22/02/2022 - 11:53
Relatório mostra existência de mais de 2 mil pedidos de pesquisa mineral em áreas que avançam sobre terras indígenas. Números de novos requerimentos em 2020 foi o maior já registrado desde 1996.Faz mais de duas décadas que o interesse de empresas por minérios em terras indígenas não era tão intenso como nos anos do governo Jair Bolsonaro. É o que mostra o número de pedidos para pesquisa mineral que avançam dentro desses territórios: 2.478 requerimentos seguem ativos no sistema da Agência Nacional de Mineração (ANM). Quase metade deles (1.085) é para prospecção do ouro.
As informações fazem parte do relatório Cumplicidade na Destruição IV: como mineradoras e investidores internacionais contribuem para a violação dos direitos indígenas e ameaçam o futuro da Amazônia, divulgado nesta terça-feira (22/2).
Segundo o levantamento, feito pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e Amazon Watch, os pedidos se sobrepõem a pelo menos 261 terras indígenas, registrados por 570 empresas, associações de mineração e grupos internacionais.
“Mesmo proibido pela Constituição, mineradoras e investidores têm esse interesse em explorar nossas terras e queremos mostrar nesse relatório quem são”, afirma Dinamam Tuxá, advogado e coordenador executivo da Apib. A Constituição Federal, no artigo 231, proíbe esse tipo de atividade nesses territórios e concede aos indígenas o direito sobre suas terras, com “usufruto exclusivo das riquezas do solo”.
Dentre os critérios para nomear as empresas, o levantamento considerou aquelas que têm histórico de impactos sobre indígenas no país, principalmente na Amazônia; e que têm vínculos com corporações financeiras internacionais. Foram apontadas as mineradoras Anglo American, Belo Sun, Potássio do Brasil, Mineração Taboca/Mamoré Mineração e Metalurgia (ambas do Grupo Minsur), Glencore, AngloGold Ashanti, Rio Tinto e Vale.
Vale na liderança de pedidos
O relatório é baseado em informações contidas no banco de dados da ANM em 4 de novembro de 2021. No sistema, há requerimentos de pesquisa mineral que invadem limites de terras indígenas anteriores à Constituição, de 1988. A maior parte dos que seguem ativos foi protocolado naquela década, com pico de 262 pedidos em 1984.
Em 2020, segundo ano do atual mandato de Bolsonaro, foram 116 requerimentos, patamar que não se via desde 1996, que teve 129 pedidos. “Há uma corrida por esses requerimentos”, comenta Rosana Miranda, assessora de Campanha do Brasil da Amazon Watch. “A ANM cancelou alguns, mas há um interesse declarado desse governo em abrir terras indígenas para mineração”, adiciona.
Segundo o relatório, a Vale é a mineradora com maior número de requerimentos ativos, com 75. A maior parte, 32, estão na área da TI Xikrin do Cateté, no Pará, onde vivem os Kayapó e os Xikrin. Anglo American vem em segundo lugar, com 65 pedidos. A lista segue com Minsur (35), Potássio do Brasil (19), Rio Tinto (14), Belo Sun (11), Anglogold Ashanti (3) e Glencore (3).
Para os autores, a corrida se deve também a um projeto de lei em tramitação, com prioridade declarada pela administração Bolsonaro. O PL 191/2020 pode liberar a mineração e o garimpo em terras indígenas e retira o poder de veto desses povos.
“Sem sombra de dúvidas as empresas têm interesse na aprovação. Um dos pontos é que, como algumas já estão com pedido avançado, se o PL for aprovado, elas terão prioridade”, analisa Tuxá, da Apib.
Processo simples
De acordo com Pedro Casagrande, professor do Departamento de Engenharia de Minas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o processo para o pedido de pesquisa mineral é simples, feito diretamente no site da ANM. “No requerimento, o interessado registra a localização do polígono e precisa de anuência da agência e pagamento de emolumentos [taxas] “, afirma.
A pesquisa em campo é feita por geólogos e não requer equipamentos pesados. Uma vez identificada a presença do minério, a parte interessada precisa informar maiores detalhes à agência e iniciar o rito de autorizações e licenciamentos para exploração, o que pode levar anos.
“A prática mostra que há requerimentos da década de 1970 que ainda estão no sistema. Essa é a preocupação. O processo está lá, pode ser retomado a qualquer momento”, afirma Miranda. Para a especialista da Amazon Watch, já que a Constituição veta mineração em terra indígena, a ANM não deveria aceitar procedimentos administrativos relacionados a essa atividade.
“É uma obrigação da ANM não aceitar pedidos, mas grandes empresas também têm que avançar no reconhecimento pleno dos direitos indígenas. O que acaba acontecendo, é que ao ter requerimentos, acaba normalizando a ideia de que essa exploração acabe acontecendo”, pontua.
Procurada, a ANM diz que nenhum requerimento para execução de atividade mineral prospera em áreas com bloqueio legal. Os requerimentos de pesquisa, por outro lado, não sofrem a mesma proibição. “Trata-se de modalidade que não prevê exploração dos recursos minerários em nenhuma escala”, informa a nota enviada.
O que dizem as empresas
Questionada pela DW, a Vale respondeu que não possui requerimento em terra indígena no Brasil. A empresa diz que retirou todos os requerimentos de pesquisa e lavra em TIs e que os pedidos de desistência foram protocolados na ANM ao longo de 2021.
Já a Belo Sun se limitou a dar informações sobre o Projeto Volta Grande, no Pará, empreendimento de extração de ouro que está com a Licença de Instalação suspensa pelo TRF1. Segundo a empresa, o licenciamento segue todos os ritos pertinentes e a mineradora diz respeitar a legislação brasileira nos âmbitos federal, estadual e municipal.
Adriano Espeschit, presidente da Potássio do Brasil, afirma que a empresa não tem processo minerário sobreposto à terra indígena homologada. O relatório da Apib e Amazon Watch aponta que, dentro dos pedidos feitos pela empresa, a TI mais afetada é a Jauary, Amazonas, ocupada pelos Mura e está delimitada – mas ainda não oficialmente homologada.
A Anglo American afirma ter desistido de todos direitos minerários em áreas onde havia sobreposição com terras indígenas. Segundo a empresa, vários desses requerimentos ainda constam no banco de dados da ANM e a mineradora tenta atualizar a situação no sistema da agência.
Uma justificativa semelhante foi dada pela AngloGold Ashanti. A mineradora declara não atuar em áreas indígenas e que os pedidos registrados na ANM identificados pelo relatório são da década de 1990. A AngloGold teria desistido de três deles após os territórios em questão terem sido demarcados.
As demais empresas citadas, Grupo Minsur, Glencore e Rio Tinto, não responderam aos questionamentos da DW antes do fechamento da reportagem.
Pressão internacional
Os autores do relatório calculam que as mineradoras listadas receberam 54,1 bilhões de dólares em investimentos e créditos para suas atividades no Brasil. Capital Group, BlackRock e Vanguard lideram o total em aportes.
Instituições brasileiras, como o fundo de pensão PREVI (Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil) e Bradesco também injetam grandes recursos, aponta a pesquisa, além de banco internacionais como Crédit Agricole (França), Bank of America e Citigroup (Estados Unidos), Commerzbank (Alemanha) e SMBC Group (Japão).
“Pouco se fala da mineração como área de investimento. É uma atividade que traz muitos impactos na Amazônia, como desmatamento, contaminação ambiental, e provocou desastres como o de Mariana e Brumadinho (MG) “, aponta Miranda.
Tuxá reforça a mensagem que o relatório deveria passar a consumidores e empresas em todo mundo. “É preciso que eles tomem ciência de que a mineração pode ser boa para as empresas, que pode beneficiar um grupo econômico específico, mas que não é boa para os povos indígenas da Amazônia, para os protetores do meio ambiente. Muitos direitos estão sendo violados, muita destruição está sendo provocada”.