26/08/2021 - 10:30
Com critérios científicos e jornalísticos, Carlos Orsi mergulhou sobre as origens do negacionismo para escrever — em parceria com sua cônjuge, a microbiologista Natalia Pasternak — o recém-lançado Contra a realidade: a negação da ciência, suas causas e consequências.
No livro, fica esmiuçada a origem do termo “negacionismo” e os impactos que tal postura tem sobre a sociedade contemporânea. “A pandemia escancarou os riscos que a negação de realidades científicas bem estabelecidas trazem, principalmente na formulação de políticas públicas e na tomada de decisões individuais que têm consequências públicas”, afirma o jornalista.
Orsi é um dos fundadores do Instituto Questão de Ciência (IQC) e editor-chefe da Revista Questão de Ciência, publicada pela mesma entidade. Ele é, sobretudo, um militante contra pseudociências, negacionismos e afins. Além deste novo livro, já publicou obras como Pura picaretagem, Livro dos Milagres, Livro da Astrologia e Ciência no Cotidiano.
Atualmente, vive em Nova York, nos Estados Unidos, onde vem buscando ampliar o alcance internacional do IQC. “Há pessoas que se sentem atraídas pelo negacionismo porque não pararam para pensar o suficiente no assunto e porque sentem algum tipo de atração emocional pelo tema. Temos de disputar essas pessoas, produzindo conteúdo, conversando, publicando livros, participando de programas de TV, fazendo a informação correta circular de forma clara e atraente. Essa é a arena de disputa”, defende ele, em entrevista à DW Brasil.
DW Brasil: Como surgiu, afinal, o negacionismo? Podemos dizer que foi com o Holocausto?
Carlos Orsi: A expressão “negacionismo” realmente foi cunhada para se referir ao fenômeno específico do chamado revisionismo histórico do Holocausto. Até para distinguir do que é um revisionismo histórico legítimo, ou seja, o trabalho de historiadores de voltar às fontes, rever interpretações e, de repente, mudar algum relato histórico com base na descoberta de novas informações. Para separar o revisionismo legítimo daquele feito pelo pessoal que tentava ficar inventando pretextos e análises malucas para negar o massacre de 6 milhões de judeus, ciganos, homossexuais e outras minorias pelos nazistas, cunhou-se o termo negacionismo.
Ou seja, já havia negacionistas antes…
Uma vez criado o termo, começamos a perceber o que de específico ele descreve: pessoas que negam evidências bem estabelecidas para criar uma narrativa, para fingir que essas evidências não existem. Esse tipo de procedimento, de comportamento, não é um fenômeno exclusivo do Holocausto, já aparecia antes em outras áreas.
É como quando se descreve uma nova doença e se percebe que aquele conjunto de sintomas já havia sido encontrado antes, embora não houvesse um nome. Negacionismo é algo que dá para aplicar a várias instâncias e situações que são definidas: a negação de evidências muito claras, de um consenso claro entre especialistas, sem uma base de evidências sólidas e a partir da criação de uma narrativa fantasiosa. Isso já ocorria em campanhas da indústria de tabaco para fingir que o fumo não causa câncer.
Movimentos terraplanistas remontam ao século 19. Naquela época, eram chamados de paradoxalistas. Antes mesmo havia as negações das evidências de Galileu [Galilei, cientista italiano que viveu entre 1564 e 1642, reconhecido como o “pai da ciência moderna”] de que a Terra gira em torno do Sol. O ponto inicial mais notório do que a gente chama hoje de negacionismo no Ocidente, a construção de narrativas para descontar evidências claras de um fato que está diante dos olhos de qualquer um que se proponha a examiná-los, é a negação do heliocentrismo.
Esse comportamento está na base do que depois seriam os paradoxalistas e chega ao chamado negacionismo industrial do setor do tabaco, que depois legou suas técnicas para a indústria do petróleo na questão do aquecimento global — e ao fenômeno que acabaria identificado com suas características definidoras, o caso da negação do Holocausto.
O que alimenta o negacionismo, afinal?
Ele surge sempre quando a realidade implica fatos e atitudes que desagradam aos interesses de algum grupo estabelecido. Esses interesses podem ser econômicos, políticos ou identitários. O negacionismo da evolução, por exemplo, o criacionismo, surge para preservar um tipo de identidade, de pessoas que acham que se aceitarem a evolução natural terão de abandonar sua fé religiosa ou terão de rever seus laços comunitários com aqueles que partilham da mesma fé.
O negacionismo dificilmente é uma negação gratuita, que se esgota em si. E esse é muitas vezes um caminho para estabelecer diálogos com certos negacionismos. Como ele se alimenta desse apelo emocional, esta é uma maneira de construir uma ponte. No caso da pandemia de covid-19, por exemplo, as pessoas são emocionalmente colocadas numa situação de temer que o governo vai tomar o controle da vida delas, ao determinar que elas usem máscaras ou utilizem o passaporte de imunidade. Eles assustam as pessoas com as consequências do que eles acreditam. Se a gente conseguir demonstrar que tais consequências são falsas ou criar um tipo de tranquilização podemos construir uma ponte emocional.
Como seria essa ponte?
A questão das vacinas é muito clara. Com exceção dos antivacinistas fanáticos, a maioria das pessoas que tem hesitação quanto às vacinas, e aqui não estou falando especificamente das vacinas contra a covid, são aqueles preocupados com a saúde dos filhos. Essa preocupação é o núcleo emocional. Se você conseguir estabelecer um diálogo mostrando que também tem essa preocupação e que aceitar [a eficácia das vacinas] é mais útil para preservar a saúde do que negá-las, isso ajuda bastante.
A principal ferramenta negacionista é apelar para o medo. E eles usam a retórica, as meias-verdades, os recortes desonestos da questão, coisas que parecem fazer sentido, mas no contexto errado. Isso é complicado, porque se o cara está só mentindo, você esfrega a verdade na cara dele. Mas se ele fala uma meia-verdade, você tem de explicar, o que é uma tarefa muito mais complicada e sofisticada.
A pandemia de covid escancarou que o negacionismo pode ser, além de questão individual, um problema de saúde pública?
A pandemia escancarou os riscos que a negação de realidades científicas bem estabelecidas trazem, principalmente na formulação de políticas públicas e na tomada de decisões individuais que têm consequências públicas. Isso ficou muito claro. O negacionismo é um problema coletivo. Nunca foi realmente um problema individual.
As pessoas têm muito essa visão de que “que mal tem o cara acreditar numa bobagem, problema dele”. Mas o partido nazista da Alemanha levou muitos anos para chegar ao poder e durante todo o tempo eles existiam como um partido marginal, minoritário. Eles falavam que os judeus eram fonte de todos os problemas, e as pessoas davam de ombros, “esses loucos falando bobagens aí”. Um belo dia chegaram ao poder e fizeram tudo o que discursavam.
Hoje temos o movimento antivacina, um fã declarado de torturadores na presidência da República, e achamos que isso não vai ter consequências. As crenças têm consequências. Ficamos nessa esperança de que as pessoas que têm crenças estúpidas não vão levar as consequências a cabo, mas é uma fé infundada. Isso requer cuidado e combate.
E como combater?
Pelos corações e mentes dos indecisos. A maioria das pessoas ouviu falar na escola que a Terra é redonda, acreditou no professor e nunca mais pensou no assunto. Aí aparecem os terraplanistas, e essa pessoa que nunca pensou no assunto de repente tem uma inclinação de se achar outsider — e questionar a esfericidade da Terra é uma forma divertida de questionar a autoridade constituída. Há pessoas que se sentem atraídas pelo negacionismo porque não pararam para pensar o suficiente no assunto e porque sentem algum tipo de atração emocional pelo tema.
Temos de disputar essas pessoas, produzindo conteúdo, conversando, publicando livros, participando de programas de TV, fazendo a informação correta circular de forma clara e atraente. Essa é a arena de disputa. Além disso, deve haver coerção? Acho que em alguns casos muito específicos, quando o negacionismo gera dano explícito e inegável. Um exemplo: quando as empresas de petróleo ficam tergiversando sobre o impacto da queima de combustíveis fósseis sobre o clima e financiando ONGs de fachada para combater o movimento ambientalista. Esses grupos têm de ser punidos. Confio muito no princípio do John Stuart Mill [filósofo e economista britânico que viveu entre 1806 e 1873]: o discurso deve ser livre a menos que gere perigo real e imediato à vida e à propriedade de alguém.