15/09/2016 - 17:18
Na tarde de 9 de agosto, um dia depois de conquistar a primeira medalha de ouro do Brasil nos Jogos do Rio, a judoca Rafaela Silva, de 24 anos, vivia novamente a expectativa de uma semifinal olímpica. Enquanto recebia a reportagem de PLANETA, a atleta não desgrudava os olhos da tevê, que mostrava a entrada no tatame da amiga e colega de quarto Mariana Silva, para a luta contra a eslovena Tina Trstenjak na categoria até 63 kg. Perguntada se gostaria de parar para ver o confronto, ela abre um largo sorriso tenso – que exibe o aparelho ortodôntico “decorado” com elásticos verdes e amarelos –, apoia-se sobre a mesa, cruza as mãos e responde: “Sim, vamos, né?”
A arte marcial que mudou a vida dessa carioca nascida na favela da Cidade de Deus tornou-se parte indissociável de sua personalidade. A agressividade, antes canalizada para brigas na rua, hoje derruba adversárias no tatame. Quase inexistente na época em que Rafaela queria fugir da escola, a disciplina agora faz dela uma das melhores estrategistas do esporte. A campeã olímpica na categoria até 57 kg acompanha com olhos tensos a luta da colega contra a eslovena, considerada a melhor judoca do mundo em todas as categorias. Rafaela torce, “canta” cada movimento e lamenta o desfecho: derrota da brasileira com um ippon (a pontuação máxima do judô) por imobilização. Mas rapidamente volta à entrevista: “Parte da vida de atleta é saber superar logo a derrota”, diz.
Rafaela é um exemplo acabado do significado da palavra “superação”. No Brasil, ser mulher, negra, favelada e homossexual é ter à frente uma série de obstáculos tão ou mais difíceis do que as adversárias que ela enfrenta nos tatames. Aos 5 anos, quando começou a treinar judô em um projeto da Associação de Moradores da Cidade de Deus, a atleta tinha de lidar com a violência e o crime. Os constantes tiroteios entre traficantes e as operações policiais forçavam a população a se esconder em casa. A dedicação dos pais, Luiz Carlos e Zenilda, em tirar as filhas das ruas era muitas vezes superada pela falta de recursos e oportunidades.
Mesmo depois de se profissionalizar e ir a uma Olimpíada, Rafaela precisou encarar o racismo e o preconceito, manifestados na forma de ofensas nas redes sociais após a eliminação precoce em Londres-2012 (veja quadro na página ao lado). “Falaram que lugar de macaco era na jaula e não na Olimpíada. Pois agora a macaca que deveria estar na jaula é campeã olímpica”, desabafa.
O primeiro ouro do Brasil no Rio, conquistado por uma carioca, não teria acontecido sem a ajuda dos “padrinhos” de Rafaela, o técnico Geraldo Bernardes e o ex-judoca Flávio Canto. O treinador descobriu o talento da menina, enquanto o ex-atleta montou o Instituto Reação, projeto social que nos anos seguintes daria o suporte de que todo campeão nato precisa. “Minha família não tinha dinheiro para pagar viagens, material de treino ou refeições”, diz Rafaela. “Eu não era ninguém.” O professor Geraldo, como a judoca ainda o chama, tirou dinheiro do bolso para ajudá-la e garantiu que a colocaria na seleção brasileira. “Eu nem sabia o que era isso.”
Rede de apoios
Após ganhar força, técnica e disciplina no projeto social, a atleta se profissionalizou e passou a contar também com apoio de patrocinadores privados, do Ministério do Esporte (por meio do Bolsa Atleta e do Bolsa Pódio) e das Forças Armadas. A judoca é terceiro sargento da Marinha e foi incorporada graças ao Programa de Alto Rendimento das Forças Armadas.
Rafaela vive hoje em um apartamento no Cachambi, Zona Norte do Rio, com a namorada, Thamara Cézar, e três cachorros. A parceira, que a judoca conheceu no Instituto Reação, cuida das redes sociais e com frequência assume o papel de assessora de imprensa da atleta. “Ela é muito importante nessa conquista”, diz Rafaela.
Mas os laços com a favela da infância e adolescência permanecem fortes. A mãe, Zenilda, ainda tem na comunidade uma loja que vende doces, ração para animais, salgadinhos e refrigerantes. Ela também aluga o espaço embaixo do imóvel. O pai, Luiz Carlos, trabalha desde os 15 anos e hoje faz carreto em uma Kombi comprada por Rafaela com o dinheiro recebido pelo título mundial de 2013. A cada competição ganha pelas filhas (a irmã de Rafaela, Raquel, também é judoca), uma melhoria é feita na casa. “Elas reformaram a sala e construíram mais quartos”, afirma Luiz Carlos.
“A VITÓRIA DA RAFAELA É IMPORTANTÍSSIMA, SOBRETUDO PORQUE ELA É UMA MULHER NEGRA QUE NÃO TEVE MUITAS OPORTUNIDADES. E PROVA O QUANTO PODEMOS CONSEGUIR QUANDO TEMOS CHANCES. FICA O RECADO PARA O BRASIL DE QUE PRECISAMOS DE MAIS POLÍTICAS PÚBLICAS, AÇÕES CONCRETAS VOLTADAS À EQUIDADE.”
Djamila Ribeiro, secretária adjunta de
Direitos Humanos de São Paulo
Rafaela ainda não havia tido a oportunidade de visitar a Cidade de Deus após seu triunfo, mas disse imaginar que houve festa: “Acho que teve muita gente parando, gritando e batendo palmas”, afirmou. Familiares e vizinhos confirmam a impressão. Segundo eles, a região viveu clima de Copa do Mundo, com muita torcida barulhenta e comemoração a cada luta da brasileira. Nos dias seguintes ao pódio, o exemplo da atleta já era seguido por outras crianças da área. Geovana, de 4 anos, prima de Rafaela, vive na casa onde a judoca cresceu e diz a todos que pretende ser atleta quando crescer. Nas precárias e sujas ruas ao redor, outras crianças se agarram e tentam aplicar ippons.
Daniele Ferreira, grávida de 9 meses, é uma das amigas mais antigas de Rafaela. Ela conta que quase desistiu de assistir à competição por medo de entrar em trabalho de parto, mas acabou cedendo. Professora de judô para crianças, Daniele vê a importância da presença de uma atleta de sucesso para as crianças do projeto. “Elas veem os esportistas olímpicos como exemplos possíveis”, diz. A PLANETA, Rafaela afirma entender que, com suas vitórias, transforma a vida de muita gente. “Se com essa medalha eu puder ajudar e inspirar algumas crianças, é o que farei.”