Aos 19 anos, a ideia era ficar apenas um ano, melhorar o inglês, viver uma experiência internacional enquanto a universidade, lá em Salvador, aguardaria trancada pela metade. Cinco dias depois de desembarcar nos Estados Unidos, contudo, Fernanda conheceu Bradley e, bom, aquele estranho baile de Carnaval organizado por um grupo de brasileiros no gelado inverno de Ann Arbour, no Michigan, jamais terminaria.

“Depois que a gente se conheceu, eu passei a não me imaginar mais vivendo sem ele”, conta ela. O primeiro encontro foi em uma festa promovida por imigrantes saudosos do ziriguidum, e Bradley só foi porque era colega de faculdade de uma brasileira.

Hoje professora na Universidade de Michigan, a psicóloga e socióloga Fernanda Lima Cross, de 40 anos, é uma entre os 1,8 milhão de brasileiros que atualmente vivem nos Estados Unidos, segundo dados do Ministério das Relações Exteriores.

A comunidade brasileira em território americano abrange quase metade de todos os brasileiros que vivem no exterior — e supera a soma do total dos que moram em todos os outros nove países no ranking das nações que mais têm brasileiros.

Vontade de uma vida melhor

É na condição de imigrante que Fernanda encontra a empatia necessária para seu trabalho. Como pesquisadora, ela analisa justamente a inserção de imigrantes latino-americanos nos Estados Unidos, sejam os que se transferem legalmente para lá, sejam os que cruzam a fronteira de forma clandestina e precisam se arranjar sem documentação.

“Estudo essas famílias e como elas promovem a saúde mental e o desenvolvimento de seus filhos em solo americano”, conta a brasileira. “Por meio de entrevistas e questionários, identifiquei como os pais dividem com os filhos, explicam para eles suas próprias condições.”

Ela não faz um recorte por nacionalidade, mas a maioria dos analisados são oriundos de países da América Central. Fernanda já percebeu alguns padrões. Por exemplo, pais em situação legalizada nos Estados Unidos costumam ser incentivados a se defender ativamente em episódios de xenofobia. “Já os indocumentados pedem aos filhos com tais experiências que ‘deixem para lá'”, comenta.

Mãe de quatro filhos — a mais velha com 14 anos, outra de 9, e um casal de gêmeos de 6 —, Fernanda reconhece-se privilegiada por ter realizado a imigração dentro da legalidade, com estrutura familiar e possibilidades de estudo. Ao mesmo tempo, percebe no seu trabalho como pesquisadora uma ajuda constante aos que ingressam nos Estados Unidos de forma perigosa e sob estrutura frágil.

“É bem difícil e doloroso escutar as histórias deles. Muitos tiveram de cruzar a fronteira [dos Estados Unidos com o México] para vir para cá, então são histórias de sofrimento, de passar por um trajeto onde muitos já morreram”, comenta. “Quem vem é porque tem vontade de ter uma vida melhor e proporcionar uma vida melhor a seus familiares. Quando me contam, muitos dizem que nunca antes haviam conseguido relatar essas coisas para ninguém.”

Medos — de ser deportado e de ser separado dos filhos — são constantes, sobretudo por parte de quem não está vivendo de forma legalizada.

A realidade do imigrante

Mas se teve toda a estrutura para tanto, também foi necessária uma grande força de vontade para Fernanda se transformar — de jovem estudante universitária baiana, que tinha um nível básico de inglês, para uma respeitada professora e pesquisadora universitária nos Estados Unidos.

Fernanda escolheu Ann Arbour porque tinha uma amiga que já morava lá. Chegou em 18 de fevereiro de 2001. Estava na metade do curso de Jornalismo na Universidade Federal da Bahia e havia notado que, se quisesse ter sucesso na carreira, precisava ser fluente em inglês. Por isso a decisão pelo intercâmbio.

Tinha a passagem de volta para o início do ano seguinte. Estava matriculada em um curso de inglês para estrangeiros e logo começou a trabalhar em um restaurante, como garçonete. “A maioria dos funcionários da cozinha eram imigrantes latinos e conversavam em espanhol entre eles, mal falavam inglês. Então eu recebia o pedido em inglês, anotava em espanhol e conversava com os cozinheiros”, recorda ela.

Foi seu primeiro contato com uma realidade que jamais sairia de seu horizonte: as dificuldades dos imigrantes mais precários.

Quando completou um ano de Estados Unidos, plenamente convencida de que Ann Arbour era seu novo lar, utilizou a viagem de volta ao Brasil para apresentar Bradley, então estudante de Biologia, para a família. E organizar a mudança definitiva. Ficaram dois meses em Salvador e, a essa altura, o americano até já se arriscava a falar português.

“Ele é filho de um americano com uma colombiana, então o espanhol vinha da infância”, conta Fernanda. Ela decidiu que não concluiria o curso de Jornalismo e, na Universidade de Michigan, começou duas novas graduações: em Sociologia e em Psicologia.

Mais segura de suas habilidades em se comunicar tanto em inglês quanto em espanhol — e nesse ponto as conversas com a sogra ajudaram, ela reconhece —, logo a brasileira começou a trabalhar em um projeto que auxiliava imigrantes não falantes de inglês a se comunicar em hospitais, escolas e no sistema judiciário americano. No caso, ela atuava como intérprete.

“Isso me fez aprender muito sobre a realidade dessas pessoas, mas ao mesmo tempo não parecia suficiente. Eu estava lá para facilitar a comunicação, muitas vezes entre médico e paciente, entre professor e pai de aluno. Mas era comum perceber discriminação e notar que [fosse um cidadão americano e não um imigrante] a pessoa poderia estar recebendo um tratamento melhor. E eu não podia fazer nada”, comenta.

A essa altura, Fernanda tomou a decisão do passo seguinte em sua trajetória acadêmica: um mestrado em serviço social. E foi por conta disso que, entre 2010 e 2014, ela trabalhou em um projeto bancado pelo governo dos Estados Unidos em que visitava famílias de imigrantes mensalmente.

“O foco eram famílias com crianças de até 3 anos. Precisava ver se elas corriam algum risco, se havia abuso de drogas ou de álcool. A maioria dos pais não tinha documentos, ou seja, eram pessoas de poucos recursos”, lembra. “Eu escutava muito sobre as necessidades deles e o que eles vivenciavam. Via o esforço dessas mães e pais em prover para os filhos uma vida melhor.”

Dessa experiência, veio a ideia do doutorado em Psicologia do Desenvolvimento. E Fernanda seguiu analisando, cada vez mais a fundo, esse universo do imigrante.

Saudades

De lá para cá, as saudades do Brasil são remediadas com viagens, geralmente a cada ano e meio. Dentro de casa, o idioma oficial é o português — e é a maneira como ela mantém as raízes e, ao mesmo tempo, transmite sua cultura para os filhos. Bradley, criado em espanhol pela mãe colombiana, foi compreensivo desde o início com esse modus operandi.

“Eu sinto falta do Brasil o tempo todo. De Salvador, do mar, da praia. Da comida: acarajé, abará, caranguejo na praia, frutos do mar frescos que a gente tinha lá”, enumera. Sinto falta do calor humano das pessoas, ai meu Deus, ver as pessoas felizes e calorosas umas com as outras, essa alegria que o baiano tem.”

Mas são sentimentos que ela guarda junto às malas das férias. Porque voltar, para Fernanda, não é algo a ser considerado. “Eu quero continuar aqui. Apesar do frio, gosto muito de Ann Arbour”, diz. “Gosto da tranquilidade, da segurança. De não ter de me preocupar com assaltos nem com problemas no trânsito.”