos e manuais de instrução.
“O 'asterisco de gênero' sobrecarrega incrivelmente os textos com palavras e sinais que nada têm a ver com o conteúdo, e em parte até o obscurecem”, queixa-se a consultora de comunicação.
Contudo, Julien Grub, de 31 anos, não é Bürger nem Bürgerin (cidadão nem cidadã), identificando-se como uma pessoa “não binária”, “porque ficou cada vez mais óbvio que eu não correspondo ao sexo que me foi designado”. Sua “saída do armário” só se deu em 2020, após um longo processo, e o asterisco de gênero lhe é importante: “Linguisticamente ele também faz referência a mim. Nessa forma de escrita, há um espaço com o qual, no fundo, posso sentir uma conexão.”
Na verdade, esse asterisco é originário da linguagem de computador, onde serve como substituto para “o que quer que seja”. No alemão moderno, sua função seria tornar a comunicação mais neutra em termos de gênero, já que, para os adeptos da teoria de gênero, a gramática germânica seria excessivamente masculinizante.
O que os partidos alemães têm a dizer
Introduzir oficialmente na Alemanha uma linguagem inclusiva de gênero é uma decisão que caberia à política, coisa que, até o momento, só ocorreu em alguns municípios isolados.
A coisa poderia mudar? Afinal, em setembro o país elegerá seu novo governo federal, nas eleições legislativas. O que se deve esperar dos partidos, nesse quesito? Por ocasião do 14 de julho, Dia Internacional das Pessoas Não Binárias, a DW consultou os diversos departamentos de imprensa, e o resultado foi um quadro misto.
Em três siglas – Partido Verde, A Esquerda e Alternativa para a Alemanha (AfD) – há decisões oficiais: os verdes adotaram a linguagem inclusiva já desde 2015; em 2017 os esquerdistas decidiram introduzir o asterisco de gênero. A populista de direita AfD, ao contrário, rechaça inteiramente uma Gendern (algo como “genderação”) do alemão – como consta de seu programa partidário.
Segundo os respectivos setores de imprensa, no Partido Social-Democrata (SPD), Partido Liberal Democrático (FDP) e União Democrata Cristã (CDU) não existem resoluções ou ordens relativas à linguagem neutra de gênero. Os liberais são contra “uma obrigação de Gendern”, e entre os social-democratas ela é “facultativa”.
A CDU faz referência a uma entrevista atual com seu líder e candidato à chefia de governo, Armin Laschet, que aconselha “tranquilidade”: ele aceita quem queira empregar a linguagem inclusiva, mas refuta que se pressione a adotá-la. Mas há também vozes menos “tranquilas” entre os democratas-cristãos, exigindo que se proíba a “genderação” em textos oficiais e nas escolas, como foi imposto por decreto na França.
Uma olhada nos programas eleitorais comprova que a maioria dos partidos prefere fazer uma curva em torno do tema, embora ele também alimente controvérsias na imprensa alemã: a “linguagem de gêneros” não é mencionada por nenhum deles – exceto, novamente, pela AfD.
Os populistas de direita atualmente tentam ganhar pontos de diversas formas com o assunto: recentemente apresentaram duas moções no Bundestag (câmara baixa do parlamento) exigindo uma “proibição da linguagem de gêneros” em textos legais e outros materiais impressos. Uma das moções está sendo estudada pela comissão encarregada dos regulamentos internos do órgão.
Palavras definem o mundo?
Uma enquete do instituto de pesquisa de opinião Infratest Dimap concluiu que dois terços dos alemães são contra uma linguagem voltada à diversidade de gêneros. Por vezes também por que ela torna o idioma mais complicado para quem tem dificuldades de leitura ou para não nativos. Doris Mendlewitsch, pelo menos vê a questão por esse ângulo.
Como voluntária, ela ensina crianças de famílias de imigrantes a ler, e para elas o asterisco de gênero constitui um obstáculo adicional: “A Gendern torna o idioma ainda mais difícil de aprender do que com um texto fluente, em que o masculino genérico serve para tudo.”
Por sua vez, Julien ressalva que ter em mente sobretudo um grupo humano masculino ao usar o plural genérico é um problema sobretudo nas relações profissionais, pois pode “sedimentar um certo pensamento sexualizado entre estudantes e possivelmente influenciar a futura escolha da profissão”.
Certos estudos confirmam essa tendência: quando se fala de Ingenieur*innen em vez de Ingenieure (engenheiros), ou de Architekt*innen em vez de Architekten (arquitetos), é mais fácil para os jovens imaginarem que essas carreiras estão abertas a todos, independentemente do gênero.
Ainda assim, para Doris as reivindicações cada vez mais veementes pelo asterisco são como impor uma camisa-de-força, que nada tem a ver com linguagem cuidadosa nem com equiparação de gêneros: “Afinal, língua não é matemática, não se pode criar fórmulas linguísticas para tudo. A linguagem é individual, você precisa ver o contexto em que ela acontece.”
Julien Grub também tem sua teoria sobre a evolução da língua: “A língua deve estar lá para as pessoas, pois são elas que a utilizam.” E ela se transforma diariamente: “Quanto mais ampla é a minha concepção de língua, melhor posso entender o mundo, mas também as outras pessoas. Isso é simplesmente essencial.”