17/09/2022 - 7:40
A evolução do homem está diretamente relacionada à sua alimentação. Cerca de 3 milhões de anos atrás, quando a espécie humana começou a se desenvolver, vivíamos da coleta de plantas e caçávamos animais com pedras. Um milhão de anos depois, ao criar ferramentas e armas que facilitaram a obtenção e a manipulação de alimentos, passamos a consumir muito mais proteína animal. Segundo um estudo feito em 2016 por biólogos da Universidade Harvard (EUA), essa mudança na dieta afetou nossa anatomia – a boca começou a diminuir de tamanho e o cérebro, a aumentar – e nosso metabolismo, que passou a investir mais recursos no sistema nervoso.
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Quando o fogo foi descoberto, há aproximadamente 500 mil anos, outra revolução aconteceu. A cocção multiplicou os sabores e permitiu transformar os alimentos ainda mais. Já por volta de 10 mil anos atrás, deixamos de ser nômades para cultivar plantas e criar animais para nosso sustento. A sobrevivência já não envolvia tantos riscos, e passou a depender mais da ação planejada com base na capacidade intelectual do homem.
Mas a acumulação de ingredientes para o cardápio afastou a sociedade humana das suas origens, a natureza. Bastou menos de meio século para a indústria alimentícia se instaurar, dirigida principalmente pelos ganhos de escala e pela lucratividade. E, nesse banquete servido pelo mercado, o planeta está frito. As principais práticas de produção dos alimentos dos últimos 100 anos já são uma ameaça ao equilíbrio do meio ambiente. A pergunta sobre a mesa agora é: quais são nossas opções para o futuro?
Se pensada para uma população de mais de 9 bilhões de habitantes prevista para 2050 (cerca de 30% a mais que os atuais cerca de 7 milhões), a dieta de hoje, que já é insustentável, significa um prato cheio de problemas. “Produzir alimento para uma população mundial que cresce vertiginosamente é algo que gera externalidades diversas, inevitavelmente. No entanto, a forma com que nós produzimos e o que consumimos possui um peso ainda maior”, expõe Ravi Orsini, pesquisador sobre alimentação sustentável e consumo consciente, formado em gestão ambiental.
De embrulhar o estômago
O primeiro alerta mundial foi dado em 2006, com o relatório “Livestock’s long shadow: environmental issues and options”, publicado pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). Ao analisar a magnitude dos impactos socioambientais da produção animal, o estudo tirou o apetite de muita gente ao concluir que “o setor da pecuária emerge como um dos dois ou três contribuintes mais significantes para os problemas ambientais mais sérios, em todas as escalas do local ao global”.
Estendeu-se, assim, o combate ao aquecimento global – até então focado nos combustíveis fósseis –, para a criação de animais voltada ao consumo humano, em especial o gado. “Atualmente, cerca de 75% das terras utilizadas para a produção de alimentos no planeta são destinadas à criação de animais, seja diretamente, nas pastagens, ou indiretamente, nos cultivos que os alimentam, tais como soja, milho, etc.”, expõe Orsini.
Além disso, a indústria da carne demanda um terço da água doce do planeta para matar a sede do rebanho e irrigar os grãos que ele come. “Apesar disso, a pecuária produz apenas 33% das proteínas e 17% das calorias consumidas globalmente”, contrapõe o pesquisador. A agricultura, claro, também gera muitos impactos, dependendo da forma como é praticada. Mas estudos indicam que são bem menores dos que os da pecuária.
Um relatório de 2015 realizado pelo Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS) e pela Agência Alemã para a Cooperação Internacional (GIZ) mostrou que para cada R$ 1 milhão de receita produzida com pecuária extensiva no Brasil, geram-se R$ 22 milhões em impacto ambiental. Já para a soja (produção vegetal mais impactante do estudo), por exemplo, essa relação é de R$ 1 milhão em receita para R$ 3 milhões em impactos.
Seja por questões culturais ou econômicas, no país do churrasco e do agronegócio, entretanto, ainda causa muito desconforto falar em abstenção ou moderação do consumo de carne. Mas Orsini lembra que a resistência é mundial. “Há um grande lobby dessa indústria em um nível internacional em cima da mídia, na política e até entre as ONGs – vide o documentário Cowspiracy, da Netflix, de 2014. Fora a verdadeira chacina de ativistas ambientais que ocorre em áreas mais isoladas do país”, resume.
Receita caseira
Diante desse contexto e dos termômetros elevando a tensão, a humanidade precisa virar a mesa. A adoção de uma economia mundial de baixo carbono passa necessariamente pelo corte no consumo de carne e laticínios combinado a outras medidas na agricultura, como práticas mais sustentáveis, redução de perdas de alimentos e diminuição de resíduos, além do uso da tecnologia.
“A alimentação será uma questão definidora do século 21”, crava a análise feita pela Comissão EAT-Lancet, formada por 37 renomados cientistas, de 16 países. O grupo preparou a primeira dieta baseada em estudos científicos que se preocupa com a saúde humana e o meio ambiente ao mesmo tempo.
A “dieta da saúde planetária”, como foi definida, considerou o papel principal da agropecuária nas mudanças climáticas, na destruição da vida selvagem e na poluição dos rios e oceanos. E prevê evitar cerca de 11 milhões de mortes humanas por ano, o que representa entre 19% e 24% do total de mortes entre adultos.
Na avaliação da Comissão, “é urgentemente necessária uma transformação radical do sistema alimentar global”. Se não houver ação imediata – que envolve trabalho duro, vontade política e recursos financeiros –, grande parte da população sofrerá cada vez mais desnutrição e doenças evitáveis e as crianças de hoje herdarão um planeta gravemente degradado.
Colocando em pratos limpos: seria fundamental dobrar o consumo global de alimentos mais saudáveis, como frutas, vegetais, legumes e nozes, e reduzir a menos da metade o consumo de alimentos menos saudáveis, como açúcares adicionados e carne vermelha. “Essa é uma dieta flexitária, em grande parte baseada em plantas, mas pode opcionalmente incluir quantidades modestas de peixe, carne e laticínios”, define o relatório.
Opções do cardápio
“Cortar na carne”, que ganhou uma forte carga ambiental nessa perspectiva, já é lema há séculos da linha vegetariana, dieta isenta de produtos de origem animal – inclusive leite, ovos, mel e outros. E mais ainda do veganismo, que extrapola a mesa e leva a proposta a qualquer item produzido por meio da exploração animal.
“O veganismo é um modo de vida ético em respeito aos animais. O vegano tem uma dieta vegetariana – não existe dieta vegana”, esclarece Douglas Ribeiro, membro da Sociedade Vegana e responsável pela comunicação da entidade, criada em 2010. Essa postura atende ainda a uma reaproximação do homem com a natureza. Apesar de tanta sintonia entre as causas, as origens do veganismo (surgido em 1942) e do vegetarianismo não têm correlação com o meio ambiente. “Se isso gera benefícios para o planeta, é um bônus, mas não é a razão de ser”, marca.
A dieta flexitária, ou “flexitarianismo” (mistura de flexível com vegetarianismo), e a reducionista, ou “reducitarianismo”, são novas vertentes de alimentação, surgidas neste século, que sugerem reduzir as porções de carne, principalmente a bovina. Ambas têm como foco a preservação do meio ambiente e a questão de saúde, mas não visam à exclusão total das proteínas animais, embora considerem também a proteção dos animais. “Embora os flexitarianos comam principalmente plantas com a inclusão ocasional de carne, ovos e laticínios, os reducionistas consciente e gradualmente diminuem seu consumo desses produtos animais em relação à sua própria dieta”, diferencia o site oficial do reducionismo.
“As motivações do vegetariano são a saúde e a postura ética de não violência aos animais, já que 98% da exploração animal acaba no prato das pessoas”, complementa Ricardo Laurino, presidente da Sociedade Vegetariana Brasileira. Para ele, essas novas linhas indicam que uma grande parcela da população está começando a ser impactada por informações sobre todo o benefício desse tipo de alimentação.
Alimentação colorida
A vivência dos vegetarianos prova que a ausência de carne é viável e benéfica. Embora alguns estudos de certo tempo atrás indicassem que a ausência de proteína animal na dieta seria a causa de problemas de saúde, hoje as entidades de nutrição não se opõem a essa opção. Mas alertam que é fundamental manter um padrão alimentar variado, equilibrado e saudável. Uma alimentação pobre à base de produtos refinados e processados é a que realmente preocupa e causa deficiências nutricionais.
“Muita gente acha que os produtos vegetarianos são aqueles que imitam a carne. Mas não. Nossa proposta é que se resgate uma alimentação colorida, cheia de frutas, verduras, legumes, arroz, feijão, grão de bico, lentilha… Os outros vêm enriquecer as opções que temos”, explica Ricardo Laurino, presidente da Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB).
Por um lado, a alimentação é uma questão muito pessoal e íntima, que deve ser respeitada. Por outro, também extrapola o espaço individual. As consequências da forma como comemos reverberam no meio ambiente, na segurança alimentar e na saúde das populações, além de envolver a relação do ser humano com os animais.
“No que diz respeito ao consumo, creio que a recomendação pelas ‘dietas baseadas em plantas’ é algo bem sólido e positivo, pois elas abrigam uma série de opções que vão desde a abstenção total (vegetarianismo) até uma moderação no consumo (flexitarianismo, reducionismo)”, conclui Orsini. Dessa forma, a liberdade de escolha é mantida, sem deixar de apontar uma direção bem clara e necessária para a saúde do ser humano e do planeta: menor consumo de carne. Já que pouquíssimas pessoas se alimentam hoje somente do que produzem, a alimentação se tornou uma ação de consumo. E é preciso estar consciente dos seus impactos para fazer escolhas acertadas.
Rei do gado
No Brasil, as cabeças de gado (217 milhões) superam o número de habitantes (208 milhões), segundo dados do IBGE de 2018. Só não superam o rebanho da Índia, onde o animal é sagrado e, portanto, não é utilizado na alimentação. O Brasil é o maior exportador de carne bovina do planeta, e seu consumo interno está entre os maiores do mundo, ao lado da Rússia e Estados Unidos, pelo levantamento da FAO.
A atividade agropecuária é a principal responsável pelas emissões brasileiras de gases de efeito estufa. Somando-se as emissões indiretas, por desmatamento, e as diretas, principalmente pelo metano do rebanho bovino, o agronegócio responde por 71% das emissões totais do país, de acordo com o Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SEEG), de 2018, preparado anualmente pelo Observatório do Clima.
A pecuária em si representa 24% de tudo o que o Brasil emite – e o país é o oitavo maior emissor do planeta. Não à toa, uma das metas voluntárias a que o Brasil se comprometeu no Acordo de Paris, tratado aprovado em 2015 por 195 países, é de reduzir em 18% a emissão de CO² equivalente na agropecuária e diminuir em 80% o desmatamento na Amazônia e em 40% no Cerrado, em relação ao registrado no período de 1996 a 2005.
Expansão inegável
Segundo uma pesquisa do Ibope realizada em abril de 2018 nas regiões metropolitanas de São Paulo, Curitiba, Recife e Rio de Janeiro, 14% dos brasileiros (cerca de 29 milhões de pessoas) se disseram vegetarianos (que não consomem produtos de origem animal). O resultado representa um aumento de 75% em relação a 2012, quando 8% diziam seguir essa dieta. O incremento no interesse pela linha vegana (sem nenhum envolvimento animal) também chamou a atenção: 55% dos entrevistados afirmaram que consumiriam mais produtos desse tipo se estivessem mais bem indicados na embalagem e 60% se tivessem o mesmo preço que os produtos feitos da forma tradicional. A indústria alimentícia já está de olho nesse crescimento e vem aumentando junto a oferta de produtos vegetarianos e veganos.