23/08/2021 - 11:00
Um em cada três moradores da Maré tem a saúde mental abalada pelo cotidiano violento, sofrendo com medo, depressão e ansiedade. Situação é retrato da realidade de um quinto da população carioca, que vive em favelas.O medo de ter alguém próximo atingido por uma arma de fogo afeta 71% da população do Conjunto de Favelas da Maré, na Zona Norte do Rio. Um estudo internacional pioneiro conduzido ao longo de três anos na região, com a participação de 1.411 moradores adultos, e divulgado nesta segunda-feira (23/08) mostra que pessoas em situação de violência são mais vulneráveis ao sofrimento mental.
Episódios depressivos (26,6%) e ansiedade (25,5%) foram as desordens mentais mais comumente identificadas pela pesquisa Construindo Pontes, realizada pela organização inglesa People's Palace Projects e a Redes da Maré. O estudo revelou que um terço dos moradores da Maré tiveram a saúde mental afetada pela violência.
“Como ter saúde mental se você mora num lugar onde não tem seus direitos respeitados?”, questiona Irone Santiago, mobilizadora social. Moradora da Maré, ela perdeu um filho atingido em um tiroteio. “Isso abalou muito a minha saúde, e acredito que abale toda a comunidade.”
Irone conseguiu se reerguer graças ao auxílio terapêutico psicológico. Hoje, tem dimensão do impacto que esse tipo de tratamento pode ter na vida de pessoas que lidam com situações traumáticas e convivem com diversas angústias em sua rotina, como é o caso dos moradores da Maré.
“Vejo muitas mulheres aqui com vários desses problemas, e elas não falam, porque acham que isso é normal. Reconhecer o seu adoecimento é muito importante. Caso contrário, eu nunca teria procurado ajuda. Muitas vezes, elas não conseguem se ver assim”, comenta.
Realidade de mais de um quinto dos cariocas
De acordo com Eliana Silva, diretora da Redes da Maré, o estudo teve o objetivo de analisar com maior profundidade os efeitos de um contexto violento sobre uma população que passa por situações extremas em sua rotina. No Rio de Janeiro, 22,03% da população mora em favelas, segundo o Censo de 2010. É a taxa mais alta de uma cidade brasileira.
“Uma criança que vivencia confrontos entre grupos armados muitas vezes reconhece no seu cotidiano violências que não vemos em outras partes da cidade. Precisamos olhar como isso impacta esses indivíduos no campo da psicologia e da psiquiatria, além de falar sobre as questões causadas pela ausência de direitos”, afirma.
Na Maré, 44% dos entrevistados relataram ter estado em meio a um tiroteio nos 12 meses anteriores. Desse total, 73% passaram pela experiência mais de uma vez. Entre os que vivenciaram tais situações, 44% relataram dificuldades para dormir, e 28% sofrem com ânsias de vômito e mal-estar estomacal.
“O processo de adoecimento dessa população existe pela ausência de outros direitos, como o da segurança pública. Nas favelas e periferias, as pessoas crescem sem entender que têm esse direito. O Estado não só deixa de reconhecer isso como criminaliza essa população, que dificilmente terá uma boa saúde mental”, afirma Eliana Silva, diretora da Redes da Maré.
Embora o sofrimento atinja a todos os que são expostos a esse cotidiano de violência, a angústia é redobrada entre os que precisam sair para trabalhar e deixar seus filhos em casa, caso da agente social Vanda Canuto.
“Sei que minha casa pode ser invadida de forma violenta, com meus filhos lá dentro. É sair e voltar com preocupação. O poder público poderia estar mais presente no território de favela, e não tratando de guerra às drogas. As pessoas da Maré têm direito à vida, a circular com mais segurança”, reivindica.
Crítica a operações policiais
A ocorrência de conflitos armados nas favelas do Rio não se deve exclusivamente às ações de repressão da polícia, mas também às disputas de territórios entre grupos que controlam o comércio de drogas na cidade. Porém, é inegável que as incursões policiais constantes têm um peso significativo no quadro revelado pela pesquisa.
Entre 2017 e 2020, houve 78 mortes decorrentes de 112 operações policiais na Maré. Além do uso de forte aparato repressivo, incluindo helicópteros, as trocas de tiros entre policiais e criminosos costumam deixar vítimas de “balas perdidas”, quando pessoas que não participam do confronto são atingidas.
Segundo o estudo recém-divulgado, um quarto dos moradores adultos da Maré teve alguém próximo ferido ou assassinado, mesmo que não tenha testemunhado um tiroteio. Um número similar de pessoas diz ter visto alguém ser espancado ou agredido nos 12 meses anteriores à entrevista.
Em um cenário tão brutalizado, em que a população “se habitua” às cenas de barbárie, identificar um distúrbio mental pode ser ainda mais difícil. “Se você sente uma dor em qualquer parte do corpo, procura um médico. Quando é na mente, as pessoas vão deixando passar e só enxergam quando está no limite, num momento de surto”, comenta Vanda.
Com o objetivo de aumentar a disponibilidade de informações sobre saúde mental nas favelas da região, começa nesta segunda-feira a 1ª Semana de Saúde Mental – Rema Maré, que terá atividades culturais, debates e intervenções sobre o tema. Entre as iniciativas previstas, está a distribuição do Guia de Saúde Mental da Maré.
Arte e saúde mental
Tanto a realização da pesquisa quanto as atividades em curso ao longo desta semana são iniciativas organizadas pelo dramaturgo britânico Paul Heritage, diretor artístico da organização People's Palace Projects. A ONG foi criada a partir de seu interesse nas diferentes formas através das quais a arte pode amenizar problemas sociais urgentes.
Por mais de duas décadas, Heritage criou projetos artísticos em prisões no Brasil e no Reino Unido. Como produtor, levou algumas das mais importantes companhias artísticas brasileiras ao Reino Unido, incluindo os grupos AfroReggae e Nós do Morro.
Ele explica que a iniciativa do estudo visava a compreender as necessidades da Maré, mas, sobretudo, os recursos de que a comunidade já dispõe, sob a perspectiva da arte e cultura como ferramentas de fortalecimento da saúde mental. Após desenvolver projetos com artistas locais, Heritage se diz impressionado.
“Pensar que a Maré é uma fonte de inspiração e criatividade é algo que dá esperança para todos nós. Conheci poetas aqui que não param de criar. Os jovens artistas daqui fortalecem a comunidade, seja pelo poema slam, o baile funk, o forró, tudo isso faz parte de uma vida que tira a gente do cotidiano, que pode ser bem duro aqui”, afirma.